Luiz Carlos Checchia
Diversitas-FFLCH/USP
luiz.checchia@gmail.com
“Não, de forma alguma o Fascismo é a
vingança da burguesia contra o levante militante do proletariado. Em termos
históricos, visto de forma objetiva, o fascismo apresenta-se muito mais como
uma punição pelo fato de que o proletariado não tenha sustentado e aprofundado
a revolução que foi iniciada na Rússia. E a base do fascismo não repousa sobre
uma pequena casta, mas em amplas camadas sociais, grandes massas, inclusive o
proletariado. Devemos entender essas diferenças essenciais se quisermos lidar
com o fascismo de forma bem sucedida. Meios militares, por si só, não poderão
subjugá-lo, se puder usar esse termo; é necessário combatê-lo até sua queda
também política e ideologicamente”
Clara Zetkin
“Lá vem os eleitores, em massa;
deram cem por cento dos votos a quem os torturam. Não têm pão, não têm
manteiga, não têm casaco.
Votaram no führer”
Terror e
Miséria no III Reich
Bertolt Brecht
Nas últimas décadas
temos acompanhado a constituição de governos de extrema-direita em diversas
nações, tais como Hungria, Polônia, Ucrânia, EUA e Brasil, bem como a ascensão
de lideranças e partidos desse campo político, como na Espanha e França. Esses fenômenos
reavivaram o debate acerca do fascismo. Ainda que se trate de um debate longe
de se esgotar, partimos do princípio de que há uma nova maré fascista em
curso, determinada pela atual conjuntura das dinâmicas da luta de classe em
escala geopolítica; em outros termos, em função das atuais dinâmicas do
imperialismo. Empreender esforços de colaboração para esse debate nos exige,
portanto, que consideremos o que escreveu o historiador brasileiro Francisco
Teixeira:
[...] assim, a ressurgência do fascismo nos obriga a lançar mais de um
novo arsenal teórico e de novos métodos que possam explicar as duas marés
fascistas (anos 20/30 e anos 90) ocorridas em nosso século e, mesmo, unificar a
teoria explicativa do fascismo, pensando-o em termos mais fenomenológicos,
enquanto modelo de reação, organização e participação de amplas camadas
populares nas modernas sociedades industriais ou em transição à industrialização,
e muito menos em fenômeno específico da história alemã ou italiana dos anos 20
(SILVA, 2005, p. 121).
Este pequeno ensaio é
parte das considerações e reflexões acerca da questão do fascismo, sobretudo no
Brasil governado por Bolsonaro e, ainda, em um campo social específico: a
cultura. Acreditamos, ainda, que o fascismo é uma forma política viável,
parte da luta de classes no capitalismo e sempre à espreita, esperando um
momento para emergir como força política. Esta investigação se dá, portanto, no
sentido de compreender a relação entre política e cultura e, mais
especificamente, como a forma política fascismo se conecta com imensa
massa de nossa população conquistando corações e mentes e agenciando valores e
significados que lhe são próprios.
Fascismo
O fascismo ainda é
uma questão que provoca acirradas controvérsias no campo da pesquisa teórica.
Muitos pesquisadores se debruçaram sobre o tema tentando compreendê-lo sob
diversos prismas e postulados. O filósofo da política italiano Gianni Fresu aponta
em seu livro Nas Trincheiras do Ocidente que as abordagens e análises sobre
o fascismo podem ser agrupadas em três grandes campos interpretativos. A
Primeira Guerra Mundial tem centralidade no primeiro desses campos, pois aquele
conflito teria destruído a auto-imagem da burguesia europeia que até então se
percebia como a mais evoluída civilização sobre a terra. No entanto, ela viu
sua criação política, o liberalismo, sendo insuficiente para evitar a
carnificina da guerra de trincheiras. Viu, ainda, seu extraordinário
desenvolvimento técnico produzindo instrumentos de dor e extermínio. Dos campos
de batalha surgiu a barbárie que pôs em escombros os prédios e as ilusões de
sofisticação da cultura europeia. Desses escombros emergiu, então, o fascismo
como expressão política de uma “doença moral da Europa''. Outro desses
campos interpretativos afirma que as nações em atraso na competição
capitalista podem encontrar no autoritarismo um expediente que lhes garanta a
estabilidade política necessária para acelerar seu progresso, sendo o fascismo
então um “produto lógico e inevitável do desenvolvimento de alguns países”.
