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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Alguns apontamentos para entender certos processos de birutagem do homem contemporâneo e proposições estéticas enlouquecidas

Alguns apontamentos para entender certos processos de birutagem do homem contemporâneo e proposições estéticas enlouquecidas[1]
Eu posso o que pode o pensamento.
(frase francesa, bastante recorrente aos idealistas de todos os tempos.)
            No século XIX, premido por inúmeras dificuldades (em meio a um processo de mudança de mentalidades - que pressupõe o arbítrio, mas não aquele aludido de modo religioso), o homem, estimulado por inúmeras questões, questiona a existência de Deus.
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            Na chamada belle époque (por volta de 1870 a 1914) passando ao largo da experiência russo soviética - Revolução Russa (1905-1917) e a vitória dos "vermelhos" (bolcheviques), parte do Naturalismo e, também, as vanguardas históricas, como o Futurismo, Cubo-futurismo, Expressionismo, Dadaísmo e Surrealismo contestam, mais e menos, a forma hegemônica do drama. A mimese é paulatinamente abandonada para, em seu lugar, a diegése (narração) e a performance serem desenvolvidas. Tais expedientes reaparecem por necessidades de novas relações  serem buscadas.
            A perda do caráter estético pelo "império do simulacro", como se referiam alguns simbolistas, contraposta pela irreverência paródico-debochado - de modos mais e menos controlados - convulsiona todos os parâmetros estéticos canônicos. Tendo em vista os processos de dissolvência por que passava o mundo, o teatro, por intermédio das vanguardas, reteatraliza-se e volta a ser teatro, debochado, performático, assume-se representação, provocação, choque. Em muitos casos, a destruição da quarta parede vem assumida e metateatralizada; por conta de os velhos cânones do teatro não darem mais conta sequer de inexpugnáveis e abissais processos de tantos duplos do homem.
            Entre Karl Marx, Arthur Schopenhauer e Augusto Comte, muitos serão os duplos "colados ao homem"; a partir destes - e cujos objetivos e concepções são os mais diferenciados, outros tantos, apologistas do apocalipse contemporâneo surgem: Heidegger, Sartre, Camus, Barthes... O homem cindido por guerras - revoluções, levantes, niilismos, spleens de diferentes naturezas, mesmo nas mais numéricas fileiras - vaga sozinho, absolutamente desesperançado, impotente. Entre Atlas e Prometeu, Sísifo preenche as lacunas de tantas paisagens inóspitas e catastróficas, na aparência e na realidade devastadas.
            Múltiplos males estares da civilização.
            Drummond no épico Tempo de partido insiste que vivemos em um tempo de homens partidos, já Fernando Pessoa, atravessado por Álvaro de Campos, acidamente afirma: "[...] conheceram-me logo por quem não era, não desmenti e perdi-me."
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            A arte do século XIX, dividida genericamente entre certa arte social (social art) e arte pela arte (l'art por l'art) cria inúmeras trincheiras para marcar, feito machos no cio, territórios, fatias de espaço. Novas tipologias, novas topografias... O palco redimensiona-se. Manifestos aparecem antes de as obras surgirem. Desde Victor Hugo, passando por Zola, as obras artísticas apresentam seu a que viemos. Marcam seus terrenos por onde as trocas simbólicas devem acontecer.
            Invadida literalmente a "cidade luz" pelos nazistas, Jean-Paul Sartre, em 1943, tem publicada sua obra O ser e o nada. Homens nadificados e em estado de suspensão, desesperançados das razões de ser. A liberdade de um concerne à de todos. Surge, ainda que sem manifestos, interesses comuns, aproximações de seus artistas, o teatro dito da absurdidade (tomando de empréstimo conceito da obra de Albert Camus), como manifestação sufocante, catastrófica, de memória traumática. Daí, a estupidificação descompromissada do Dadaísmo, em sua apologia de negação a tudo: redimensiona-se; apologias ir refreadas ao onírico (dogmatizado por Breton) buscado pelos mais heterodoxos expedientes; aliada à consciência arquetípica do "nada a fazer" resulta em sua superconsciência: a vida e a arte negadas em processos vitais precisam ser (re)ritualizadas em grandes coletivos e grandes cerimoniais improvisacionais e psicodramáticos. Dessa necessidade surge, em 1960, no Café de la Paix (na Praça de l' Ópera, em Paris), para os iniciados ou para aqueles que quisessem iniciar-se, o, então, teatro pânico.
