Pesquisar este blog

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

OROBORO CONSERVADOR - FASCISMO E CULTURA: NOTAS DE UM ESTUDO

 

Luiz Carlos Checchia

Diversitas-FFLCH/USP

luiz.checchia@gmail.com

 

“Não, de forma alguma o Fascismo é a vingança da burguesia contra o levante militante do proletariado. Em termos históricos, visto de forma objetiva, o fascismo apresenta-se muito mais como uma punição pelo fato de que o proletariado não tenha sustentado e aprofundado a revolução que foi iniciada na Rússia. E a base do fascismo não repousa sobre uma pequena casta, mas em amplas camadas sociais, grandes massas, inclusive o proletariado. Devemos entender essas diferenças essenciais se quisermos lidar com o fascismo de forma bem sucedida. Meios militares, por si só, não poderão subjugá-lo, se puder usar esse termo; é necessário combatê-lo até sua queda também política e ideologicamente”

Clara Zetkin

 

Lá vem os eleitores, em massa; deram cem por cento dos votos a quem os torturam. Não têm pão, não têm manteiga, não têm casaco.

 

Votaram no führer

Terror e Miséria no III Reich

Bertolt Brecht 

 

Nas últimas décadas temos acompanhado a constituição de governos de extrema-direita em diversas nações, tais como Hungria, Polônia, Ucrânia, EUA e Brasil, bem como a ascensão de lideranças e partidos desse campo político, como na Espanha e França. Esses fenômenos reavivaram o debate acerca do fascismo. Ainda que se trate de um debate longe de se esgotar, partimos do princípio de que há uma nova maré fascista em curso, determinada pela atual conjuntura das dinâmicas da luta de classe em escala geopolítica; em outros termos, em função das atuais dinâmicas do imperialismo. Empreender esforços de colaboração para esse debate nos exige, portanto, que consideremos o que escreveu o historiador brasileiro Francisco Teixeira:

[...] assim, a ressurgência do fascismo nos obriga a lançar mais de um novo arsenal teórico e de novos métodos que possam explicar as duas marés fascistas (anos 20/30 e anos 90) ocorridas em nosso século e, mesmo, unificar a teoria explicativa do fascismo, pensando-o em termos mais fenomenológicos, enquanto modelo de reação, organização e participação de amplas camadas populares nas modernas sociedades industriais ou em transição à industrialização, e muito menos em fenômeno específico da história alemã ou italiana dos anos 20 (SILVA, 2005, p. 121).

Este pequeno ensaio é parte das considerações e reflexões acerca da questão do fascismo, sobretudo no Brasil governado por Bolsonaro e, ainda, em um campo social específico: a cultura. Acreditamos, ainda, que o fascismo é uma forma política viável, parte da luta de classes no capitalismo e sempre à espreita, esperando um momento para emergir como força política. Esta investigação se dá, portanto, no sentido de compreender a relação entre política e cultura e, mais especificamente, como a forma política fascismo se conecta com imensa massa de nossa população conquistando corações e mentes e agenciando valores e significados que lhe são próprios. 

 

Fascismo

O fascismo ainda é uma questão que provoca acirradas controvérsias no campo da pesquisa teórica. Muitos pesquisadores se debruçaram sobre o tema tentando compreendê-lo sob diversos prismas e postulados. O filósofo da política italiano Gianni Fresu aponta em seu livro Nas Trincheiras do Ocidente que as abordagens e análises sobre o fascismo podem ser agrupadas em três grandes campos interpretativos. A Primeira Guerra Mundial tem centralidade no primeiro desses campos, pois aquele conflito teria destruído a auto-imagem da burguesia europeia que até então se percebia como a mais evoluída civilização sobre a terra. No entanto, ela viu sua criação política, o liberalismo, sendo insuficiente para evitar a carnificina da guerra de trincheiras. Viu, ainda, seu extraordinário desenvolvimento técnico produzindo instrumentos de dor e extermínio. Dos campos de batalha surgiu a barbárie que pôs em escombros os prédios e as ilusões de sofisticação da cultura europeia. Desses escombros emergiu, então, o fascismo como expressão política de uma “doença moral da Europa''. Outro desses campos interpretativos afirma que as  nações em atraso na competição capitalista podem encontrar no autoritarismo um expediente que lhes garanta a estabilidade política necessária para acelerar seu progresso, sendo o fascismo então um “produto lógico e inevitável do desenvolvimento de alguns países”. Por fim, há o campo interpretativo que reúne as análises que afirmam ser o fascismo uma forma de reação da burguesia contra o avanço da organização e da luta política da classe trabalhadora, sendo então o fascismo “produto da sociedade capitalista e como reação antiproletária” (FRESU, 2017). 