Por fim, há o campo interpretativo que reúne as análises que afirmam ser o
fascismo uma forma de reação da burguesia contra o avanço da organização e da
luta política da classe trabalhadora, sendo então o fascismo “produto da
sociedade capitalista e como reação antiproletária” (FRESU, 2017).
Percebemos que a
disputa política pelo Estado está na centralidade de todos os três campos
interpretativos apresentados. O debate gira, então, em torno das reflexões e
ações de homens e organizações já constituídas e operando conscientemente as
escaramuças pelo poder, arrastando atrás de si as massas populares que os
apoiam e os defendem até, em muitos casos, o limite da barbárie. O que o
advento do bolsonarismo nos mostra é que até o mais pacato dos nossos
familiares pode se tornar o defensor de uma doutrina tão rasa quanto mortal.
Por isso, tão importante quanto compreender a disputa pelo controle do Estado é
entender porque as massas populares se tornam defensores caninos dos fascistas
e suas organizações. Acreditamos que é na relação entre cultura e política onde
encontraremos alguns indícios explicativos dessa situação.
Assim, passamos a
apresentar uma contribuição ao entendimento sobre o fascismo, ainda que
esquemática, oferecendo uma definição de sua dinâmica à luz das experiências
das, agora, três marés fascistas. O primeiro ponto que destacamos é a
relação entre as classes sociais que se formam no capitalismo. Ao longo da
história a luta de classes forjou as duas grandes classes que Marx identifica
n’O
Manifesto Comunista, e que
se distinguem entre os que possuem e os que não possuem os meios de produção.
Mas é preciso fazer a dialética entre o Marx que escreve O Manifesto e o Marx que analisa
experiências históricas particulares, como o faz no 18 de Brumário de Luís
Bonaparte, para que possamos perceber a distinção entre as classes e
suas expressões políticas. O Manifesto é uma análise histórica de longuíssima
duração, um olhar panorâmico sobre as relações humanas. Por isso, o que se
mostra são somente os traços principais dessa paisagem, ou seja, as duas
grandes classes em disputa: a dominante e a dominada. Mas no 18
de Brumário Marx faz uma análise minuciosa do capitalismo em um
contexto específico, o golpe perpetrado por Luís Bonaparte na França do século
XIX. Por se tratar de um olhar focado, percebemos um número maior de classes
que se formam no entorno da disputa pelo Estado (OSÓRIO, 2019). Podemos dizer
que as classes se formam a partir de suas localizações no conjunto da divisão
social do trabalho, ou seja, em relação no âmbito do que Poulantzas definiu
como determinação estrutural de classe. Mas na luta política essas
classes se manifestam de formas diversificadas e complexas, assumindo distintas
posições de classe na conjuntura (POULANTZAS, 1975). Isso significa que
não há uma correspondência direta e mecânica entre os operadores políticos e as
classes que representam. É por isso que tanto o fascismo quanto o liberalismo
atuam no interesse da burguesia, mas o fazem por caminhos politicamente e
culturalmente diferentes e assim disputam entre si o controle do aparato de
Estado, mas sem que ele deixe de ser, ao fim e ao cabo, um Estado burguês.
Mesmo a social-democracia, em que pese sua base assentar na classe
trabalhadora, ao não propor a superação do capitalismo, acaba também por pôr-se
a serviço dos interesses da burguesia (PRZEWORSKI, 1991). Assim, análises sobre
o fascismo precisam iniciar-se em sua classe política de origem, a pequena
burguesia.