            Importante não esquecer que desde Büchner - e as questões da marionetização, do grotesco e do patetismo das figuras do último romantismo - a obra perde o caráter crível para tornar-se pesadelo.
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            Originalmente, a partir de um grupo denominado Burlesque (juntando o burlesco e o gongórico[2], os já multiartistas e primeiros arautos da tendência: Fernando Arrabal, espanhol (1932), o chileno Alejandro Jodorowisky (1930), e o francês Roland Topor (1938), depois de tertúlias amistosas e grande clima de camaradagem: preconizam uma espécie de caráter endêmico (entre iguais, literalmente). Em 1962, trocam o nome Burlesque por Pânico, por conta também do conhecimento e de certa adesão aos princípios do movimento criado em 1945, denominado Postiço (alusão a pós tudo). No movimento havia a crença, por exemplo, que uma revista deveria "morrer" sempre no número 1. Visualmente, os pressupostos vão de Bosch a Matisse, tomando assento em Duchamps. Em literatura, de Góngora a Strindberg, tomando assento em Calderón, Kafka e Poe.
            A raiz do nome encontra-se a palavra grega pan, referindo-se a tudo e à totalidade. Retomando o conceito de "tudo ao mesmo tempo agora", a ação, de recorrência mítica, ritual e psicodramática pressupõe o trânsito com frenesis entusiasmados ou irrisões anímicas: ser absoluto na efemeridade do ir repetível, busca no efêmero coletivo - na comunidade ritualístico-provisória - estados de criação. De modo, absolutamente redutor, "os pânicos" buscavam, a partir de uma obra existente, mas não partiturizada (fechada), "tirar o teatro do teatro". O efêmero resultante disso seria o cerimonial pânico, que deveria ser desenvolvido em terrenos baldios, bosques. Assim como as performances futuristas, cubo-futuristas, dadaístas/surrealistas, tais cerimoniais chamavam-se velada (do espanhol srão, sarau), próximo das soirées e dos happenings.
            De certa forma, há uma aproximação ao dadaísmo, mas de modo diferente, digamos tolerante e conciliador. As proposições destrucionistas deveriam ocorrer apenas quando o ser do cerimonial psicodramático assim o exigisse. Teatro, portanto, livre de tantas outras linguagens: no rito cerimonial, a necessidade da não personagem, mas a persona - nada poderia ser decorado: falas ou gesto, com abandono do figurativo e do abstrato. Na festa, a busca da euforia na manifestação concreta (espécie de object trouvé, de Marcel Duchamp; do du frottage, de Marcel Janco; do teatro peste de Antonin Artaud...) Nesses efêmeros, rigorosamente antiacademicistas, deveria existir a explosão de todas as rebeldias reprimidas.
            A partir de 1968, vários dos conceitos do teatro pânico migram para o teatro guerrilha (explicitação de manifestações de enfrentamento, com caráter rigorosamente ligado à contracultura).
            De lá para cá, a chamada espetacularização (aquela aludida por Guy Debord) só fez aumentar no ainda "império do simulacro", cujas tintas tingidas pela antemanhã deixa apenas antever o "império da mercadoria", como uma máquina que tende a transformar inocentes, alienados, aqueles que sempre pedem para deixar para lá... em blocos de solitários e manipulados sujeitos, coisificados pelo capital avassalador.
            Que estética se deve (é necessária) abraçar em momentos como este?


[1] Por Alexandre Mate, professor do Instituto de Artes da Unesp. O texto, com pouquíssimas modificações, serviu de base para discussão da obra O Grande Cerimonial, de Fernando Arrabal a pedido do grupo Kaos de Teatro, em evento apresentado no SESC Santana, em 2010.
[2] Alusão ao poeta dos séculos XVI e XVII, Luís de Góngora y Argote, como excesso de metáforas, antíteses e inversões, amalgamando, ainda, Goya e Valle-Inclán. 

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