Luiz
Carlos Checchia*
A
Lua Barbosa, in memorian
“Os radicais” ou
“aqueles com quem é difícil negociar”, esses são alguns dos adjetivos com os
quais os artistas do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, o MTR-SP,
costumam ser chamados nos encontros ou
mostras de teatro de grupo. Certamente há uma radicalidade na postura e nas
ações políticas do MTR, toda ela facilmente perceptível, inclusive nos temas de
muitas das peças montadas por seus integrantes. Todavia, faz parte dos esforços
deste pequeno ensaio compreender as possíveis origens de tal radicalidade, seus
desdobramentos e os desafios atuais e futuros que lhes são inerentes. Para
isso, esboçaremos, ainda que genérica e ligeiramente, o panorama histórico e
conceitual necessários para compreender o atual teatro de rua praticado no
Brasil e, especificamente, no estado de São Paulo e, mais especificamente, o
Movimento de Teatro de Rua de São Paulo.
O teatro de
grupo e o teatro de rua
O chamado teatro
de grupo é é uma forma recente no Brasil, desenvolve-se no país a partir
dos anos de 1970, como uma reação, ainda que tardia, ao divismo, ou
seja, à lógica da produção teatral estabelecida pelas companhias teatrais
comerciais, esquemáticas, cujos elencos, nem sempre fixos, orbitavam em torno
de uma mesma personalidade, cuja fama e notoriedade atraia o público para as
casas de espetáculo. O crítico Kil Abreu ofereceu uma definição bastante
pertinente ao que seja o teatro de grupo, escreveu ele
grupo/agrupamento
– a primeira coisa é que um Grupo de teatro – nos sinaliza a prática dos anos
recentes – não é o mesmo que um agrupamento de artistas que se reúnem para
fazer um trabalho determinado. O que marca a existência do grupo, no sentido
que nos interessa, é uma Experiência comum colocada em perspectiva. Qual seja,
a de um tipo de organização que não tem como finalidade a criação de pontual de
um evento artístico, ainda que um evento, um espetáculo, por exemplo, possa
estar entre os planos, como de fato, quase sempre está. Trata-se, antes, de um
projeto estético, de um conjunto de práticas marcadas pelo procedimento
processual e em atividade continuada, pela experimentação e pela especulação
criativa, que pode inclusive se desdobrar ou alimentar desejos de intervenção
de outra ordem que não a estritamente artística (ABREU, 2008:22)
definição pertinente, entretanto, acreditamos que
incompleta, pois lhe falta o construto histórico, encontrado em outro texto, do
diretor teatral Luiz Carlos Moreira, integrante do grupo Engenho Teatral, que
escreveu
Mas o
exemplo acabado desse cadáver ambulante, dessa tina ideológica em que vivemos
atolados, é o surgimento e desenvolvimento de uma outra aberração: os grupos de
teatro, filhos bastardos da falência do mercado. E o sinal tem até data, 1979,
quando surge a Cooperativa Paulista de Teatro para dar voz e representação a
coletivos teatrais.
Intenções,
desejos e discursos honestos ou não embutidos, os grupos surgem porque não
existe empresários para contratar/explorar os “profissionais” disponíveis.
Eterna e endemicamente desempregados, eles se juntam para produzir, para dar
voz a seus desejos e tentar sobreviver de seu trabalho descartado pelo capital
que, repita-se, salvo exceções, não consegue auferir lucro com essa mão de obra
aplicada no teatro.
(…) A
aberração é essa: numa economia capitalista, de mercado, como muitos preferem
dizer para deixar a coisa mais natural, um segmento da produção é controlado
por trabalhadores – pois é disso que se trata, não?
