Adailtom Alves Teixeira[1]
Somos seres que necessitam da
beleza tanto quanto do alimento e do abrigo. A arte, em suas inúmeras
manifestações, está presente em todas as sociedades humanas desde os tempos
mais remotos. Pinturas rupestres, danças tribais, cantos ritualísticos,
esculturas, narrativas orais — todas essas expressões revelam uma verdade
fundamental: o impulso estético é constitutivo da experiência humana. Há,
segundo Fischer (1973), uma necessidade de complementarmos nossas experiências,
pois, ao sabermos que não somos únicos, temos o desejo de complemento no/a
outro/a. Não vivemos apenas para sobreviver; somos seres desejantes, vivemos
para sentir, sonhar e compartilhar significados — e é justamente isso que a
arte nos proporciona, aí estaria uma de suas funções: a capacidade de vivermos
uma experiência pela via estética.
Diferentemente dos objetos
criados para fins práticos, a arte carrega em si um traço essencial: a não
utilitariedade. Mesmo quando inserida em mercados que transformam criações em
mercadorias altamente lucrativas, a essência da arte não está no lucro. Sua
função não é funcionar, mas emocionar, inquietar, interrogar e, sobretudo,
provocar. Essa ausência de finalidade prática é o que a torna tão poderosa. Vilém
Flusser (2015), apresenta um outro aspecto da arte, que dialoga com que estamos
defendendo: a capacidade de moldar as nossas experiências. O autor cita que no
medievo tardio o Romance da Rosa passou a ser um modelo de amor
romântico, adotado pela classe social nascente, a burguesia, a experiência foi depois
universalizada, aos poucos, ao longo dos séculos e disseminados até hoje pela
TV e pelos filmes estadunidenses, mas não só. Nas suas palavras: “O exemplo
também mostra do que se trata na arte. Trata-se da elaboração e da comunicação
de modelos para nossas experiências concretas do mundo. Toda experiência é
modelada, programada pela arte. Todos os nossos prazeres e tristezas, todas as
experiências das cores, dos sons, das formas, das tessituras, dos perfumes que
nós temos, todo sentimento de amor e de raiva têm um modelo artístico. Nosso
mundo é estruturado não somente pela nossa informação genética, mas também por
nossa informação estética. Onde não há modelo estético, estamos ‘anestesiados’
= nós não temos experiência nenhuma. Nós dependemos da arte para poder perceber
o mundo” (Flusser, 2015, p. 43). Mas, na lógica capitalista, tudo precisa
servir para algo, gerar capital ou ao menos justificar seu uso com eficiência. Nesse
sentido, os aspectos da arte aqui levantados, aparecem como gestos subversivos
nesse sistema: uma oferenda ao sensível, ao gratuito, ao que escapa da lógica
da reprodução incessante.
Davi Kopenawa (2015), xamã
Yanomami e uma das grandes vozes indígenas do Brasil contemporâneo, tem razão
ao nomear os não indígenas como o “povo da mercadoria”. Essa expressão, ao
mesmo tempo poética e crítica, aponta para uma doença civilizatória: a
transformação de tudo em objeto de troca. Na sanha de acumular e explorar, o
povo da mercadoria destrói florestas, rios, montanhas e saberes ancestrais.
Envenena o solo e a si mesmo. Corta árvores para plantar soja, seca nascentes
para extrair ouro, devasta ecossistemas para produzir mais mercadorias, porém, perdem
a capacidade de sonhar, e nisso vão se desumanizando e perdendo sua conexão
mais profunda com a mãe terra.
A destruição ambiental não é
apenas física; é também simbólica. O adoecimento do planeta está profundamente
ligado ao nosso adoecimento psíquico. A ansiedade, o esgotamento mental, a
sensação de vazio e a depressão que assolam milhões de pessoas – que Byun-Chul
Han (2017) chama de sociedade do cansaço –, são, em grande parte,
sintomas de um modo de vida que nos desliga da beleza, da contemplação, do
tempo lento e da partilha sensível — valores fundamentais da experiência
artística.
É por isso que precisamos da
arte. Mais do que nunca, de todas as artes. Das que cantam, dançam, dramatizam,
esculpem, bordam, esculpem o barro, improvisam com o corpo, das que narram o
mundo visível e das que criam outros mundos. Elas nos espelham, refletem e
refratam nossa realidade, ampliam a percepção e desorganizam as certezas. A
arte não apenas embeleza a vida — ela nos oferece outros modos de habitá-la,
inclusive outras maneiras de resistir, especialmente as artes que, de modo
crítico, estão comprometidas com um mundo mais justo e igualitário.
Paradoxalmente, é justamente
naquilo que o capitalismo considera “inútil” que reside a força mais profunda
da arte. Uma cerâmica moldada à mão, um instrumento feito de madeira ancestral,
uma peça de teatro encenada na praça, uma poesia que ressoa no corpo — essas
experiências não têm finalidade prática imediata, e é por isso que nos tocam
tão fundo. Elas não servem a um propósito utilitário, mas a um propósito
humano. Tais características, num mundo regido pela lógica da eficiência e do
lucro, é revolucionário.
A arte, em sua suposta “inutilidade”,
é medicina. Não é chavão afirmar que a arte cura. Ela nos lembra que somos mais
do que engrenagens de produção, que nosso valor não se mede pela produtividade,
por isso nos regenera. Ela nos reconecta com o espanto, com a memória, com a
possibilidade do afeto e da comunhão. Em tempos de colapso ambiental e
psíquico, a arte é imprescindível — e pode nos salvar de nós mesmos ou de até
onde nos levou o atual modo de produção. Evidente, que uma saída radical não se
faz individualmente, mas é preciso nos reconectarmos socialmente, para tanto,
mais uma vez precisamos de arte.
Assim, honremos sua “inutilidade”.
Porque é nela que reside sua potência. Porque é dela que, ao revelar nosso
aspecto mais humano, mais precisamos. Como afirma Michèle Petit, “O utilitário
nunca basta. Talvez sejamos, antes de tudo, animais poéticos, pois os humanos
criam obras de arte há mais de quarenta mil anos, bem antes de inventar a moeda
ou a agricultura” (2024, p. 7).
Referências
FISCHER, Ernst. A
necessidade da arte. 4ª ed.
Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
FLUSSER, Vilém. A arte: o belo
e o agradável. In: IANINI, Gilson; GARCIA, Douglas; FREITAS, Romero
(Orgs.). Artefilosofia: antologia de textos estéticos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015, p. 42-46.
HAN, Byung-Chul. Sociedade
do cansaço. Trad.: Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce.
A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. Trad.: Beatriz
Perrone-Moisés. São Paulo: Cia das Letras, 2015.
PETIT, Michèle. Somos
animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise. Trad.:
Raquel Camargo. São Paulo: 34, 2024.
[1] Professor da
Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de
Artes da Unesp; graduado em História pela Universidade Cruzeiros do Sul; integrante
do Teatro Ruante; autor dos livros Circo
Teatro Palombar: somos periferia; potência criativa (Fala, 2024), Teatro
de rua: identidade, território (Giostri, 2020); um dos fundadores e
articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.