A pequena burguesia
cria sua ideologia combinando referências e influências que carrega das duas
principais classes, sem deixar de manter-se em luta contra elas. Ela se opõe ao
grande capital pois o considera um “competidor desleal” que utiliza do seu
poderio econômico para impedir a livre-concorrência. Também se contrapõe à
classe trabalhadora, pois ela também cria dificuldades para o seu
desenvolvimento econômico graças à sua capacidade de organização política em
seus sindicatos, associações, partidos et cetera. A ideologia que a
pequena burguesia formou para si reflete, predominantemente, sua condição de
existência no capitalismo: fragmentada, individualizada, atomizada, constantemente
em disputa contra todos. Conservadora, idealista e geralmente sem perspectivas
sociais de longo prazo.
Todavia, estando a polarização
entre classes centrada nas disputas entre burguesia e trabalhadores, a
pequena burguesia tem pouca expressividade política quando em tempos de
relativa tranquilidade. A situação muda quando ocorre uma crise de hegemonia,
ou seja, quando a combinação de crises econômica e política chega em um grau
tão crítico que nem os representantes da burguesia e nem os da classe
trabalhadora conseguem angariar a confiança e o apoio da população para
resolvê-la. Via de regra, a democracia liberal precisa do relativo apoio da
população para garantir a estabilidade de um governo, por isso, a falta de
confiança popular para um ou outro lado dessa balança cria um vácuo na direção
do Estado. Essa é situação que propicia as condições para a pequena burguesia
tornar-se uma força política autônoma, apresentando-se para a disputa política
pelo Estado. Nesse cenário, ela precisa se destacar das demais forças
políticas, o que a impele para uma agenda cada vez mais agressiva e que
potencializa o voluntarismo e o conservadorismo que demarcam sua ideologia,
formando-se em fascismo. Instalada essa situação de disputa política, os
fascistas, podem, por fim, chegar ao poder, como ocorreu na Alemanha, na
Itália, Portugal e Espanha, nas primeiras décadas do século XX, e quase ocorreu
em outras nações europeias, como na Hungria, nas eleições de 1936, na Romênia,
nas eleições de 1937, na Bélgica, nas eleições de 1936 e na trajetória do
coronel François la Roque e seu Parti Social Français, que ao longo da
segunda metade dos anos de 1930 se constituiu como uma das mais influentes
forças políticas da França (PAXTON, 2007). Também devemos considerar a penetração
e influência que teve a Ação Integralista Brasileira que manteve núcleos
espalhados por todo o país, organizando mais de um milhão de filiados
(BERTONHA, 2008). Os integralistas dispunham de escolas, centros assistenciais
e uma poderosa agência de comunicação, a Sigma Jornaes Associados, que
em 1934 reunia e coordenava 88 diferentes publicações que se abrangiam quase
todo o território nacional.
No entanto, e isso é
preponderante, o fascismo, não almejando a superação do capitalismo, atende, ao
fim e ao cabo, aos interesses da burguesia.
Esta foi a descrição
genérica do que designamos por circunstância fascista, ou seja, um
determinado contexto da luta de classes que combina a crise de hegemonia e a
ascensão da pequena burguesia à condição de força política em condições de
disputar o Estado. Apresentamos acima, ainda que esquematicamente, o processo
de ascensão do fascismo. Agora, passamos a observá-lo por outro ângulo, o da
cultura; ou melhor explicando, como o fascismo se apropria do construto cultural
de uma sociedade para manipular os afetos e angariar a confiança e o apoio de
sua população. Para empreender essa análise tomaremos por base teórica o materialismo
cultural formulado por Raymond Williams.
Cultura, Política e Fascismo
O que propomos aqui é
uma análise do fascismo a partir de um campo teórico específico, o materialismo
cultural de Raymond Williams, que o definiu como “uma teoria das
especificidades da produção cultural e literária material, dentro do
materialismo histórico” (WILLIAMS, 1977, p.12). Isso significa tratar da
dialética entre cultura e política como constituintes das
sociedades e não apenas como suas expressões. O fato é que mais do que uma
estreita e íntima relação entre ambos, cultura e política se formam mutuamente
e estabelecem as mediações de convivência social. A esse respeito escreveu o
antropólogo Clifford Geertz:
A cultura é
melhor vista não como complexos de padrões concretos de comportamento -
costumes, usos, tradições, feixes de hábitos -, como tem sido o caso até agora,
mas como um conjunto de mecanismos de controle [...]. A perspectiva da cultura
como ‘mecanismo de controle’ inicia-se com o pressuposto de que o pensamento
humano é basicamente tanto social como público - que seu ambiente natural é o
pátio familiar, o mercado e a praça da cidade (GEERTZ, 2008).