Ressalte-se:
trabalhadores descartados, os artistas se organizam em coletivos. Não é pouca
coisa: coletivos de trabalhadores excluídos controlam a produção. Desse lugar,
ainda que intuitivamente, muitos acabam falando como tal: sua estética
denuncia, exatamente, as contradições do capitalismo e o desmanche ou formas
acentuadas da apropriação do Estado para fins privados a que se deu o nome de
“Neoliberalismo” (MOREIRA, 2012, 21)
Com as
escusas necessárias por transcrever tão longa citação, acreditamos ser ela
pertinente por datar e explanar acerca do contexto histórico, econômico e
social do desenvolvimento do moderno teatro de grupo. Pelo exposto, pensamos
que em Raymond Williams (2000) podemos encontrar, então, a devida conceitualização
desse fenômeno que chamamos de teatro de grupo, ou seja: o teatro de
grupo se constitui como a evolução social da forma artística teatro ou
forma dramática. Para Williams, o teatro constitui uma forma artística
em geral, todavia, essa forma assume determinadas especifidades a partir das
relações sociais às quais se submete. Assim, o atual teatro brasileiro,
submetido às determinadas condições econômicas e políticas leva à composição de
uma nova forma de prática coletiva, que tem seu início dos anos de 1970. forma
essa, o teatro de grupo, que se consolida a partir dos anos de 1990. É
justamente a essa forma que uma antiga prática teatral, talvez a primeira
dentre todas, o teatro de rua, se aproxima e se modifica, sobretudo, mas não
somente, por meio da organização de movimentos e coletivos. É preciso aqui
fazer uma pequena digressão sobre o que queremos dizer com “aproximar-se” e
“modificar-se”: o teatro de rua é uma prática das mais antigas, encontrada em
quase todas as civilizações do passado. Dessa forma, ainda em temos propostos
por Williams, o teatro de rua é uma forma residual algo que “foi
efetivamente formado no passado, mas ainda está no processo cultural, não só
como um elemento do passado, mas como um elemento ativo no presente”
(WILLIAMS, 1979:125), algo que, ainda vivo
em nosso tempo histórico, tem seu nascedouro em um tempo já superado. Todavia,
quando se organiza o teatro de grupo, quando toma a forma de uma emergência,
tanto uma parte dos seus praticantes vão para a rua, quanto muitos dos antigos
grupos, de longa tradição popular, se aproximam dos modernos grupos, e a troca
dentre eles permitem novas agendas de luta e resistência. Assim, se o teatro de
rua, prática das mais tradicionais e antigas, chega aos tempos atuais como forma residual,
sua aproximação com o teatro de grupo, a construção de demandas comuns e a
troca de informações estéticas e políticas entre elas, as identificações e
reconhecimentos, provoca no teatro de rua uma modificação profunda: de forma
residual passa, também, a operar como forma emergente, suas
bandeiras, antes de luta pela sobrevivência de uma forma tradicional, passa
também a de ser a luta política por um outro amanhã. Assim, em termos práticos,
percebemos, por exemplo, a convivência de um artista como Danilo Cavalcante,
mestre na manipulação de mamulengos, partícipe de uma longa tradição de
manipuladores oriundos do nordeste brasileiro, com outro artista, Fábio
Resende, integrante da Brava Cia, um grupo que experimenta as mais elaboradas e
contemporâneas formas estéticas para a realização de um teatro político
vigoroso e provocador, e, entre eles, César Vieira, fundador do Teatro Popular
União e Olho Vivo, grupo mais antigo da América Latina, quase cinco décadas de
atividades ininterruptas, que se utiliza de elementos populares para fazer
teatro militante. Todos, apesar de suas profundas diferenças, operando a forma
teatro de rua e integrantes tanto da Rede Brasileira de Teatro de Rua quanto do
Movimento de Teatro de Rua de São Paulo.
Assim, ainda que de forma esquemática, propomos pensarmos
o teatro de rua a partir dessa condição histórica: por um lado, herdeiro de uma
tradição, o que o coloca na conta de forma residual, em termos postos
por Williams e, ainda sob essa ótica, que passa a operar também como forma emergente,
a partir do encontro da tradição com as novas demandas e lutas por resistência
e transformação postas pelo moderno teatro de grupo. Condição histórica ainda
em aberto e que se constitui como contradição interna da forma teatro de rua.
Localizado, ainda que de forma limitada, a condição
histórica do teatro de rua, passamos agora a pensar a sua organização enquanto
movimento. A mais recente organização do teatro de rua, porém uma das mais
importantes, é a Rede Brasileira de Teatro de Rua, a RBTR. Fundada em 2007, na
Bahia, a RBTR mantem uma prática de dois encontros anuais, sempre evitando
encontros seguidos na mesma região do país, garantindo a circulação e a
facilitando a participação de articuladores de todo o país. Além da RBTR,
existem as organizações estaduais, dentre elas, destacamos como as mais
atuantes a do Rio de Janeiro, a do Rio Grande do Sul e a de São Paulo, que
constitui o Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, o MTR-SP.
O Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, o MTR-SP
O MTR-SP surge de uma ação conjunta proposta por sete
grupos de teatro de rua da capital paulista, chamada Se Essa Rua Fosse Minha,
em 2002. Essa ação surge em função do não reconhecimento do teatro de rua pelo
então secretário da Cultura de São Paulo, Celso Frateschi. No ano seguinte, foi
realizado o I Seminário de Teatro de Rua, que contou com a participação de doze
grupos, e ao seu final foi realizado a I Overdose de Teatro de Rua, que se
constituiu de quinze apresentações teatrais, no Vale do Anhangabaú e Boulevard
São João, todas em um único dia, 30 de novembro. O seminário foi fundamental
para a consolidação do movimento, que em 2004, realizou a II Overdose de Teatro
de Teatro de Rua e o II Seminário de Teatro de Rua, agora contando também com a
participação de intelectuais e políticos que perceberam no teatro de rua um
movimento organizado e de interesse social e político com forte poder de
intervenção na lógica urbana. O MTR-SP publicou, até agora, três importantes
revistas, a Arte e Resistência nas Ruas, que em seu segundo número, publicou
Desde a
realização do primeiro seminário, o MTR/SP realiza encontros em que se
estabelecem as bases de uma atuação propositiva para que haja a inserção da
manifestação artística no espaço público aberto; a luta por políticas culturais
específicas que atendam às necessidades de produção, de pesquisa e de
circulação da arte popular, como também as formas de ampliar o acesso ao
teatro. (Arte e Resistência, Revista do
Movimento de Teatro de Rua de São Paulo. Ano II, No 02, julho de 2010. Pag 6)
Não nos
parece coincidência o fato do MTR-SP nascer no mesmo ano em que Luiz Inácio
Lula da Silva se elege presidente, e que o aprofundamento de sua radicalidade
se dê durante a gestão petista frente o governo federal. O Partido dos Trabalhadores
foi, durante mais de duas décadas, o grande aglutinador da esquerda nacional.
Durante anos, diversos movimentos e coletivos encontraram no PT um ponto de
convergência e de construção conjunta de uma plataforma unificada de lutas
sociais, políticas, econômicas e culturais. Todavia, ao ascender ao poder
federal, as propostas elaboradas ao longo dos anos, sobretudo a orientação
ideológica que as alimentava, foram rebaixadas ou simplesmente abandonadas;
houve a total troca, nos termos propostos por André Singer, do reformismo
forte que norteia os documentos do partido por outro, pelo reformismo
fraco, que visa arbitrar ente as demandas das classes subproletárias e os
interesses das elites econômicas brasileiras. Embora esse acordo tácito entre
as classes tenha permitido algumas das mais profundas transformações econômicas
ocorridas no Brasil, permitindo a “entrada” de milhões de pessoas em um mundo
do qual estavam completamente afastadas, qual seja, o do consumo de bens
diversos, da universidade, via programas como PROUNI e FIES e do crédito
popular, bem como o aumento real do salário mínimo e da garantia de
sobrevivência a milhares de famílias via programas como Bolsa-Família. Ainda
assim, todas mudanças ocorridas no país, e não foram poucas, são limitadas pelo
pacto conservador assumido pelo PT e os setores mais conservadores da
sociedade brasileira, permitindo o crescimento e o avanço de tais setores,
levando a contradições como a ter na base aliada do governo petista no
congresso políticos como Jair Bolsonaro, Blairo Maggi e Marco Feliciano, apenas
para citar os mais emblemáticos. Mas não apenas isso, essa condição força o
governo a recuar em algumas de suas principais bandeiras históricas, subjugado
ao sistema de vetos da lógica política típica do congresso brasileiro
denominada de pemedebismo, pelo filósofo Marcos Nobre. Por conta desse recuo
político, ainda não foi possível a radicalização e aprofundamento do sistema
democrático brasileiro, nem as mudanças imprescindíveis do sistema político
para superarmos a crise representativa que o subjuga. Acreditamos que o reformismo
fraco pelo qual optou o governo petista mergulhou a esquerda brasileira
naquilo que Raymond Williams chama de estrutura de sentimentos, ou seja,
o momento histórico em que paradigmas e
referências se fragmentam, se perdem, deixam de aglutinar e nortear, o vácuo
deixado provoca a confusão, momento em que possibilidades até então submersas
passam a se fazerem presentes, disputam espaços, públicos, locais, até que, em
determinado momento, uma delas, ou um conjunto delas, assume a função
paradigmática, ocupando a centralidade no processo histórico[1].
