Adailtom Alves Teixeira
A minha prática e pesquisa, ainda que breve, pouco mais de
duas décadas e meia, permitiu acumular algum conhecimento acerca da modalidade
teatral de rua, de forma a buscar algumas sínteses – a eterna busca humana –
ainda que não sejam fechadas, afinal outras experiências podem levar a outras
interpretações. Portanto, há, evidentemente, algo de seletivo e subjetivo nas
teses ora apresentadas.
1.
Rua, um substantivo adjetivado pelo
teatro. A rua como a
conhecemos é um advento da modernidade, remetendo, portanto, ao seu aspecto
urbano. No entanto, ainda que seja mais praticado nos centros urbanos, o
chamado teatro de rua brasileiro se
desloca pelas diversas geografias, tão distintas como é o Brasil: comunidades
rurais, ribeirinhas, quilombolas, aldeias, entre outros espaços, não se
restringindo a um fenômeno urbano. Assim, o substantivo adjetivado empobrece a
experiência prática dessa modalidade teatral, que é muito mais ampla do que
pode comportar um adjetivo.
2.
O teatro de rua é
democrático e democratizante. Por estar em um espaço que, em tese, é de todos e de todas,
por não impedir o acesso a nenhuma pessoa, é uma manifestação democrática e,
por isso mesmo, democratizante, isto é, possibilita que o público tome contato
com uma linguagem artística que nem sempre é disponível a todos/as. Democrático
por ir ao espaço público aberto, democratizante por não restringir pessoas,
seja por idade, faixa etária ou pecuniária.
3.
Ir às ruas é colocar-se
em risco; é sempre um agón. Agón (gr.) é disputa,
debate, mas também reunião, assembleia e o próprio lugar desse encontro. Assim,
o teatro que se coloca na rua está em disputa. Disputa entre artistas e
público, que podem interferir na obra; disputa para fazer do espaço ocupado um
lugar de fruição; e uma assembleia, colocada pela temática apresentada. Perder
ou ganhar é sempre o risco que corremos ao ocuparmos os espaços públicos
abertos, mas, como afirma o manifesto do Movimento Escambo “Somos – pelo risco
que corremos somos – teatro”.
4.
Acessibilidade e
porosidade, marcas do teatro de rua. Não basta estar nas ruas,
é preciso ser acessível por outras vias, daí o uso constante de alegorias,
cores fortes e demais signos das culturas populares tradicionais.
Acessibilidade em sentido amplo. Assim como não se pode ignorar o lugar e as
pessoas que ali estão, daí a importância da porosidade, ser como uma esponja
que absorve as interferências e volta à sua forma original. Acessibilidade e
porosidade resumem-se a uma verdadeira troca de experiências com os lugares e os públicos.
5.
O passante torna-se espectador. Os espaços públicos abertos, muito raramente são pensados
para a fruição, é por isso que a maioria do público não é convocado, mas
acidental, isto é, depara-se com a obra à sua frente. Assim, de passante, de
transeunte, ele torna-se um fruidor da linguagem teatral.
6.
O todo é o espetáculo –
antes, durante e depois. O espetáculo não é só o espetáculo propriamente dito, mas o antes já é
espetáculo. Já há agón, diálogo e debate com o espaço e
com as pessoas, que auxiliarão na construção do espaço propício para que ocorra
o segundo momento, o espetáculo. Por isso, saber chegar e como chegar aos
lugares é muito importante para quem faz teatro de rua, afinal, muitas vezes o
lugar pode estar sendo ocupado. Então, ao chegar à praça já é teatro. Assim
como o pós, afinal o diálogo continua com o espaço e com as pessoas. Aí
forma-se todo um imaginário para quem acompanha do início ao fim, é como a
montagem e desmontagem de um circo: tem o espaço, algo é montado e transforma
aquele lugar; depois desmonta e, em tese, deveria voltar a ser o que era, mas
não para quem presenciou esse processo, pois aquele lugar tem algo mais que
seguirá vivo na memória
de cada espectador, é um espaço transformado pela subjetividade.
7.
