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quarta-feira, 10 de março de 2010

O teatro que se assiste da/na rua

Alexandre Mate (Dr. em História e professor do Instituto de Artes da UNESP)

 A tendência de todo discurso radical é conduzir ao desastre: a dialética nos ensina a empregar vantajosamente o conflito dinâmico dos opostos. Experimentar a emoção e conservar ao mesmo tempo o senso crítico não é impossível na prática, ao contrário do que pensa Diderot. Tudo depende do quanto se está treinado para conter certos estímulos, da sabedoria na administração do emocional e do racional, de um equilíbrio capaz de se traduzir em efeito propulsor... e não estático. Em resumo, enquanto Diderot opta pela estrutura coluna-viga, que permanece ali, parada, travada, os cômicos dell’arte adotam o arco, com todos os estímulos e contra-estímulos dele derivados. Sabemos muito bem que, ao primeiro tremor de terra, a estrutura coluna-viga desaba e o arco resiste maravilhosamente. Dario FO. Manual mínimo do ator.

É seguro que ao longo da história do ocidente - e sem contar os procedimentos religioso-ritualísticos, bastante comuns até hoje: principalmente em cortejos processionais -, a rua tem se caracterizado no lugar mais utilizado pelos artistas, e não somente por aqueles denominados artistas populares. Isto é, em princípio, o que caracterizaria o popular nessa escolha, para além do conteúdo temático de que se tratará na seqüência, seria a transformação de um simples lugar de passagem da população em um espaço de expressão e de intervenção entre dois grupos distintos de indivíduos, cujos interesses podem confluir, pelo assunto articulado à forma utilizada. O artista que escolhe a rua, refuncionaliza o lugar escolhido, criando um novo espaço, tanto para si como para os transeuntes, que param ou não para assistir ao espetáculo apresentado. Aliás, e sem entrar em questões semânticas: teatro de rua, na rua, para rua... muitos são os equívocos que cercam o conceito compreendido pelo popular e pelo teatro cujo palco encontra-se na via pública. Mesmo sem caracterizar propriamente um paradoxo, a produção teatral apresentada na rua, sobretudo por artistas populares, é aquela que menos registro tem e a que menos se conhece.

Diante desse quadro vale avisar, desde já, aos leitores que a reflexão que tento desenvolver aqui não pretende vencer ou fechar nenhuma questão sobre o conceito – posto ser quase impossível fazê-lo em espaço tão limitado –, mas, antes, trazê-lo à tona buscar aparar uma imensa gama de preconceitos e de desqualificações por que tem passado essa forma popular, e estabelecer alguns nexos mais essenciais pelos quais se possa entender, digamos, sua natureza específica.

A palavra popular, sobretudo em teatro, tem sido usada, recorrentemente nos documentos escritos dos mais antagônicos modos, compreendendo, invariavelmente: espontaneismo; falta de complexidade e de elaboração formais; reprodutivismo, fundamentado em oralidade; maniqueísmo infenso à novidade; aclimatação antropofágica e desrespeitosa a modelos consagrados etc. Tente ser objetivo, simples, direto, aproximar-se de indivíduos de todas as idades, tocar de modo emocional, cômico, poético.... O popular, aquele que aqui se toma como referência, tem uma sofisticação que poucos conseguem ou conquistam. Altimar Pimentel, Ariano Suassuna, Carlos Alberto Soffredini, Luís Alberto de Abreu. Grande Otelo, Oscarito, Chaplin e tantos outros. No excelente ensaio de BRECHT, e de leitura necessária: Para o senhor Puntilla e seu criado Matti. Notas sobre teatro popular,[1] o autor aponta alguns dos motivos pelos quais a cultura erudita, acobertando principalmente as questões de classe, tem destratado e ignorado as formas populares de cultura.

