Adailtom
Alves Teixeira
Arte é obra pública feita
por particular, pressupõe a entrega do melhor de nós mesmos para consumo da
coletividade. Só podemos fazer isso com nossos melhores sentimentos, mesmo que
seja para falarmos dos piores sentimentos humanos e suas contradições.
Amir Haddad – Amir Haddad de todos os teatros
O
texto que se segue decorre do roteiro de uma fala em um seminário dentro da
programação do Festival Matias de Teatro de Rua, que ocorreu no dia 21 de
setembro de 2024 no Cine Teatro Recreio, em Rio Branco/AC. O Festival é uma
realização da Cia Visse & Versa de Ação Cênica com uma programação que se
deu entre 18 e 24 de setembro de 2024, além de Rio Branco, se estendeu pelas
cidades de Senador Guiomar, Bujari e Plácido de Castro. Apresentado o contexto
passemos aos pontos apresentados em minha fala naquele encontro.
O
primeiro ponto defendido é que foi Amir Haddad, ator, diretor e professor de
teatro com mais de 60 anos de carreira, quem recuperou a ideia de arte pública
para o teatro, especialmente na modalidade praticada na rua. Afinal, tal
conceito era amplamente conhecido apenas no campo das artes visuais. Amir tem vasta
experiências com vários teatros e são mais de quatro décadas dedicadas à
prática do teatro de rua, com seu coletivo Tá na Rua. Tal “recuperação” da arte
pública puxada por Haddad logo se difundiu por todo o Brasil por meio dos
articuladores da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) – criada em 2007 e
único coletivo teatral ativo nacionalmente, embora esteja fragilizado no pós
pandemia.
Em
recente livro Haddad define o que considera arte pública:
Uma arte que se faz e se
produz para todos, sem distinção de classe ou nenhuma outra forma de
discriminação, podendo ocupar todo e qualquer espaço, e com plena função social
de organizar o mundo, ainda que por instantes, fazendo renascer na população a
esperança (Haddad, 2022, p. 146-7).
Mais
do que a esperança, eu diria que é preciso cada vez mais fazer (re)nascer a
revolta, na medida em que vivemos tempos difíceis, no qual o capitalismo já
mostrou todos os seus limites, e arte de maneira geral, precisa disputar subjetividades,
especialmente dos mais pobres. O teatro de rua, por ser uma arte que não
distingue seu público, cumpre papel significativo. Amir não deixa dúvida acerca
do nosso papel, pois como afirma mais a frente, “[...] arte pública é a arte
que não está submetida ao mercado, que é consumida por todos igualmente, em
qualquer lugar; não precisa lugar certo, não precisa de uma plateia certa, e
não depende da bilheteria” (Haddad, 2022, p. 159). Logo, é vista como direito e
se é direito, deve ser atendida por políticas públicas.
Porém,
é importante que se diga que, embora muito difundido entre os fazedores de
teatro de rua e alguns espaços importantes de cultura, a batalha pelo conceito
de arte pública não está ganha, ainda está em disputa, basta vermos a definição
do verbete dado pela Enciclopédia Itaú Cultural, no qual se destaca uma
concepção mais voltada às artes visuais:
Em sentido literal, seriam as obras que pertencem
aos museus e acervos, ou os monumentos nas ruas e praças, que são de
acesso livre. Nessa direção, é possível acompanhar a vocação pública da arte
desde a Antigüidade, lembrando de obras integradas à cena cotidiana - por
exemplo, O Pensador, de Auguste Rodin (1840-1917), instalado em frente do
Panteão em Paris, 1906 - e de outras mais diretamente envolvidas com o debate
político. O projeto de Vladimir Tatlin (1885-1953) para um monumento à Terceira
Internacional (1920) e o Memorial de Constantin Brancusi (1876-1957),
1937-1938, dedicado aos civis romenos que enfrentaram o Exército alemão em
1916, são exemplos disso. O muralismo mexicano de Diego Rivera (1886-1957) e
David Alfaro Siqueiros (1896-1974) pode ser considerado um dos precursores da
arte pública em função de seu compromisso político e de seu apelo visual[1].
A disputa do conceito é
importante, na medida em que no capitalismo tudo tende a virar mercadoria e ser
apropriado por uma determinada classe, a burguesia, até mesmo as políticas
públicas – na medida em que se trata de fundos públicos – tende a contemplar
aquilo que é determinado pelo mercado. Desse modo, inserir o teatro de rua como
arte pública significa também a disputa pelos recursos para os artistas. Nesse
sentido, desde seu início a RBTR tem lutado por políticas públicas de cultura
que de fato cheguem às bases da sociedade, ao mesmo tempo que em vários de seus
documentos tem se colocado contra leis de renúncia fiscal, que são, quase
sempre, apropriadas por pequenos grupos da sociedade. Desse modo, pode-se
afirmar que Amir Haddad e os demais teatreiros de rua estão na disputa do
conceito e dos fundos públicas para que sua arte sobreviva.
Um segundo ponto apresentado no seminário, em
diálogo com o primeiro, foi o de teatro de rua e do direito à cidade,
ressalvando as especificidades da região amazônica. Tal observação, isto é, ter
um olhar diferenciado para essa parte do Brasil é importante por que o substantivo
“rua” colocado ao lado da palavra teatro, portanto, adjetivado, pode levar a
interpretações errôneas de que teatro de rua seja praticado apenas em centros
urbanos. Porém, é importante frisar, o teatro de rua deve ser visto de modo
amplo, como um teatro que chega a todos os lugares e, mais importante, sem
perder os seus pressupostos poéticos e estéticos. Assim, embora tenham também
grandes cidades na Amazônia, por aqui, as ruas são rios e só o teatro de rua
pode chegar nos mais inusitados lugares. Talvez por isso mesmo, o teatro de rua
carregue a condição de “marginal”, de uma arte à margem, mas é justamente por
isso, na sua condição marginal, que reside a sua liberdade. Liberdade para
dialogar com todos/as/es; liberdade para tratar de qualquer temática; liberdade
criativa, na condição de obra em processo, nunca pronta e acabada. Nesse
aspecto, os pressupostos fundantes dessa modalidade são acessibilidade
(geográfica, temática, estética etc.) e porosidade (sempre incorporando as
intervenções do público e dos espaços), daí nunca serem obras definitivas, “acabadas”.
O teatro de rua, onde quer que ele chegue, onde quer que ele se coloque, ressignifica
o lugar – que torna-se espaço de fruição – e transforma o transeunte em
espectador. Por todos esses aspectos, e outros não abordados, o teatro de rua
não consegue ser totalmente apropriado pelo capitalismo – ainda que não possa
impedir que se apropriem de seus expedientes, mas como ouvi certa vez de um
artista popular: “deixem que eles copiem, a gente cria mais” –, trata-se de uma
arte artesanal em seu sentido mais profundo.
Mas apesar de, enquanto potência, poder
chegar em todos os lugares, as cidades são um ponto importante para os
praticantes de teatro de rua, não só porque a maioria da população brasileira resida nas cidades, mas porque o teatro que vai às ruas, está disputando também
um modelo de cidade para cidadãos e cidadãs. O direito à cidade é o ponto zero
dessa nossa disputa e na medida em que o teatro de rua desorganiza a
ordem do capital, pode auxiliar na recuperação do tecido social desgastado,
pode se tornar aquilo que Amir Haddad chama de “a utopia representada”. Ainda
que não se chegue ao utópico propriamente, a busca é incessante, para lembrar
um grande escritor uruguaio, nos faz caminhar.
Desse
modo, ocupar as ruas com o teatro, no sentido que estamos dando, torna (ou
cria-se) espaços de lazer e mobilização social, ainda que temporários. O
neoliberalismo praticamente implodiu o sentimento de coletividade, o EU foi exacerbado
a enésima potência, nesse sentido, o teatro de rua pode auxiliar na
reconstituição/reconstrução dos afetos. Pois como nos ensinou Nego Bispo: “A
arte é conversa das almas porque vai do indivíduo para o comunitarismo, pois
ela é compartilhada” (Santos, 2023, p. 23).
Por
isso mesmo, um outro autor, Henri Lefebvre, insiste que a cidade é um diagnóstico
de nosso tempo. Portanto, uma ideia chave para a transformação radical da
sociedade: “[...] a cidade é um pedaço do conjunto social; revela porque as
contêm e incorpora na matéria sensível, as instituições, as ideologias”
(Lefebvre, 2008, p. 66). O autor está fazendo uma crítica ao ideário da
modernidade, isto é, às concepções de ordem e progresso, que implica,
evidentemente, a concepção de desenvolvimento a qualquer custo e do qual até
mesmo a esquerda tem dificuldades de se livrar. E quanto às cidades amazônicas?
Ora a crítica é ainda mais pertinente, pois a “integração” dessa parte do
Brasil ao restante do país deu-se por meio de projetos coordenados sobretudo
por duas ditaduras, Vargas e a civil-militar – embebidos de positivismo e seu
lema de ordem e progresso até a medula. E aonde tem nos levado tal ideal de
progresso e desenvolvimento encampados por tais projetos? A uma destruição
permanente das florestas, a implantação de uma monocultura e a continuidade do genocídio
dos povos originários.
Aqui
faz-se necessário uma pequena reflexão, pois pode parecer que estou
apresentando o teatro de rua como elemento salvacionista e não é disso que se
trata. O teatro – ou qualquer arte – não muda realidades, mas pode mudar
pessoas e elas, se engajadas e organizadas, poderão mudar a realidade à sua
volta. O teatro de rua, por não está calcando na troca mercantil, realiza a
troca de experiência no sentido benjaminiano. Walter Benjamin (20120 trata de
dois tipos de trocas, erfahrung (experiência)
X erlebnis (vivência). No primeiro
somos atravessados, afetados e isso pode nos modificar; já o segundo o que
temos é uma mera vivência, sem profundidade. Ora, o nosso tempo vive o império
da vivência, do particular, da ligeireza, do não aprofundamento. Ao mesmo tempo
uma radicalização de todo o ideário da modernidade, mas para onde caminhamos? Nas
palavras de Zygmunt Bauman (2005, p.13), a globalização se tornou uma “linha de
produção de refugo humano ou de pessoas refugadas”. A história da modernidade
nos trouxe até aqui. É tarefa dos artistas e das artes por eles praticadas,
incluso o teatro de rua, uma disputa na mudança de rumos, isto é, um rompimento
com o projeto da modernidade. Afinal, estamos no quadrante histórico no qual a
espécie humana terá o grande desafio de qual mundo construirá para as futuras
gerações ou se haverá um “mundo” para a nossa espécie. Disputar as
subjetividades e ocupar as ruas, os rios, as comunidades em geral com uma arte
que seja de diversão e mobilização, no sentido de uma mudança radical.
Referências
ARTE Pública. In:
ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú
Cultural, 2024. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo356/arte-publica.
Acesso em: 30 de outubro de 2024. Verbete da Enciclopédia. ISBN:
978-85-7979-060-7
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro:
Zahar, 2005.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense,
2012. (Obras Escolhidas v. 1)
HADDAD, Amir. Amir Haddad de todos os teatros. Rio de
Janeiro: Cobogó, 2022.
[1] ARTE Pública. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de
Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2024. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo356/arte-publica.
Acesso em: 30 de outubro de 2024. Verbete da Enciclopédia.