Três figuras
mitológicas sempre presentes: bêbado, cachorro e criança. Todo coletivo ou artista individual
tem alguma história com um destes três componentes. O que é importante observar
é que, para eles, a relação com a obra ocorre de forma diferenciada, pois há
algo que os une em alguma medida: a quebra das regras sociais. A criança porque
ainda não internalizou as regras
totalmente, o animal por ser irracional e o bêbado por quebrar os limites sociais pela bebida.
Por isso mesmo, as três figuras ousam mais que os demais cidadãos e cidadãs.
8.
Da primeira matriz, a
popular. Tenho
defendido que no teatro de rua brasileiro é possível identificar três matrizes,
isto é, características comuns que fazem com que identifiquemos elementos mais fortes da cultura
popular, de um teatro político e de uma arte circense. Claro que essa divisão é
didática, o que significa que coletivos e artistas, muitas vezes, misturem
esses elementos. Ainda assim, podemos identificá-los.
Em sendo a primeira matriz a popular, a identificamos seja na
recriação ou no forte traço presente
das manifestações das culturas populares, sobretudo daquilo que Mário de
Andrade chamou de danças dramáticas brasileiras, estando patentes aí, como
exemplo, o bumba-meu-boi, o cavalo marinho, dentre outras. Assim, é recorrente
no teatro de rua brasileiro a recriação, o uso como treinamento, fragmentos das
manifestações, entre outros. A própria presença de estandartes na maioria dos
coletivos, o uso do cortejo e da roda como espaço cênico, não deixam de ser elos com as
culturas populares.
9.
Da segunda matriz, a
política. Esta
matriz tem uma longa história, não tanto como a tradição popular, mas
remontando, ao menos ao naturalismo, escola que levou o/a trabalhador/a à cena.
Logo, trata-se de um teatro classista em que o político é explicitado sem
tergiversações. No Brasil há uma história que remonta ao final do século XIX e
início do XX com os anarquistas, passando pelos modernistas, ganhando fôlego no
Teatro de Arena e se radicalizando no Movimento de Cultura Popular em
Pernambuco e nos Centro Populares de Cultura, com experiência em diversas
cidades brasileiras, mas que, no entanto, foi interrompida pela ditadura
civil-militar, impedindo, inclusive sua radicalização estética. Esta matriz tem
cunho agitpropista e épico-dialético.
10.
Da terceira matriz, a circense. A terceira matriz é mais recente,
apesar de vir de uma experiência popular antiquíssima, mas que ficou restrita ao mundo do circo, por
assim dizer. Aprender a arte circense no Brasil, até algumas décadas atrás, só
era possível para quem nascia no circo ou fugia com ele. É no final da década
de 1970 que temos a experiência da primeira escola circense, que possibilitará
o acesso a este conhecimento. Dessa experiência nasce a terceira matriz do
teatro de rua brasileiro, calcada no virtuosismo (acrobacia, malabares, equilibrismo etc.) e
no riso dos/as palhaços/as.
Nota: Há uma modalidade, por assim dizer, que não se constituiu
em uma matriz e ainda é muito restrita à academia e ao eixo sul-sudeste, um
teatro de cunho mais
performativo (e outras tantas nominações que daí advenham). O que faz com que não o coloquemos como
uma matriz é o fato de ainda não ter se espraiado pelo Brasil e,
principalmente, ter muitos de seus expedientes de cunho popular, embora seus
praticantes muitas vezes não o reconheçam. Essa forma teatral também tem
história, pois é herdeira das vanguardas europeias e da contracultura, que,
como se sabe, beberam em muitas fontes, sobretudo populares, não esqueçamos.
11.
O riso como tônica. Não é possível saber se pela própria característica do
povo brasileiro ou por outras condicionantes, o riso está presente na
esmagadora maioria das manifestações teatrais de rua do Brasil, seja na forma
farsesca, em tom de deboche, ironia, pelo grotesco etc. Como afirmou Henri
Bergson, o riso se destina a inteligência, talvez isso explique essa busca de
comunicação com o espectador. Afinal, pelo riso se chega mais suavemente e sem
necessariamente criar identificação (característica do drama) com as
personagens. Enfim, o riso integra, acolhe o espectador, mas este mantém o seu
olhar distanciado.