Geertz percebe a
cultura não como mera expressão da vida social, mas como seu próprio
ordenamento, e é dele que surge a política. Não é de agora que esse ordenamento
tornou-se o embrião da política: desde a idade do bronze essa relação já havia
sido estabelecida quando os antigos clãs e tribos formaram as primeiras
cidades-estados. Também Malinowski demarca o papel organizador da cultura nas
sociedades humanas. O antropólogo polonês observou que “tanto nas comunidades
primitivas como nas civilizadas, verificamos que em primeiro lugar toda ação
humana efetiva conduz ao comportamento organizado” (MALINOWSKI, 1962, p. 56). A
organização se faz por meio de instituições estabelecidas por cada
comunidade. Essas instituições são animadas por diferentes princípios
do qual destacamos o da autoridade, que constitui o “privilégio e o
dever de tomar decisões, de decretar nos casos de disputa ou desacordo e também
o poder de dar força a essas decisões. A autoridade é a própria essência da
organização social” (MALINOWSKI, 1962, p. 65). Malinowski distingue as
comunidades pelos diferentes graus de organização e complexidade que cada uma
atingiu. A política é mais desenvolvida justamente nas sociedades mais
complexas, batizadas por ele de tribos-Estados, cujo estatuto é “o da
constituição não escrita, porém nunca ausente, de autoridade, poder, hierarquia
e chefia”. John Keegan, professor e pesquisador de história militar, aponta em
seu livro Uma História da Guerra, a passagem do povo Zulu, no século
XIX, de uma condição que Malinowski certamente definiria como tribo-nação
para tribo-Estado graças aos incrementos de seu poderio militar, obtidos
como resultado de complexos desenvolvimentos sociais e políticos, bem como dos
desdobramentos geopolíticos da época. Poderíamos citar outros que estudaram as
relações entre cultura e política na formação das sociedades, mas cremos que
esses exemplos são satisfatoriamente convincentes.
Desde a antiguidade
até os dias atuais, pouco mudou na conexão entre cultura e política. Essas
poucas mudanças foram provocadas pelas grandes transformações societárias
provocadas pela modernidade estão: 1) nas formações de sociedades cada vez mais
complexas e multiculturais, promovendo trocas (ora pacíficas, ora conflitantes)
entre culturas distintas que passam a compartilhar e disputar os mesmos espaços
de existência e produção; 2) na influência dos avanços científicos,
tecnológicos, filosóficos e societários que desafiam tradições milenares. Mas,
ainda que os avanços conquistados na modernidade sejam responsáveis por
progressos societários que parecem ser capazes de “descolar” a política da
cultura, esse descolamento nunca se efetiva por completo. Um bom exemplo é o
discurso de vitória de Joe Biden. O presidente eleito em 2020 para conduzir os
EUA rumo à retomada da economia, superação da crise sanitária provocada pela má
gestão da pandemia de COVID-19 do governo anterior e reconquista do status de
nação "chefe do mundo” terminou seu discurso com a frase: “deus proteja
nossas tropas”. Ao dizer tais palavras Biden ancorou sua linha política nos
significados culturais mais profundos e atávicos que formam a cultura daquela
nação: o cristianismo e a guerra.
Ao desenvolver o materialismo
cultural, Raymond Williams elaborou algumas categorias de análise
para dar conta de suas pesquisas. Uma delas é a ideia de cultura comum,
que identifica uma dialética entre conservação e progresso nas
sociedades que ocorre da seguinte forma: das experiências partilhadas são
selecionados valores e significados que são coligidos na forma de tradições
e que são mantidos no presente para delimitar e dar sentido à
vida social. As novas gerações vêm ao mundo já circunscritos a esses limites e
todo o progresso vivenciado pela sociedade ocorre dentro desses marcos. Assim,
as tradições dão o sentido da evolução de uma sociedade.