Acreditamos que, ainda que tenha promovido profundas mudanças na vida de
milhões de brasileiros, tê-las promovidas dentro dos mais estreitos limites do
capital e em profundo pacto com os setores mais conservadores da sociedade fez
com que o Partido dos Trabalhadores deixasse de nortear e aglutinar vários dos
movimentos, coletivos e sindicatos que o orbitavam e compunham suas fileiras.
Sem a aquele que era referência principal de sua luta, tais organizações
passaram a buscar novas formas de organização, de orientação, de métodos e
referências. Acreditamos que não é por outro motivo em que ocorre as profundas
mudanças nas formas de organização de movimentos e coletivos apontados pela
socióloga Maria da Glória Gohn, que a respeito
escreveu
Em termos
de uma Sociologia dos Movimentos Sociais, reiteramos novamente: os atuais
movimentos estão operando uma renovação nas lutas sociais de magnitude que os
novos movimentos sociais operaram nas décadas de 1960, 1970 e parte de 1980.
Eles estão reformulando a pauta das demandas e repolitizando-as de forma nova,
na maioria das vezes independentemente das estruturas partidárias. (GOHN: 113, 2013)
Assim, o MTR-SP, se organiza em um momento muito
especifico, não apenas para si, mas para a esquerda nacional como um todo.
Neste sentido, muitos dos articuladores do movimento, ex-filiados ao Partidos
dos Trabalhadores ou, ainda, não filiados oficialmente, muito próximos ao
partido, passaram a buscar novas formas de organização e atuação política.
Nesse processo de busca, o MTR-SP, assume a posição não apenas de um ponto de
encontro entre artistas e espaço de luta por reconhecimento e políticas
específicas, mas também em um local para debater profundas mudanças necessárias
para o pleno desenvolvimento social, político e econômico da sociedade, para
muito além das estritas demandas do teatro de rua. Sob essa ótica, acreditamos
que o MTR-SP passa a operar em outra lógica, não apenas a da defesa do teatro
de rua, enquanto forma residual, mas tendo o teatro de rua como forma
emergente, trazendo para o debate demandas de transformação social. Passa,
o MTR-SP, a defender uma Ideia específica, no sentido que Pierre Badiou dá a
essa palavra.
Badiou e a Ideia
Em seu
ensaio A Ideia de Comunismo, o filósofo francês Pierre Badiou escreve
denomino
Ideia uma totalização abstrata dos três elementos primitivos: um processo de
verdade, um processo de pertencimento histórico e uma subjetivação individual.
Podemos dar de imediato uma definição formal de Ideia: uma Ideia é a
subjetivação de uma relação entre a singularidade de um processo de verdade e
uma representação da História. (BADIOU, 2012,
134)
a partir dessa premissa, Badiou desenvolve a lógica pela
qual um Ideia, uma “verdade política”, se torna candente, emerge de um momento
histórico específico, e o indivíduo que dela toma contato e que se percebe
partícipe daquela condição histórica, assume tal emergência como sua, interiorizando-a
ou, nas palavras do filósofo, “subjetivando-a”, fazendo parte de um Sujeito
histórico maior que ele mesmo. Acreditamos que, por esse viés, o teatro de
grupo e suas emergências, como defende o já citado Luiz Carlos Moreira, é o
Sujeito histórico que porta tal condição, que porta uma verdade histórica, que
carrega em si uma Ideia. Dentre tal Sujeito, destacamos outro, que por sua
própria condição e especificidade, carrega tal Ideia de forma muito mais
radical e candente. Esse Sujeito é o teatro de rua. Mas qual a Ideia que ele
carrega?