Percebemos que a disputa política pelo Estado está na centralidade de todos os três campos interpretativos apresentados. O debate gira, então, em torno das reflexões e ações de homens e organizações já constituídas e operando conscientemente as escaramuças pelo poder, arrastando atrás de si as massas populares que os apoiam e os defendem até, em muitos casos, o limite da barbárie. O que o advento do bolsonarismo nos mostra é que até o mais pacato dos nossos familiares pode se tornar o defensor de uma doutrina tão rasa quanto mortal. Por isso, tão importante quanto compreender a disputa pelo controle do Estado é entender porque as massas populares se tornam defensores caninos dos fascistas e suas organizações. Acreditamos que é na relação entre cultura e política onde encontraremos alguns indícios explicativos dessa situação.

Assim, passamos a apresentar uma contribuição ao entendimento sobre o fascismo, ainda que esquemática, oferecendo uma definição de sua dinâmica à luz das experiências das, agora, três marés fascistas. O primeiro ponto que destacamos é a relação entre as classes sociais que se formam no capitalismo. Ao longo da história a luta de classes forjou as duas grandes classes que Marx identifica n’O Manifesto Comunista, e que se distinguem entre os que possuem e os que não possuem os meios de produção. Mas é preciso fazer a dialética entre o Marx que escreve O Manifesto e o Marx que analisa experiências históricas particulares, como o faz no 18 de Brumário de Luís Bonaparte, para que possamos perceber a distinção entre as classes e suas expressões políticas. O Manifesto é uma análise histórica de longuíssima duração, um olhar panorâmico sobre as relações humanas. Por isso, o que se mostra são somente os traços principais dessa paisagem, ou seja, as duas grandes classes em disputa: a dominante e a dominada. Mas no 18 de Brumário Marx faz uma análise minuciosa do capitalismo em um contexto específico, o golpe perpetrado por Luís Bonaparte na França do século XIX. Por se tratar de um olhar focado, percebemos um número maior de classes que se formam no entorno da disputa pelo Estado (OSÓRIO, 2019). Podemos dizer que as classes se formam a partir de suas localizações no conjunto da divisão social do trabalho, ou seja, em relação no âmbito do que Poulantzas definiu como determinação estrutural de classe. Mas na luta política essas classes se manifestam de formas diversificadas e complexas, assumindo distintas posições de classe na conjuntura (POULANTZAS, 1975). Isso significa que não há uma correspondência direta e mecânica entre os operadores políticos e as classes que representam. É por isso que tanto o fascismo quanto o liberalismo atuam no interesse da burguesia, mas o fazem por caminhos politicamente e culturalmente diferentes e assim disputam entre si o controle do aparato de Estado, mas sem que ele deixe de ser, ao fim e ao cabo, um Estado burguês. Mesmo a social-democracia, em que pese sua base assentar na classe trabalhadora, ao não propor a superação do capitalismo, acaba também por pôr-se a serviço dos interesses da burguesia (PRZEWORSKI, 1991). Assim, análises sobre o fascismo precisam iniciar-se em sua classe política de origem, a pequena burguesia

A pequena burguesia cria sua ideologia combinando referências e influências que carrega das duas principais classes, sem deixar de manter-se em luta contra elas. Ela se opõe ao grande capital pois o considera um “competidor desleal” que utiliza do seu poderio econômico para impedir a livre-concorrência. Também se contrapõe à classe trabalhadora, pois ela também cria dificuldades para o seu desenvolvimento econômico graças à sua capacidade de organização política em seus sindicatos, associações, partidos et cetera. A ideologia que a pequena burguesia formou para si reflete, predominantemente, sua condição de existência no capitalismo: fragmentada, individualizada, atomizada, constantemente em disputa contra todos. Conservadora, idealista e geralmente sem perspectivas sociais de longo prazo.

