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sábado, 23 de maio de 2009

O presentismo transgressor da cultura popular

Prefiro os farrapos da fantasia à camisa de força da ideologia. 
Amir Haddad


Desde a Antigüidade que a cultura popular é sempre negada, pouco estudada e pouco compreendida, desse período só nos ficaram os clássicos. O argumento ou a desculpa é de que o povo é grosseiro e rústico, daí não interessar estudar essa cultura que é muito transgressora, diferente da erudita.

As diferenças são muitas. Mas tomemos aqui apenas um aspecto dessa diferença: enquanto a cultura erudita assenta-se no respeito à norma, à regra, a cultura popular vai contra todo tipo de regra e cânones estabelecidos, sem esquecer-se de representar seu mundo e suas contradições.

Diferente do erudito que prende-se a regras construídas no passado, a uma tradição, o homem popular está preso ao presente, a vida cotidiana, por isso mesmo o riso é tão presente em sua cultura, sendo a piada e a paródia a forma de expressão pelas quais revelam seu desprezo pelas normas.

Quem nunca ouviu ou leu uma paródia de uma oração sagrada: oração do pinguço, os dez mandamentos do pinguço e tantas outras.

Quando morre uma personalidade, enquanto velam seu corpo, já circulam piadas entre os populares sobre o mesmo. Lembro-me que quando os “Mamonas Assassinas”, grupo que fazia um pop rock escrachado, morreram em trágico acidente de avião na Serra da Cantareira, tendo seus corpos despedaçados, ouvi no dia seguinte a seguinte piada:

Diz que Dinho (vocalista da banda) quando chegou ao céu encontrou Tom Jobim e este falou:
- E aí Dinho, vamos compor uma música juntos?

E Dinho responde:
- Ah! Agora estou sem cabeça.

Essa crueldade do humor popular é um enfrentamento da morte, revela uma vontade de viver a vida em cada momento. Enquanto prega-se que devemos velar os mortos, respeitá-los, os populares tocam suas vidas para frente. Poderíamos argumentar que trata-se de um morto distante e não um parente. Mas sabe-se que ao velar também os seus mortos, enquanto as mulheres choram, os homens “bebem o morto” e contam piadas ou aventuras do falecido e, é claro, só as engraçadas.

Outro aspecto é que essas criações, piadas ou paródias populares, não têm autoria. Alguém criou, mas não se preocupou em dá seu nome a obra, ao contrário, faz circular e os demais vão acrescentando mais e mais coisas, dessa forma a criação passa a ser de todos e a obra fica mais forte, refletindo sempre as contradições desse mundo. Essas obras tem, portanto, um rigor coletivo.

A cultura popular é muito rica e hoje, muitos artistas bebem nessa fonte, mas nem sempre compreendem esse “mundo sem regras”, pois retiram algo daquele universo e o enquadram em uma forma erudita cheia de regras, ou seja, retiram de um ambiente livre e o enquadram numa camisa de força e acreditam estar fazendo algo extremamente popular.

Adailtom Alves – Ator e Historiador
Publicado em A Gargalhada, nº 06, Janeiro/Fevereio de 2007, p. 02. Revisado para esta publicação em 23/05/09.

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