Muitos são os eruditos, premidos pelos mais diversos interesses, ao desqualificar as manifestações populares, fazem-no defendendo e atendo-se à relativíssima (e sempre tendenciosa) ‘qualidade estética’. Ora, qualidade estética a partir de que modelos e parâmetros eles defendem? Omitindo e veiculado que interesses e pontos de vista que não dizem respeito propriamente à arte? Muitas são as questões, mas como precisamos deixar de ser bobos, é preciso conscientizar-se de que analisar uma obra, tomando como referência outra, antagônica ou não, caracteriza-se, quase sempre, num exercício de colocação de um rótulo. Rotular é fácil, normalmente porque já vêm prontos para serem aplicados... Eles são plantados dentro de nós, para serem usados indiscriminadamente. Repetir uma classificação feita não se sabe por quem e a partir de que gama de interesses pode congelar o conhecimento do objeto, afastando-nos dele e dispensando seu conhecimento e mesmo discussão! Essa espécie de ‘oceano de coisificação’ tem pautado muito a ‘apreciação’ de espetáculos ultimamente e afogado muito e todos, ao mesmo tempo. Os ‘tipo assim’: GOSTEI e NÃO GOSTEI, sem outro esforço na apreciação das obras significa um rótulo facilitador... Então, buscando um exemplo aproximativo, dizer que ‘a Globo tem padrão de qualidade e as outras emissoras não’, significa apenas repetir aquilo que o dono da emissora quer que se fale da sua emissora, não é? Quem fala desse modo, sem pensar, pode estar sendo manobrado por espécies de perigosos cordões invisíveis.

Mas, voltando a Brecht, o teatro popular costuma transitar, feito na rua ou não, mas sempre por uma relação de natureza estética partilhada, e de modo irreverente-crítico[2]: com o ingênuo, não com o primitivo; com o poético, não com o romântico; aproximando-se da realidade, sem contaminar-se ou reproduzir acriticamente as politiquices corriqueiras e ligadas estritamente à vida privada. Adotando as alegorias - que permitem o reconhecimento, mas não a identificação -, que tem uma dimensão social mais significativa àquela dos símbolos em suas múltiplas possibilidades de interpretação e de individualidade, o popular, normalmente acompanhado dos expedientes do épico, questiona, de saída, o ‘natural e o naturalizado’. Transitando entre o entretenimento e a diversão, o popular, tende a denunciar pelo riso as mazelas e injustiças sociais, através do exagero ou de processos de reversão do comportamento[3], mas lembrando permanentemente, e sem proselitismos que o natural na vida social não existe.[4]

Hoje a indústria cultural – no sentido de escoar uma infindável catarata de produtos, padronizar comportamentos, desejos, criar massas e rebanhos de seres muito parecidos e (ir)reconhecíveis – descobriu que a palavra-rótulo popular aproxima os consumidores, então, a partir desse engodo, vende uma profusão de obras-mercadoria como se fossem populares. Nessa generalizada venda de gato por lebre são produzidas em ‘lotes prontos para o uso’: as emoções baratas; os passos de dança fácil; a música chorosa e de fácil decoração, falando de amores perdidos; de revistas e programas de (que nos livrem desse mal!) falação de vida alheia ... o objetivo é o lucro fácil-rápido e estupidificador. Cultura fast food, delivery, prêt-à-porter a repetição do ‘consagrado’ pela televisão: de bordões a comportamentos, o preconceito risível e esvaziante, a moda que reconforta e faz o indivíduo se sentir fazendo parte de algum tipo de aldeia (ou rebanho?) têm se caracterizado, principalmente, em mecanismos alienadores e de docilização. Como se pode perceber, apesar de muitas dessas obras serem apresentadas como produto popular, o que se tem são obras popularescas. No mínimo, elas enchem o bolso dos artistas ou dos detentores dos passes destes. Obras popularescas não alertam, não dignificam, não esclarecem, não emocionam socialmente, não libertam, e daí vai. Drummond, com quem muito se pode aprender, finaliza um de seus poemas afirmando: “chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação.” Não é à toa que tanta campanha ‘meia boca’ tem enganado e levado tanta gente às ruas!!! A gente não quer só comida - que existe para restrita parcela da população mundial – a gente quer comida diversão e arte! Antes de pedir paz, por que não somos estimulados a pedir justiça!?