Se essa é a dinâmica
de conservação de uma dada cultura, Williams apresenta a dinâmica que propicia
os seus progressos. Eles ocorrem por meio de indivíduos que formados e
“treinados” sob uma determinada tradição provocam reflexões, criam obras,
apresentam tratados et cetera que promovem debates e críticas a
elementos da cultura que até então eram "naturalizados". A depender
do grau de sucesso desses debates há a transformação desses elementos que
serão, ao seu tempo, assimilados pela tradição e naturalizados pelo
senso comum.
A categoria cultura
comum foi apresentada originalmente por Raymond Williams em 1958, em sua
obra Cultura e Sociedade, e ao longo de alguns anos passou por
significativas atualizações e refinamentos. Acreditamos ser necessário promover
mais uma atualização à ideia de cultura comum, não no sentido de
corrigi-la ou mudar sua natureza, mas de permitir que ela tenha funcionalidade
para a análise do fascismo. Dessa maneira, à ela acrescentamos que as
contribuições dos sujeitos educados e treinados em uma dada cultura não são
sempre em termos de progresso, mas também podem ser de cunho regressivo.
Isso acontece, por exemplo, quando sujeitos trazem aos debates públicos
valores e significados que se imaginavam superados mas que, estando submersos
no senso comum - inscritos na tradição - são trazidos à superfície com
força suficiente para tomar de assalto o imaginário e as práticas cotidianas,
inclusive tornando-se objetos de política institucional.
Evidentemente que há
diversos fatores que estão envolvidos nesse tipo de processo, como o poder de
se comunicar com amplos contingentes (daí a importância da comunicação de
massa), a influência sobre instâncias e instituições políticas, investimentos
necessários para se fazer ver e ouvir et cetera.
Mas o fato é: 1) as culturas são formadas por camadas e mais camadas de
experiências coletivas, representações, memórias, senso comum, práticas sociais
et cetera, organizados segundo a sua
seletividade operacional que resulta nas tradições e que são atravessadas pela
ideologia dominante; 2) parte de seus valores e significados podem ser
acionados e postos ao debate público por indivíduos e grupos preparados para
isso e de acordo com determinadas condições propícias para tal; 3) tais debates
podem provocar progressos ou retrocessos culturais nas sociedade em que
ocorrem. E sob determinadas condições culturais, um sujeito ou uma organização
podem manipular politicamente e com força e por muito tempo grandes massas de
pessoas.
Essa capacidade de
mobilizar grandes massas de pessoas é o principal diferencial do fascismo
frente às demais formas autoritárias da burguesia. Ao manipular afetos e
valores culturais ele encontra caminhos mais efetivos para unificar populações
ao redor de suas pautas políticas. Assim, por exemplo, o nazismo amparou seu
discurso de modernização da Alemanha na mitificada ancestralidade ariana e
Mussolini reivindicava a grandeza imperial da antiga Roma para seu projeto de
futuro (GIARDINA, 2008).
Isso posto, retomemos
a epígrafe que encabeça esse pequeno ensaio, um excerto do informe de Clara
Zetkin apresentado no III Pleno Ampliado do Comitê Executivo da Internacional
Comunista, em 1923. Ela afirmou acertadamente que a vitória sobre o fascismo
não se obtém apenas pelas vias militares, ela só será possível e total quando
também for conquistada no campo da política e da ideologia.
Quando se der não apenas no confronto físico, mas também nas disputas do
imaginário, da cultura, no campo das representações. É no embate pelo
imaginário em que se constitui um dos principais cenários de enfrentamento ao
risco sempre iminente da ascensão do fascismo. O imaginário não está descolado
da produção concreta da vida; ele é a fonte das ideias que “contam no balanço
da ação política e dos resultados da mudança histórica” (ANDERSON, 2007).