Se não se trata da Ideia de Comunismo defendida por Badiou,
ao menos ainda não, é patente que as bandeiras defendidas pelo MTR-SP são muito
mais largas que aquelas específicas ao teatro de rua. Destacaremos aqui uma
dessas bandeiras, a chamada Arte Pública. Embora seja um conceito ainda em
elaboração, a Arte Pública pode ser pensado como o princípio que garante, por
um lado, toda a facilidade de acesso à produção artística para a população,
sobretudo, aquela que historicamente está dela apartada e, por outro lado,
garante aos realizadores o acesso ao Fundo Público, garantindo a sobrevivência
de artistas e técnicos bem como a manutenção de trabalhos que refletem a
diversidade da cultura brasileira, bem como, por fim, o intercâmbio entre
realizadores, permitindo o desenvolvimento de novas possibilidades bem como a
proteção à tradição e à memória. Isso não é pouco, porque para sua realização
não bastam apenas o engajamento em lutas pontuais pela arte, muito menos
garantias legais dentro do reformismo fraco até aqui tocado pelo governo
federal, é preciso, por um lado, uma maior articulação entre movimentos de
diversas naturezas – desta vez não mais mediadas pelo forma-partido – e por
outro lado, uma completa reconfiguração das relações de produção artística e a
radicalização das bases de nossa democracia e de nossa república, invertendo
sua lógica, de uma democracia de baixa intensidade para uma outra, no qual a
participação da sociedade civil nos processo decisórios extrapolam os limites
garantidos pela atual legislação brasileira. De certa forma, trata-se de, nas
palavras do filósofo Jacques Rancière, trazer para a partilha do sensível,
uma gama imensa de pessoas, entre artistas populares, artistas experimentais e
artistas militantes, bem como as diversas parcelas da população apartadas da
criação artística para a luz das relações sociais, econômicas e políticas, na
qualidade de sujeitos autônomos e com poder de decisão na construção das
políticas públicas que lhes são de interesse direto.
Essa
condição coloca o MTR-SP ao lado de outros movimentos organizados numa luta
pelo reconhecimento e pelo alargamento dos limites da democracia, luta essa que
extrapola imensamente os limites do chamado Estado de Direito, que, como
demonstra o filósofo Wladimir Safatle, só amplia sua abrangência quando estes
são desafiados pela sociedade civil. A especificidade que deve ser apontada
sobre este ponto é que o teatro de rua tem, como tribuna de suas demandas, a
própria rua. Por experiência, prática e natureza, o teatro de rua é uma
atividade que encontra nos espaços públicos seu fórum natural de diálogo
cotidiano com as diversas comunidades, seja por meio de seus espetáculos, seja
por meio de diversas outras ações que tornam-se cada vez mais comuns aos grupos
que integram o MTR-SP, tais como palestras, rodas de bate-papo e debates,
dentre outros, realizados em plena rua e reunindo rotineiramente dezenas de
pessoas em cada um deles.
O teatro de rua e o direito à cidade
Direito à Cidade é
o termo apresentado pelo filósofo francês Henri Lefebvre e atualmente trazido
ao debate por muitos intelectuais, destacando-se, dentre eles, o geógrafo
marxista David Harvey. Para o filósofo francês, as cidades surgem como centros
administrativos, ainda na antiguidades, às quais ele designa cidades
políticas, com os desdobramentos históricos, assumem novas funções e
configurações, são as chamadas cidades comerciais. Por fim, com o
acentuado processo de desenvolvimento e circulação do capital surgem as cidades
industriais, as atuais cidades urbanas. As cidades urbanas atraem as
mais diferentes experiências e condições de vida, pessoas e grupos de diversas
origens e histórias se encontram num mesmo e único espaço, sobrepondo
tradições, conhecimentos, práticas e memórias, criando convivências,
solidariedades e conflitos. Espaço de trocas materiais e simbólicas, construção
e dissolução de identidades e fronteiras. Obra criada e criadora a cidade
urbana, nas palavras de Lefebvre
é obra a ser associada mais com a obra de arte do que com o
simples produto material. Se há uma produção da cidade, e das relações sociais
na cidade, é uma produção e reprodução de seres humanos por seres humanos, mais
do que uma produção de objetos. A cidade tem uma história; ela é a obra e uma
história, isto é, de pessoas e de grupos bem determinados que realizam essa
obra nas condições históricas.(LEFEBVRE, 2013, 52)
Todavia, a cidade
é o locus da lógica do capital, fazendo da troca uma finalidade em si,
necessária para a sua reprodução: a cidade, no mundo do capital, se pauta pelo valor
de troca em detrimento do valor de uso. Nesta lógica, emergem
classes hegemônicas que impõem suas ideologias sobre as demais, promovendo
diferentes percepções a respeito dos espaços, eficientemente anotados por Rosana
REGILLO, sendo eles
a) el espacio tópico: que alude al territorio
propio y reconocido, es lugar “seguro” pero mismo tiempo amenazado;
b) El espacio heterotópico: que alude al
territorio de los “otros” y que representa essa geografia atemorizante em la que
se assume que “suceden cosas”;