Todavia, estando a polarização entre classes centrada nas disputas entre burguesia e trabalhadores, a pequena burguesia tem pouca expressividade política quando em tempos de relativa tranquilidade. A situação muda quando ocorre uma crise de hegemonia, ou seja, quando a combinação de crises econômica e política chega em um grau tão crítico que nem os representantes da burguesia e nem os da classe trabalhadora conseguem angariar a confiança e o apoio da população para resolvê-la. Via de regra, a democracia liberal precisa do relativo apoio da população para garantir a estabilidade de um governo, por isso, a falta de confiança popular para um ou outro lado dessa balança cria um vácuo na direção do Estado. Essa é situação que propicia as condições para a pequena burguesia tornar-se uma força política autônoma, apresentando-se para a disputa política pelo Estado. Nesse cenário, ela precisa se destacar das demais forças políticas, o que a impele para uma agenda cada vez mais agressiva e que potencializa o voluntarismo e o conservadorismo que demarcam sua ideologia, formando-se em fascismo. Instalada essa situação de disputa política, os fascistas, podem, por fim, chegar ao poder, como ocorreu na Alemanha, na Itália, Portugal e Espanha, nas primeiras décadas do século XX, e quase ocorreu em outras nações europeias, como na Hungria, nas eleições de 1936, na Romênia, nas eleições de 1937, na Bélgica, nas eleições de 1936 e na trajetória do coronel François la Roque e seu Parti Social Français, que ao longo da segunda metade dos anos de 1930 se constituiu como uma das mais influentes forças políticas da França (PAXTON, 2007). Também devemos considerar a penetração e influência que teve a Ação Integralista Brasileira que manteve núcleos espalhados por todo o país, organizando mais de um milhão de filiados (BERTONHA, 2008). Os integralistas dispunham de escolas, centros assistenciais e uma poderosa agência de comunicação, a Sigma Jornaes Associados, que em 1934 reunia e coordenava 88 diferentes publicações que se abrangiam quase todo o território nacional.

No entanto, e isso é preponderante, o fascismo, não almejando a superação do capitalismo, atende, ao fim e ao cabo, aos interesses da burguesia. 

 

Esta foi a descrição genérica do que designamos por circunstância fascista, ou seja, um determinado contexto da luta de classes que combina a crise de hegemonia e a ascensão da pequena burguesia à condição de força política em condições de disputar o Estado. Apresentamos acima, ainda que esquematicamente, o processo de ascensão do fascismo. Agora, passamos a observá-lo por outro ângulo, o da cultura; ou melhor explicando, como o fascismo se apropria do construto cultural de uma sociedade para manipular os afetos e angariar a confiança e o apoio de sua população. Para empreender essa análise tomaremos por base teórica o materialismo cultural formulado por Raymond Williams. 

 

Cultura, Política e Fascismo

O que propomos aqui é uma análise do fascismo a partir de um campo teórico específico, o materialismo cultural de Raymond Williams, que o definiu como “uma teoria das especificidades da produção cultural e literária material, dentro do materialismo histórico” (WILLIAMS, 1977, p.12). Isso significa tratar da dialética entre cultura e política como constituintes das sociedades e não apenas como suas expressões. O fato é que mais do que uma estreita e íntima relação entre ambos, cultura e política se formam mutuamente e estabelecem as mediações de convivência social. A esse respeito escreveu o antropólogo Clifford Geertz: 

A cultura é melhor vista não como complexos de padrões concretos de comportamento - costumes, usos, tradições, feixes de hábitos -, como tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos de controle [...]. A perspectiva da cultura como ‘mecanismo de controle’ inicia-se com o pressuposto de que o pensamento humano é basicamente tanto social como público - que seu ambiente natural é o pátio familiar, o mercado e a praça da cidade (GEERTZ, 2008).

 