Até que a advertência
de Zetkin seja considerada com seriedade, o fascismo será um risco sempre
constante, aguardando pela próxima crise (e as crises sempre estão no horizonte
do capitalismo) para emergir. O Oroboro é um símbolo mítico que remete à uma
condição que nunca se transforma, posto que submetida ao “eterno retorno''. Ele
é representado por uma serpente mordendo a própria cauda. Também poderia
representar a relação entre fascismo e cultura, que parecem distintos, mas fazem
parte do mesmo corpo que se alimenta de si mesmo. Isso, ao menos nas sociedades
capitalistas em que a preservação da cultura se confunde com a manutenção de
velhos valores sempre à disposição para serem capturados pela política.
Fascismo bolsonarista
Chegamos assim à
última sessão deste breve ensaio e nele nos dedicaremos a apresentar o fenômeno
do Bolsonarismo à luz do exposto acima. A recente ascensão do conservadorismo
no Brasil não é obra do atual presidente da república, Jair Bolsonaro. Ao
contrário, é mais correto afirmar que Bolsonaro é fruto da ascensão do
conservadorismo. O fascismo não é uma novidade no Brasil: alguns anos antes da
definitiva chegada de Hitler ao poder na Alemanha já havia sido constituído no
Brasil uma célula do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, na
cidade de Benedito Timbó, em Santa Catarina, no ano de 1928. Esta célula
carregava dois importantes títulos: não apenas a primeira a ser formada fora da
Alemanha, mas também criou condições para que a seção nazista no brasil fosse a
maior fora da Alemanha, com 2.900 filiados registrados, sem contar
simpatizantes e seguidores (DIETRICH, 2007, p. 37). O Partido Nacional Fascista
italiano também manteve em solo brasileiro suas seções, chamadas de fasci
all’stero, aproveitando-se do volumoso processo de emigração de italianos
ocorrido desde o final do século XIX. Mas seguramente foram os Integralistas,
já citados, que formaram o maior contingente de fascistas organizados do
país.
Todavia, essas
experiências foram formadas nos moldes da primeira maré fascista.
Bolsonaro, ainda que herdeiro daquele legado, faz parte de uma nova “linhagem”
de fascismo tipicamente latino americano, apontado por Florestan Fernandes como “uma forma de fascismo de menor refinamento
ideológico, que envolve menor ‘orquestração de massa’ e um aparato de
propaganda mais rudimentar [...]” (FERNANDES 2015, p. 34). De qualquer maneira,
a pobreza em seu refinamento ideológico e a pouca capacidade de
"orquestração de massa” do fascismo-bolsonarista é muito mais provocado
pela fraqueza das forças populares em resistir a ele do que a sua própria
fraqueza.
Afirmamos, algumas
linhas acima, que o governo Bolsonaro é fruto da ascensão do conservadorismo.
Para compreender essa proposição consideremos as eleições presidenciais de
2014. Ela marcou o ascenso do conservadorismo que começou a se apresentar na
esfera pública um ano antes, durante as imensas manifestações de 2013. Naquele
ano, milhares de pessoas foram às ruas para protestar contra o aumento do preço
das passagens de ônibus em várias cidades do país. Promovidas pelo Movimento
Passe Livre (MPL), em pouco tempo as manifestações passaram a ser disputadas
por grupos de extrema direita que entoavam palavras de ordem anti-esquerda e
ultra-nacionalistas. A inabilidade política do MPL em lidar com a situação fez
com que o coletivo deixasse a coordenação dos atos; por outro lado, a esquerda
tradicional não conseguiu se colocar como direção daquela massa imensa de
pessoas nas ruas. Essa conjuntura levou à total captura das manifestações pela
direita e pela extrema-direita. A abrupta mudança de opinião do comentarista
político do Jornal da Globo, Arnaldo Jabor ilustra perfeitamente essa captura:
ao comentar no noticiário o primeiro ato na cidade de São Paulo, em 13 de
junho, esbravejou que os manifestantes eram “filhos da classe média”
movidos por “burrice misturada a rancor e sem rumo”. Mas poucos dias
depois, em 17 de junho, retratou-se e afirmou: “uma juventude que estava
calada desde 92, uma juventude que nascia quando Collor caía, acordou”. As
novas pautas que tomaram as ruas combinavam uma abstrata luta contra a
corrupção e o “aparelhamento” do Estado pelo Partido dos Trabalhadores, a
defesa da família e da nação et cetera. Esse movimento criou uma nova
“onda” nas ruas que levou à eleição, em 2014, do mais conservador congresso
desde a ditadura de 1964-85, segundo o Departamento Intersindical de
Assessoria Parlamentar (2014) que escreveu: “O Congresso eleito em 2014,
renovado em 46,59% na Câmara e em 81,48% no Senado, é pulverizado
partidariamente, liberal economicamente, conservador socialmente, atrasado do
ponto de vista dos direitos humanos e temerário em questões ambientais”.