c) El spacio utópico: que habla de um
territorio que apela a un orden que se assume no sólo como deseable, sino que
funciona como dispositivo orientador em la comprensión de spacio em sus
relaciones com el spacio heterotópico. (REGILLO, 2005:204)
O teatro de rua,
por sua própria natureza mambembe, ou seja, em que a prática natural é a
circulação constante, tem um potencial poder de promover o diálogo entre os
espaços tópicos e os espaços heterotópicos e, ainda, de colaborar para a
formação dos espaços utópicos: o teatro de rua interrompe a lógica da
circulação constante de mercadorias e do ritmo febril do capital; dá outra
toalidade ao fluxo monocórdico da subjetividade reificada e instaura a efêmera,
porém verdadeira, convergência dos olhares, levando seu público (RANCIÈRE,
2010, 101) “de um mundo sensível para outro mundo sensível”; na cidade urbana,
espaço em que a luta de classes se faz visível nos menores detalhes do
cotidiano, a condição do teatro de rua é a condição da lógica de resistência
contra-hegemônica. Entretanto, poder em potencial não é garantia de sua
realização, neste sentido, a organização dos coletivos de teatro de rua, como o
MTR-SP, e a sua condição de forma emergente, constrói as articulações e
as ações necessárias para se realizar, ainda que parcialmente, tal potencial,
promove os debates acerca do spacio utópico; estabelece a crítica sobre
os limites oficiais e oficiosos impostos pelas estruturas de poder. Faz da arte
um poderoso instrumento de luta política, sobre o que escreveu o filósofo
Herbert Marcuse
No outro polo da sociedade, no domínio das
artes, a tradição de protesto, a negação do que é “dado”, persiste em seu
próprio universo e por direito próprio. Aqui, a outra linguagem, as outras
imagens, continuam sendo comunicadas, para serem ouvidas e vistas; e é essa
arte que, numa forma subversiva, está sendo hoje usada como arma na luta
política contra a sociedade estabelecida – com um impacto que transcende em
muito um grupo privilegiado ou sub privilegiado específico. (MARCUSE,
1973:83)
Dessa feita, o
teatro de rua torna-se partícipe das lutas pelo chamado direito à cidade. Sua
existência e condição constituem espaço contra-hegemônico. Se há, nas palavras
de Boaventura Souza Santos, um pensamento abissal a superar e uma ecologia de
saberes a promover, acreditamos que o teatro de rua tem, nesse processo, um
papel que não é apenas marginal: ser um privilegiado espaço de trocas
simbólicas, o espírito mambembe e a solidariedade que lhe é peculiar, faz do
teatro de rua um colaborador fulcral desse processo. Todavia, ainda falamos de
potencialidades, de capacidades ainda por realizar. Falando especificamente do
Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, há desafios que precisam ser vencidos,
sem o que todo o seu potencial corre o
risco de fenecer.
O desafios de hoje e de amanhã, à guisa de conclusão
Como qualquer processo histórico, o MTR-SP carrega em si
suas próprias contradições, e qualquer avanço político por parte do movimento
só será possível se os seus integrantes conseguirem lidar com elas. Destacamos
nesse ensaio, apenas três dessas contradições, que ao nosso ver nos parecem ser
aquelas que mais carecem de atenção no momento. A primeira delas diz respeito à
tensão entre os elementos residuais e
emergentes da forma teatro de rua. Como argumentamos acima, o atual teatro de
rua guarda uma dupla condição: trata-se de uma forma residual, uma
tradição antiga que, ao entrar em contato com o moderno teatro de grupo, passa
a ser, também, uma forma emergente, com novas percepções de si e de suas
possibilidades e, em decorrência, assume novos papeis sociais. Entretanto, essa
dupla condição ainda não recebeu a merecida atenção nem foi trazida ao centro
dos debates internos do movimento. Sem o reconhecimento e o equilíbrio entre o
residual e o emergente, as pautas do MTR-SP são ainda pouco definidas pois
tentar dar conta de cada qual, sem no entanto atendê-las em suas
especificidades, pois tudo é tratado, genericamente, como um mesmo “teatro de
rua”. A segunda contradição inerente ao MTR-SP é a dificuldade em ampliar o seu
alcance estadual. Nascido de uma ação de grupos sediados na cidade de São
Paulo, o MTR-SP espraia-se lentamente pelo estado, reunindo grupos de diversos
pontos do interior do Estado de São Paulo, bem como do litoral e da Grande São
Paulo. Todavia, foi apenas em dezembro de 2013 que o MTR-SP realizou seu
primeiro encontro estadual, na capital paulista, ainda com uma pauta difusa
para o Estado, ao passo em que sua agenda municipal (considerando o município
de São Paulo) está consolidada já há alguns anos, provocando uma assimetria no
que tange as ações políticas dos grupos, por isso, por exemplo, é comum
encontrar integrantes dos mais diversos pontos do Estado na capital paulista,
em solidariedade a alguma pauta local, mas raramente existe o trânsito inverso,
ou seja, integrantes paulistanos em ações fora da cidade de São Paulo. Por fim,
acreditamos ainda que o MTR-SP careça de maior agilidade em seus processos
decisórios por conta do critério pactuado entre seus integrantes, o consenso.