Geertz percebe a cultura não como mera expressão da vida social, mas como seu próprio ordenamento, e é dele que surge a política. Não é de agora que esse ordenamento tornou-se o embrião da política: desde a idade do bronze essa relação já havia sido estabelecida quando os antigos clãs e tribos formaram as primeiras cidades-estados. Também Malinowski demarca o papel organizador da cultura nas sociedades humanas. O antropólogo polonês observou que “tanto nas comunidades primitivas como nas civilizadas, verificamos que em primeiro lugar toda ação humana efetiva conduz ao comportamento organizado” (MALINOWSKI, 1962, p. 56). A organização se faz por meio de instituições estabelecidas por cada comunidade. Essas instituições são animadas por diferentes princípios do qual destacamos o da autoridade, que constitui o “privilégio e o dever de tomar decisões, de decretar nos casos de disputa ou desacordo e também o poder de dar força a essas decisões. A autoridade é a própria essência da organização social” (MALINOWSKI, 1962, p. 65). Malinowski distingue as comunidades pelos diferentes graus de organização e complexidade que cada uma atingiu. A política é mais desenvolvida justamente nas sociedades mais complexas, batizadas por ele de tribos-Estados, cujo estatuto é “o da constituição não escrita, porém nunca ausente, de autoridade, poder, hierarquia e chefia”. John Keegan, professor e pesquisador de história militar, aponta em seu livro Uma História da Guerra, a passagem do povo Zulu, no século XIX, de uma condição que Malinowski certamente definiria como tribo-nação para tribo-Estado graças aos incrementos de seu poderio militar, obtidos como resultado de complexos desenvolvimentos sociais e políticos, bem como dos desdobramentos geopolíticos da época. Poderíamos citar outros que estudaram as relações entre cultura e política na formação das sociedades, mas cremos que esses exemplos são satisfatoriamente convincentes.

Desde a antiguidade até os dias atuais, pouco mudou na conexão entre cultura e política. Essas poucas mudanças foram provocadas pelas grandes transformações societárias provocadas pela modernidade estão: 1) nas formações de sociedades cada vez mais complexas e multiculturais, promovendo trocas (ora pacíficas, ora conflitantes) entre culturas distintas que passam a compartilhar e disputar os mesmos espaços de existência e produção; 2) na influência dos avanços científicos, tecnológicos, filosóficos e societários que desafiam tradições milenares. Mas, ainda que os avanços conquistados na modernidade sejam responsáveis por progressos societários que parecem ser capazes de “descolar” a política da cultura, esse descolamento nunca se efetiva por completo. Um bom exemplo é o discurso de vitória de Joe Biden. O presidente eleito em 2020 para conduzir os EUA rumo à retomada da economia, superação da crise sanitária provocada pela má gestão da pandemia de COVID-19 do governo anterior e reconquista do status de nação "chefe do mundo” terminou seu discurso com a frase: “deus proteja nossas tropas”. Ao dizer tais palavras Biden ancorou sua linha política nos significados culturais mais profundos e atávicos que formam a cultura daquela nação: o cristianismo e a guerra.

Ao desenvolver o materialismo cultural, Raymond Williams elaborou algumas categorias de análise para dar conta de suas pesquisas. Uma delas é a ideia de cultura comum, que identifica uma dialética entre conservação e progresso nas sociedades que ocorre da seguinte forma: das experiências partilhadas são selecionados valores e significados que são coligidos na forma de tradições e que são mantidos no presente para delimitar e dar sentido à vida social. As novas gerações vêm ao mundo já circunscritos a esses limites e todo o progresso vivenciado pela sociedade ocorre dentro desses marcos. Assim, as tradições dão o sentido da evolução de uma sociedade. 

Se essa é a dinâmica de conservação de uma dada cultura, Williams apresenta a dinâmica que propicia os seus progressos. Eles ocorrem por meio de indivíduos que formados e “treinados” sob uma determinada tradição provocam reflexões, criam obras, apresentam tratados et cetera que promovem debates e críticas a elementos da cultura que até então eram "naturalizados". A depender do grau de sucesso desses debates há a transformação desses elementos que serão, ao seu tempo, assimilados pela tradição e naturalizados pelo senso comum.

A categoria cultura comum foi apresentada originalmente por Raymond Williams em 1958, em sua obra Cultura e Sociedade, e ao longo de alguns anos passou por significativas atualizações e refinamentos. Acreditamos ser necessário promover mais uma atualização à ideia de cultura comum, não no sentido de corrigi-la ou mudar sua natureza, mas de permitir que ela tenha funcionalidade para a análise do fascismo. Dessa maneira, à ela acrescentamos que as contribuições dos sujeitos educados e treinados em uma dada cultura não são sempre em termos de progresso, mas também podem ser de cunho regressivo. Isso acontece, por exemplo, quando sujeitos trazem aos debates públicos valores e significados que se imaginavam superados mas que, estando submersos no senso comum - inscritos na tradição - são trazidos à superfície com força suficiente para tomar de assalto o imaginário e as práticas cotidianas, inclusive tornando-se objetos de política institucional. 