Foi aquele Congresso
que se converteu no ninho onde a serpente do fascismo pôs seus ovos. O
candidato derrotado, Aécio Neves, iniciou uma campanha de desconfiança do
resultado das eleições. Os partidos do chamado “centrão” aproveitaram a deixa
para tocar uma campanha de desgaste da presidenta recém-eleita através das
chamadas “pautas-bombas” do Congresso Nacional. Dentre os eleitos, estava já um
experiente e inexpressivo deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro, Jair
Messias Bolsonaro. As “pautas-bombas” detonaram uma crise política que em pouco
tempo ganhou corpo e se associou à crise econômica já em curso, ampliando-a.
Não se deve esquecer que essa situação complexa contou ainda com articulações
de bastidores do então vice-presidente, Michel Temer e estava em sintonia aos interesses
do imperialismo estadunidense.
Esse é o processo que
levou à deposição da presidenta Dilma Rousseff, em 2016. A combinação de crises
política e econômica, evidentemente, não poderiam ser resolvidas apenas com a
deposição dela e se estendeu para a gestão tampão de Temer. Todo esse processo
gerou um “caldo de cultura” conservador que se tornou predominante naquele
período e prolongou-se até às eleições seguintes, em 2018. Naquele contexto, o
desgaste do Partido dos Trabalhadores alcançou também os partidos tradicionais
da burguesia, inclusive e sobretudo o PSDB, o que inviabilizou a candidatura de
políticos tradicionais da direita, marcando uma profunda crise de hegemonia.
Foi essa crise que abriu as brechas por onde o obscuro mas astuto deputado Bolsonaro
soube se fazer viável como candidato, não sobrando outra alternativa à
burguesia senão apoiá-lo. Assim, combinando fortuna e virtú o
candidato fez de suas excêntricas e polêmicas falas as novas bandeiras da
moralidade pequeno-burguesa e apoiadas pela burguesia.
Se esse é o resumo do
percurso político de Bolsonaro ao poder, há que se considerar a outra parte
desse roteiro: o seu aspecto cultural. Muito ainda se ri das chamadas fake
news usadas pela campanha bolsonarista à presidência, como a “mamadeira de
piroca” ou o “kit gay”, mas o fato é que esses disparates e outros mais
deveriam ser levados à sério como objeto de pesquisa, pois revelam o quanto
nossa cultura comum é ainda predominantemente marcada pelo nosso legado
colonial. Esse legado é formado pela combinação dos diversos processos que nos
constituíram como nação. O primeiro deles é o processo de ocupação do
território da colônia. O povoamento não fazia parte dos planos pioneiros da
colonização (latifundiários, pequenos proprietários, trabalhadores livres ou
escravizados) como foi, por exemplo, para os colonos das regiões temperadas da
América do Norte (SODRÉ, 1963). Mesmo o processo de interiorização, ainda
incipiente nos dois primeiros séculos de ocupação do território colonial, se
fez mantendo o isolamento entre os núcleos que se formam (PRADO JÚNIOR, 1994),
constituindo uma cultura rústica (CANDIDO, 2010). Também podemos
destacar a religião, sobretudo o catolicismo, como elemento fundamental para a
formação do pensamento conservador no país. Para além da influência jesuíta no
período colonial, a agitação revolucionária que atravessou boa parte do século
XIX provocou um movimento interno na Igreja de Roma no sentido de proteger-se
tanto da influência dos governos nacionais bem como afastar seus fiéis da
organização política revolucionária, como expressou muito diretamente o papa
Pio IX em diversos documentos. Não é preciso detalhar todo histórico desse
processo, por isso, saltamos para 1916, no Brasil, quando da publicação da