Voltando ao popular em teatro, e sem purismos de qualquer espécie, é preciso, minimamente, ter clareza, conhecer e articular os seguintes aspectos ao usar não o rótulo, mas a relação pressuposta pelo popular: origem, objetivos, função, natureza.[5] Originado e divulgado, sobretudo, pela oralidade, sem dispensar outras formas de registro, ao longo da história, o teatro popular, originado na Antigüidade clássica grega, foi desenvolvido à excelência pelos romanos, tomando como ‘combustível essencial’ o jogo e a ludicidade: rivalidade saborosa entre público e atores. Relacionar-se de modo partilhado e direto, repleto de inserções épico-narrativo, tem caracterizado, também, todas as formas que buscam a rua como palco. Assim, é função e natureza do popular, principalmente quando apresentado na rua, facilitar o acesso à arte, transformando um lugar (que é materialidade) em um espaço (prenhe de instabilidade e de contradição, que tem circunstância, tempo) comunicacional. Nessa transformação, há um processo de intervenção de sujeitos históricos que reinventam e atribuem uma nova função ao espaço, em que os indivíduos relacionam-se e reiventam-se em processo. Nesse processo facilitador, fundem-se: acessibilidade físico-geográfica, donde a escolha pelos espaços abertos, públicos e itinerantes; acessibilidade temática, em que tanto os conteúdos como o seu modo de exposição possam ter relevância social e ser significativos e de interesse àqueles a quem a obra fundamentalmente se destina; acessibilidade na criação e apresentação das personagens, sem subestimar ou superestimar o público, mas estabelecer uma relação de parceria e cumplicidade. Finalmente, e de modo redutor (porque muitas outras coisas haveriam a ser ditas), o teatro popular que pode enfatizar o entretenimento, a diversão, o digestivo, a provocador, o problematizador, a identificação emocional tem no teatro popular, por seu caráter épico e suas características de acessibilidade, uma forma híbrida, cujo olho ‘pregado e despregado no público’ improvisa, porque a vida é urgente e o trancetê da rua também. Muitos são aqueles que têm tentado contar a história do teatro de rua brasileiro: através de livros, revistas, encontros - artísticos e de reflexão. Então, e porque são muitos os Quixotes-macunaímicos-Severinos as perspectivas confluem para o registro, a memória e o conhecimento desses paladinos. Já se pode sonhar!

  Publicado originalmente em A Gargalhada, nº 4, setembro/outubro de 2006, p. 4 e 5.

[1] Este ensaio pode ser encontrado no livro organizado por Fiama de Pais BRANDÃO. Estudos sobre teatro – Bertolt Brecht, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005, pp.113-120.
[2] Irreverente muitas vezes pelo modo de desenvolvimento de uma temática ou com relação aos tipos sociais: notadamente repressores, mas sempre irreverente por enfrentar uma multidão de transeuntes que tem seu lugar invadido. O ator que vai para a rua precisa redimensionar-se em tamanho; reprojetar-se, em voz, expressão facial, movimentos; estufar o peito, como um lutador prestes a enfrentar um adversário; transbordar alegrias, choros... Enfim, sobretudo o ‘artista de rua’, sabe que precisa ser um titã!
[3] Das excelentes obras à disposição, e que fazem uma análise desse caráter de reversão, consultar, principalmente o primeiro capítulo, de Mikhail BAKHTIN. A cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo, HUCITEC; Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1993.
[4] Inúmeros exemplos de produções do teatro brasileiro poderiam ser aqui evocados, mas, e partindo do que há de melhor, um dos maiores e mais premiados autores de teatro brasileiro, Luís Alberto de Abreu, e sobretudo a partir da década de 90, produz comédias, da mais significativa e sofisticada qualidade, enfeixando as características aqui apresentadas.
[5] Algumas das características aqui apresentadas prestam-se também ao teatro praticado em espaços fechados, entretanto, é a conjunção e articulação entre elas que caracteriza a prática do popular.

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