Evidentemente que há diversos fatores que estão envolvidos nesse tipo de processo, como o poder de se comunicar com amplos contingentes (daí a importância da comunicação de massa), a influência sobre instâncias e instituições políticas, investimentos necessários para se fazer ver e ouvir et cetera. Mas o fato é: 1) as culturas são formadas por camadas e mais camadas de experiências coletivas, representações, memórias, senso comum, práticas sociais et cetera, organizados segundo a sua seletividade operacional que resulta nas tradições e que são atravessadas pela ideologia dominante; 2) parte de seus valores e significados podem ser acionados e postos ao debate público por indivíduos e grupos preparados para isso e de acordo com determinadas condições propícias para tal; 3) tais debates podem provocar progressos ou retrocessos culturais nas sociedade em que ocorrem. E sob determinadas condições culturais, um sujeito ou uma organização podem manipular politicamente e com força e por muito tempo grandes massas de pessoas. 

Essa capacidade de mobilizar grandes massas de pessoas é o principal diferencial do fascismo frente às demais formas autoritárias da burguesia. Ao manipular afetos e valores culturais ele encontra caminhos mais efetivos para unificar populações ao redor de suas pautas políticas. Assim, por exemplo, o nazismo amparou seu discurso de modernização da Alemanha na mitificada ancestralidade ariana e Mussolini reivindicava a grandeza imperial da antiga Roma para seu projeto de futuro (GIARDINA, 2008).

Isso posto, retomemos a epígrafe que encabeça esse pequeno ensaio, um excerto do informe de Clara Zetkin apresentado no III Pleno Ampliado do Comitê Executivo da Internacional Comunista, em 1923. Ela afirmou acertadamente que a vitória sobre o fascismo não se obtém apenas pelas vias militares, ela só será possível e total quando também for conquistada no campo da política e da ideologia. Quando se der não apenas no confronto físico, mas também nas disputas do imaginário, da cultura, no campo das representações. É no embate pelo imaginário em que se constitui um dos principais cenários de enfrentamento ao risco sempre iminente da ascensão do fascismo. O imaginário não está descolado da produção concreta da vida; ele é a fonte das ideias que “contam no balanço da ação política e dos resultados da mudança histórica” (ANDERSON, 2007).

Até que a advertência de Zetkin seja considerada com seriedade, o fascismo será um risco sempre constante, aguardando pela próxima crise (e as crises sempre estão no horizonte do capitalismo) para emergir. O Oroboro é um símbolo mítico que remete à uma condição que nunca se transforma, posto que submetida ao “eterno retorno''. Ele é representado por uma serpente mordendo a própria cauda. Também poderia representar a relação entre fascismo e cultura, que parecem distintos, mas fazem parte do mesmo corpo que se alimenta de si mesmo. Isso, ao menos nas sociedades capitalistas em que a preservação da cultura se confunde com a manutenção de velhos valores sempre à disposição para serem capturados pela política.

 

Fascismo bolsonarista

Chegamos assim à última sessão deste breve ensaio e nele nos dedicaremos a apresentar o fenômeno do Bolsonarismo à luz do exposto acima. A recente ascensão do conservadorismo no Brasil não é obra do atual presidente da república, Jair Bolsonaro. Ao contrário, é mais correto afirmar que Bolsonaro é fruto da ascensão do conservadorismo. O fascismo não é uma novidade no Brasil: alguns anos antes da definitiva chegada de Hitler ao poder na Alemanha já havia sido constituído no Brasil uma célula do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, na cidade de Benedito Timbó, em Santa Catarina, no ano de 1928. Esta célula carregava dois importantes títulos: não apenas a primeira a ser formada fora da Alemanha, mas também criou condições para que a seção nazista no brasil fosse a maior fora da Alemanha, com 2.900 filiados registrados, sem contar simpatizantes e seguidores (DIETRICH, 2007, p. 37). O Partido Nacional Fascista italiano também manteve em solo brasileiro suas seções, chamadas de fasci all’stero, aproveitando-se do volumoso processo de emigração de italianos ocorrido desde o final do século XIX. Mas seguramente foram os Integralistas, já citados, que formaram o maior contingente de fascistas organizados do país. 