Carta Pastoral de D. Leme, considerada como ponto de partida para o movimento
que ficou conhecido como neocristandade, que teve seu auge entre 1930 e
1945, durante a presidência de Getúlio Vargas (SILVA JÚNIOR, 2006). As suas
principais pautas eram assegurar “a influência católica sobre o sistema
educacional, a moralidade católica, o anticomunismo e o
antiprotestantismo" (MAINWARING apud
SILVA JÚNIOR, 2006, p. 28), bem como promover a conciliação entre as classes a
partir de seu senso religioso. Mas sem qualquer dúvida, o mais pesado e
espinhoso fardo do legado colonial é o escravismo. A consolidação do Brasil
como nação se deu no atravessar do século XIX e amparou-se sobre os ombros de
milhões de pessoas escravizadas, e constituindo um genocídio em nome do império
e pelo interesse das elites nacionais (GORENDER, 1990). Esses são os mais
marcantes, mas não são os únicos elementos que formam a nossa cultura comum
marcadamente conservadora e que serviu de solo fértil para o fascismo
bolsonarista.
No entanto, como nos
afirma Florestan, não é correto fazer uma correlação mecânica e superficial
entre o legado colonial e o fascismo: aquele é herança que atravessa o tempo
até nos encontrar no hoje, no presente: é uma permanência. Já o fascismo é uma forma
política nova, fruto das contradições do imperialismo, parida já na segunda
década do século XX. Cremos que aqui trata-se do encontro entre o que Raymond
Williams chama de residual, que é aquilo que “foi efetivamente formado
no passado, mas ainda está ativo no processo cultural, não só como um elemento
do passado, mas como um elemento efetivo do presente” (WILLIAMS, 1979, p. 125)
com o que ele designa de emergente. Sendo o legado colonial um residual,
compreende-se que se trata não de algo “passado”, acabado”, mas que se
apresenta continuadamente, ainda que com feições diferentes àquelas em sua
origem. Como permanência, continuidade, percebemos que o colonialismo que
institui nossa história se perpetua como colonialismo interno, que tem
sido a máquina do capitalismo no Brasil.
O fascismo
bolsonarista é, portanto, a síntese resultante do encontro entre o residual
(nossa cultura comum, conservadora) e o emergente (a
forma-política fascismo). A “mamadeira de piroca” que nos parece uma factóide
tão ingênua e ridícula na verdade nos demonstra quais são os sentimentos que
movem uma população ainda submetida a uma formação cultural de baixo nível e
que teme perder as poucas certezas que tem. Uma dessas certezas que teme perder
é a localização que cada um ocupa na divisão sexual da manutenção da vida, que
em comunidades rurais e periféricas ainda é demasiadamente patriarcal (DURHAM,
2004). E isso é só um pequeno exemplo. Compreender essas complexas redes de
significados culturais que se formam a partir de duras condições de vida de
nossa população é extremamente necessário para compreendermos como foram
capturadas politicamente pelo fascismo brasileiro e por ele convertida em uma
massa impressionante de votos.
Isso não significa, evidentemente, que o povo brasileiro seja fascista,
como querem e verbalizam muitos. Mas que enquanto estiver submetido a precárias
condições materiais e imateriais de vida, ele estará ainda sujeito a ter seus
valores e significados capturados politicamente pelos mais distintos
aventureiros, messiânicos, salvadores da pátria e outras figuras que formam
nossa triste história nacional, inclusive os fascistas. E o Oroboro continuará
a morder sua própria cauda.
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