Segundo esse critério, qualquer tema só é considerado resolvido quando uma
proposta de solução for de consenso entre todos os participantes do seu debate.
Caso o consenso não seja alcançado, considera-se que o tema ainda não está
maduro e interrompe-se o debate até outro momento que seja considerado oportuno
para novo debate. Se por um lado tal critério colabora para o debate profundo
de temas importantes para o MTR-SP, por outro lado tem criado para o movimento
graves entraves em momentos em que é preciso respostas imediatas a demandas
urgentes. Além disso, discussões intermináveis em busca de consenso, sem nenhum
tipo de arbitragem, provocam exaustão e frustrações que em certo momentos
desestimulam os participantes a ponto de provocar o afastamento tanto dos
integrantes mais antigos quanto dificultam a permanência dos mais novos.
Desafios
constantes fazem parte de qualquer organização social. Tantos os desafios
internos quanto os externos surgem e são superados na medida em que tais
organizações mantenham-se em atividade constante. A construção de novas
realidades passam, assim, pelo exercício contante de se reconstruir
cotidianamente. Neste sentido, acreditamos que os desafios que o Movimento de
Teatro de Rua do Estado de São Paulo tem pela frente são muito menores do que a
importância que o movimento tem para a tempo presente. Acompanhamos,
diariamente, o recrudescimento radical do conservadorismo, bem como a formação
de um Estado policialesco, militarizado, em que qualquer cidadão ou cidadã que
exponham publicamente sua crítica na forma de participação em mobilizações e
manifestações são tratados como suspeitos de crime. A cada dia, os limites dos
sonhado e desejado em termos sociais tornam-se mais estreitos e o consumo
torna-se a nova identidade das mais diversas classes sociais. Num cenário como
esse, todo e qualquer espaço que possa converter-se em espaços de novas
sensibilidades, em exercícios de outras subjetividades, é espaço crucial na
construção de uma nova sociabilidade, uma nova sociabilidade que garanta o
direito à participação coletiva e plena de cada cidadão e cidadã. Mais uma vez,
recorrendo a Jacques Rancière, precisamos defender e ampliar qualquer espaço
que permita a ampliação da partilha do sensível, que inclua mais e mais pessoas
e categorias na esfera política. Assim, acreditamos que a defesa do teatro de
rua e a existência do Movimento de Teatro de Rua do Estado de São Paulo são
bandeiras pertinentes e necessárias a se levantar. A nós, artistas, intelectuais,
estudiosos ou fruidores dessa arte cabe a escolha de empunhá-las bem alto e
colaborar nesse processo que, ao fim e ao cabo, é de interesse de todos e todas
que acreditam num mundo de maior participação política, de respeito aos
direitos humanos e plena justiça social.
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Diversitas/USP
[1] “As
estruturas de sentimentos podem ser definidas como experiências sociais em
solução, distintas de outras formações semânticas sociais que foram
precipitadas e existem de forma mais evidente e imediata. (…) mas essas solução
específica não é nunca um mero fluxo. É uma formação estruturada que, por estar
na margem mesma da disponibilidade semântica, tem muitas das características de
uma pré-formação (...)” (WILLIAMS,1979,136)
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