Todavia, essas experiências foram formadas nos moldes da primeira maré fascista. Bolsonaro, ainda que herdeiro daquele legado, faz parte de uma nova “linhagem” de fascismo tipicamente latino americano, apontado por Florestan Fernandes como “uma forma de fascismo de menor refinamento ideológico, que envolve menor ‘orquestração de massa’ e um aparato de propaganda mais rudimentar [...]” (FERNANDES 2015, p. 34). De qualquer maneira, a pobreza em seu refinamento ideológico e a pouca capacidade de "orquestração de massa” do fascismo-bolsonarista é muito mais provocado pela fraqueza das forças populares em resistir a ele do que a sua própria fraqueza.

Afirmamos, algumas linhas acima, que o governo Bolsonaro é fruto da ascensão do conservadorismo. Para compreender essa proposição consideremos as eleições presidenciais de 2014. Ela marcou o ascenso do conservadorismo que começou a se apresentar na esfera pública um ano antes, durante as imensas manifestações de 2013. Naquele ano, milhares de pessoas foram às ruas para protestar contra o aumento do preço das passagens de ônibus em várias cidades do país. Promovidas pelo Movimento Passe Livre (MPL), em pouco tempo as manifestações passaram a ser disputadas por grupos de extrema direita que entoavam palavras de ordem anti-esquerda e ultra-nacionalistas. A inabilidade política do MPL em lidar com a situação fez com que o coletivo deixasse a coordenação dos atos; por outro lado, a esquerda tradicional não conseguiu se colocar como direção daquela massa imensa de pessoas nas ruas. Essa conjuntura levou à total captura das manifestações pela direita e pela extrema-direita. A abrupta mudança de opinião do comentarista político do Jornal da Globo, Arnaldo Jabor ilustra perfeitamente essa captura: ao comentar no noticiário o primeiro ato na cidade de São Paulo, em 13 de junho, esbravejou que os manifestantes eram “filhos da classe média” movidos por “burrice misturada a rancor e sem rumo”. Mas poucos dias depois, em 17 de junho, retratou-se e afirmou: “uma juventude que estava calada desde 92, uma juventude que nascia quando Collor caía, acordou”. As novas pautas que tomaram as ruas combinavam uma abstrata luta contra a corrupção e o “aparelhamento” do Estado pelo Partido dos Trabalhadores, a defesa da família e da nação et cetera. Esse movimento criou uma nova “onda” nas ruas que levou à eleição, em 2014, do mais conservador congresso desde a ditadura de 1964-85, segundo o  Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (2014) que escreveu: “O Congresso eleito em 2014, renovado em 46,59% na Câmara e em 81,48% no Senado, é pulverizado partidariamente, liberal economicamente, conservador socialmente, atrasado do ponto de vista dos direitos humanos e temerário em questões ambientais”.

Foi aquele Congresso que se converteu no ninho onde a serpente do fascismo pôs seus ovos. O candidato derrotado, Aécio Neves, iniciou uma campanha de desconfiança do resultado das eleições. Os partidos do chamado “centrão” aproveitaram a deixa para tocar uma campanha de desgaste da presidenta recém-eleita através das chamadas “pautas-bombas” do Congresso Nacional. Dentre os eleitos, estava já um experiente e inexpressivo deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro, Jair Messias Bolsonaro. As “pautas-bombas” detonaram uma crise política que em pouco tempo ganhou corpo e se associou à crise econômica já em curso, ampliando-a. Não se deve esquecer que essa situação complexa contou ainda com articulações de bastidores do então vice-presidente, Michel Temer e estava em sintonia aos interesses do imperialismo estadunidense.

Esse é o processo que levou à deposição da presidenta Dilma Rousseff, em 2016. A combinação de crises política e econômica, evidentemente, não poderiam ser resolvidas apenas com a deposição dela e se estendeu para a gestão tampão de Temer. Todo esse processo gerou um “caldo de cultura” conservador que se tornou predominante naquele período e prolongou-se até às eleições seguintes, em 2018. Naquele contexto, o desgaste do Partido dos Trabalhadores alcançou também os partidos tradicionais da burguesia, inclusive e sobretudo o PSDB, o que inviabilizou a candidatura de políticos tradicionais da direita, marcando uma profunda crise de hegemonia. Foi essa crise que abriu as brechas por onde o obscuro mas astuto deputado Bolsonaro soube se fazer viável como candidato, não sobrando outra alternativa à burguesia senão apoiá-lo. Assim, combinando fortuna e virtú o candidato fez de suas excêntricas e polêmicas falas as novas bandeiras da moralidade pequeno-burguesa e apoiadas pela burguesia. 

Se esse é o resumo do percurso político de Bolsonaro ao poder, há que se considerar a outra parte desse roteiro: o seu aspecto cultural. Muito ainda se ri das chamadas fake news usadas pela campanha bolsonarista à presidência, como a “mamadeira de piroca” ou o “kit gay”, mas o fato é que esses disparates e outros mais deveriam ser levados à sério como objeto de pesquisa, pois revelam o quanto nossa cultura comum é ainda predominantemente marcada pelo nosso legado colonial. Esse legado é formado pela combinação dos diversos processos que nos constituíram como nação. O primeiro deles é o processo de ocupação do território da colônia. O povoamento não fazia parte dos planos pioneiros da colonização (latifundiários, pequenos proprietários, trabalhadores livres ou escravizados) como foi, por exemplo, para os colonos das regiões temperadas da América do Norte (SODRÉ, 1963). Mesmo o processo de interiorização, ainda incipiente nos dois primeiros séculos de ocupação do território colonial, se fez mantendo o isolamento entre os núcleos que se formam (PRADO JÚNIOR, 1994), constituindo uma cultura rústica (CANDIDO, 2010). Também podemos destacar a religião, sobretudo o catolicismo, como elemento fundamental para a formação do pensamento conservador no país. Para além da influência jesuíta no período colonial, a agitação revolucionária que atravessou boa parte do século XIX provocou um movimento interno na Igreja de Roma no sentido de proteger-se tanto da influência dos governos nacionais bem como afastar seus fiéis da organização política revolucionária, como expressou muito diretamente o papa Pio IX em diversos documentos. Não é preciso detalhar todo histórico desse processo, por isso, saltamos para 1916, no Brasil, quando da publicação da Carta Pastoral de D. Leme, considerada como ponto de partida para o movimento que ficou conhecido como neocristandade, que teve seu auge entre 1930 e 1945, durante a presidência de Getúlio Vargas (SILVA JÚNIOR, 2006). As suas principais pautas eram assegurar “a influência católica sobre o sistema educacional, a moralidade católica, o anticomunismo e o antiprotestantismo" (MAINWARING apud SILVA JÚNIOR, 2006, p. 28), bem como promover a conciliação entre as classes a partir de seu senso religioso. Mas sem qualquer dúvida, o mais pesado e espinhoso fardo do legado colonial é o escravismo. A consolidação do Brasil como nação se deu no atravessar do século XIX e amparou-se sobre os ombros de milhões de pessoas escravizadas, e constituindo um genocídio em nome do império e pelo interesse das elites nacionais (GORENDER, 1990). Esses são os mais marcantes, mas não são os únicos elementos que formam a nossa cultura comum marcadamente conservadora e que serviu de solo fértil para o fascismo bolsonarista. 

No entanto, como nos afirma Florestan, não é correto fazer uma correlação mecânica e superficial entre o legado colonial e o fascismo: aquele é herança que atravessa o tempo até nos encontrar no hoje, no presente: é uma permanência. Já o fascismo é uma forma política nova, fruto das contradições do imperialismo, parida já na segunda década do século XX. Cremos que aqui trata-se do encontro entre o que Raymond Williams chama de residual, que é aquilo que “foi efetivamente formado no passado, mas ainda está ativo no processo cultural, não só como um elemento do passado, mas como um elemento efetivo do presente” (WILLIAMS, 1979, p. 125) com o que ele designa de emergente. Sendo o legado colonial um residual, compreende-se que se trata não de algo “passado”, acabado”, mas que se apresenta continuadamente, ainda que com feições diferentes àquelas em sua origem. Como permanência, continuidade, percebemos que o colonialismo que institui nossa história se perpetua como colonialismo interno, que tem sido a máquina do capitalismo no Brasil.

O fascismo bolsonarista é, portanto, a síntese resultante do encontro entre o residual (nossa cultura comum, conservadora) e o emergente (a forma-política fascismo). A “mamadeira de piroca” que nos parece uma factóide tão ingênua e ridícula na verdade nos demonstra quais são os sentimentos que movem uma população ainda submetida a uma formação cultural de baixo nível e que teme perder as poucas certezas que tem. Uma dessas certezas que teme perder é a localização que cada um ocupa na divisão sexual da manutenção da vida, que em comunidades rurais e periféricas ainda é demasiadamente patriarcal (DURHAM, 2004). E isso é só um pequeno exemplo. Compreender essas complexas redes de significados culturais que se formam a partir de duras condições de vida de nossa população é extremamente necessário para compreendermos como foram capturadas politicamente pelo fascismo brasileiro e por ele convertida em uma massa impressionante de votos.

Isso não significa, evidentemente, que o povo brasileiro seja fascista, como querem e verbalizam muitos. Mas que enquanto estiver submetido a precárias condições materiais e imateriais de vida, ele estará ainda sujeito a ter seus valores e significados capturados politicamente pelos mais distintos aventureiros, messiânicos, salvadores da pátria e outras figuras que formam nossa triste história nacional, inclusive os fascistas. E o Oroboro continuará a morder sua própria cauda.  

 

BIBLIOGRAFIA

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

ANDERSON, Perry. As ideias e a ação política na mudança histórica. In: A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas, CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2007, pp. 401-415. http://biblioteca.clacso.edu.ar. Accessed 15 janeiro 2021.

BARBOSA, Jefferson Rodrigues. Chauvinismo e extrema direita. Crítica aos herdeiros do sigma. São Paulo: Editora UNESP, 2015.

BERTONHA, João Fábio. Sobre a direita, estudos sobre o fascismo, o nazismo e o integralismo. Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2008.

BRAY, Mark. O manual antifascista. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.

DIETRICH, Ana Maria. Nazismo tropical? O Partido Nazista no Brasil. Tese de doutorado. Janeiro 2007.

DURHAM, Eunice Ribeiro. Família e reprodução humana. In: A dinâmica da cultura. São Paulo: Cosacnaify, 2004, pp. 323-356.

FERNANDES, Florestan. Notas sobre o fascismo na América Latina. In: Poder e contrapoder na América Latina. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

FRESU, Gianni. Nas trincheiras do ocidente. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2017.

GEARY, Patrick J. O mito das nações. São Paulo: Conrad Livros, 2005.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LCT, 2008.

GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Editora Ática, 1990'.

KEEGAN, John. Uma história da guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

LENHARO, Alcir. A Sacralização da Política. Campinas: Papirus, 1986.

LUKÁCS, Georg. A destruição da razão. São Paulo: Instituto Lukács, 2020.

MARTINS, José de Souza. Capitalismo e tradicionalismo. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1975.

MARX, Karl. O capital. vol. I, São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.

MARX, Karl. O manifesto comunista de 1848. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1967.

OSÓRIO, Jaime. O estado no centro da mundialização - a sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Expressão Popular, 2019.

PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e existência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

POULANTZAS, Nicos. As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.

________. Fascismo e ditadura. vol. I e II, Porto: Portucalense Editora, 1972.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório. São Paulo: Companhia das Letras, 2000

SANTOS, Theotonio dos. Socialismo ou fascismo, o novo caráter da dependência e o dilema latino-americano. Florianópolis: Insular, 2018.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Os fascismos. In: O século XX, vol. II, Civilização Brasileira, 2005, pp. 109-163.

SILVA JÚNIOR, Alfredo Moreira. CATOLICISMO, PODER E TRADIÇÃO: um estudo sobre as ações do conservadorismo católico brasileiro durante o bispado de D. Geraldo Sigaud em Jacarezinho (1947-1961). Dissertação de Mestrado. Disponível em <https://drive.google.com/file/d/1EjXtqir2jJqrr8mjDhVOqZNtuMkvnTEm/view?usp=sharing>

SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1963.

WILLIAMS, Raymond. Base e superestrutura na teoria da cultura marxista. In: Cultura e materialismo. São Paulo: Editora UNESP, 2011, pp. 42 - 68.

WILLIAMS, Raymond. A cultura é algo comum. In: Recursos da esperança. São Paulo: Editora UNESP, 2014, pp. 3-28.

WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.

WILLIAMS, Raymond. A ideia de uma cultura comum. In: Recursos da esperança. São Paulo: Editora UNESP, 2014, pp. 49-57.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

ZETKIN, Clara. A luta contra o fascismo. In: Como nasce e morre o fascismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2019, pp. 32-75.

Nenhum comentário: