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quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Arte pública e direitos culturais

 

Adailtom Alves Teixeira

Arte é obra pública feita por particular, pressupõe a entrega do melhor de nós mesmos para consumo da coletividade. Só podemos fazer isso com nossos melhores sentimentos, mesmo que seja para falarmos dos piores sentimentos humanos e suas contradições.

Amir Haddad – Amir Haddad de todos os teatros

 

O texto que se segue decorre do roteiro de uma fala em um seminário dentro da programação do Festival Matias de Teatro de Rua, que ocorreu no dia 21 de setembro de 2024 no Cine Teatro Recreio, em Rio Branco/AC. O Festival é uma realização da Cia Visse & Versa de Ação Cênica com uma programação que se deu entre 18 e 24 de setembro de 2024, além de Rio Branco, se estendeu pelas cidades de Senador Guiomar, Bujari e Plácido de Castro. Apresentado o contexto passemos aos pontos apresentados em minha fala naquele encontro.

O primeiro ponto defendido é que foi Amir Haddad, ator, diretor e professor de teatro com mais de 60 anos de carreira, quem recuperou a ideia de arte pública para o teatro, especialmente na modalidade praticada na rua. Afinal, tal conceito era amplamente conhecido apenas no campo das artes visuais. Amir tem vasta experiências com vários teatros e são mais de quatro décadas dedicadas à prática do teatro de rua, com seu coletivo Tá na Rua. Tal “recuperação” da arte pública puxada por Haddad logo se difundiu por todo o Brasil por meio dos articuladores da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) – criada em 2007 e único coletivo teatral ativo nacionalmente, embora esteja fragilizado no pós pandemia.

Em recente livro Haddad define o que considera arte pública:

Uma arte que se faz e se produz para todos, sem distinção de classe ou nenhuma outra forma de discriminação, podendo ocupar todo e qualquer espaço, e com plena função social de organizar o mundo, ainda que por instantes, fazendo renascer na população a esperança (Haddad, 2022, p. 146-7).

 

Mais do que a esperança, eu diria que é preciso cada vez mais fazer (re)nascer a revolta, na medida em que vivemos tempos difíceis, no qual o capitalismo já mostrou todos os seus limites, e arte de maneira geral, precisa disputar subjetividades, especialmente dos mais pobres. O teatro de rua, por ser uma arte que não distingue seu público, cumpre papel significativo. Amir não deixa dúvida acerca do nosso papel, pois como afirma mais a frente, “[...] arte pública é a arte que não está submetida ao mercado, que é consumida por todos igualmente, em qualquer lugar; não precisa lugar certo, não precisa de uma plateia certa, e não depende da bilheteria” (Haddad, 2022, p. 159). Logo, é vista como direito e se é direito, deve ser atendida por políticas públicas.

Porém, é importante que se diga que, embora muito difundido entre os fazedores de teatro de rua e alguns espaços importantes de cultura, a batalha pelo conceito de arte pública não está ganha, ainda está em disputa, basta vermos a definição do verbete dado pela Enciclopédia Itaú Cultural, no qual se destaca uma concepção mais voltada às artes visuais:

Em sentido literal, seriam as obras que pertencem aos museus e acervos, ou os monumentos nas ruas e praças, que são de acesso livre. Nessa direção, é possível acompanhar a vocação pública da arte desde a Antigüidade, lembrando de obras integradas à cena cotidiana - por exemplo, O Pensador, de Auguste Rodin (1840-1917), instalado em frente do Panteão em Paris, 1906 - e de outras mais diretamente envolvidas com o debate político. O projeto de Vladimir Tatlin (1885-1953) para um monumento à Terceira Internacional (1920) e o Memorial de Constantin Brancusi (1876-1957), 1937-1938, dedicado aos civis romenos que enfrentaram o Exército alemão em 1916, são exemplos disso. O muralismo mexicano de Diego Rivera (1886-1957) e David Alfaro Siqueiros (1896-1974) pode ser considerado um dos precursores da arte pública em função de seu compromisso político e de seu apelo visual[1].

 

A disputa do conceito é importante, na medida em que no capitalismo tudo tende a virar mercadoria e ser apropriado por uma determinada classe, a burguesia, até mesmo as políticas públicas – na medida em que se trata de fundos públicos – tende a contemplar aquilo que é determinado pelo mercado. Desse modo, inserir o teatro de rua como arte pública significa também a disputa pelos recursos para os artistas. Nesse sentido, desde seu início a RBTR tem lutado por políticas públicas de cultura que de fato cheguem às bases da sociedade, ao mesmo tempo que em vários de seus documentos tem se colocado contra leis de renúncia fiscal, que são, quase sempre, apropriadas por pequenos grupos da sociedade. Desse modo, pode-se afirmar que Amir Haddad e os demais teatreiros de rua estão na disputa do conceito e dos fundos públicas para que sua arte sobreviva.

Um segundo ponto apresentado no seminário, em diálogo com o primeiro, foi o de teatro de rua e do direito à cidade, ressalvando as especificidades da região amazônica. Tal observação, isto é, ter um olhar diferenciado para essa parte do Brasil é importante por que o substantivo “rua” colocado ao lado da palavra teatro, portanto, adjetivado, pode levar a interpretações errôneas de que teatro de rua seja praticado apenas em centros urbanos. Porém, é importante frisar, o teatro de rua deve ser visto de modo amplo, como um teatro que chega a todos os lugares e, mais importante, sem perder os seus pressupostos poéticos e estéticos. Assim, embora tenham também grandes cidades na Amazônia, por aqui, as ruas são rios e só o teatro de rua pode chegar nos mais inusitados lugares. Talvez por isso mesmo, o teatro de rua carregue a condição de “marginal”, de uma arte à margem, mas é justamente por isso, na sua condição marginal, que reside a sua liberdade. Liberdade para dialogar com todos/as/es; liberdade para tratar de qualquer temática; liberdade criativa, na condição de obra em processo, nunca pronta e acabada. Nesse aspecto, os pressupostos fundantes dessa modalidade são acessibilidade (geográfica, temática, estética etc.) e porosidade (sempre incorporando as intervenções do público e dos espaços), daí nunca serem obras definitivas, “acabadas”. O teatro de rua, onde quer que ele chegue, onde quer que ele se coloque, ressignifica o lugar – que torna-se espaço de fruição – e transforma o transeunte em espectador. Por todos esses aspectos, e outros não abordados, o teatro de rua não consegue ser totalmente apropriado pelo capitalismo – ainda que não possa impedir que se apropriem de seus expedientes, mas como ouvi certa vez de um artista popular: “deixem que eles copiem, a gente cria mais” –, trata-se de uma arte artesanal em seu sentido mais profundo.

Mas apesar de, enquanto potência, poder chegar em todos os lugares, as cidades são um ponto importante para os praticantes de teatro de rua, não só porque a maioria da população brasileira resida nas cidades, mas porque o teatro que vai às ruas, está disputando também um modelo de cidade para cidadãos e cidadãs. O direito à cidade é o ponto zero dessa nossa disputa e na medida em que o teatro de rua desorganiza a ordem do capital, pode auxiliar na recuperação do tecido social desgastado, pode se tornar aquilo que Amir Haddad chama de “a utopia representada”. Ainda que não se chegue ao utópico propriamente, a busca é incessante, para lembrar um grande escritor uruguaio, nos faz caminhar.

Desse modo, ocupar as ruas com o teatro, no sentido que estamos dando, torna (ou cria-se) espaços de lazer e mobilização social, ainda que temporários. O neoliberalismo praticamente implodiu o sentimento de coletividade, o EU foi exacerbado a enésima potência, nesse sentido, o teatro de rua pode auxiliar na reconstituição/reconstrução dos afetos. Pois como nos ensinou Nego Bispo: “A arte é conversa das almas porque vai do indivíduo para o comunitarismo, pois ela é compartilhada” (Santos, 2023, p. 23).

Por isso mesmo, um outro autor, Henri Lefebvre, insiste que a cidade é um diagnóstico de nosso tempo. Portanto, uma ideia chave para a transformação radical da sociedade: “[...] a cidade é um pedaço do conjunto social; revela porque as contêm e incorpora na matéria sensível, as instituições, as ideologias” (Lefebvre, 2008, p. 66). O autor está fazendo uma crítica ao ideário da modernidade, isto é, às concepções de ordem e progresso, que implica, evidentemente, a concepção de desenvolvimento a qualquer custo e do qual até mesmo a esquerda tem dificuldades de se livrar. E quanto às cidades amazônicas? Ora a crítica é ainda mais pertinente, pois a “integração” dessa parte do Brasil ao restante do país deu-se por meio de projetos coordenados sobretudo por duas ditaduras, Vargas e a civil-militar – embebidos de positivismo e seu lema de ordem e progresso até a medula. E aonde tem nos levado tal ideal de progresso e desenvolvimento encampados por tais projetos? A uma destruição permanente das florestas, a implantação de uma monocultura e a continuidade do genocídio dos povos originários.

Aqui faz-se necessário uma pequena reflexão, pois pode parecer que estou apresentando o teatro de rua como elemento salvacionista e não é disso que se trata. O teatro – ou qualquer arte – não muda realidades, mas pode mudar pessoas e elas, se engajadas e organizadas, poderão mudar a realidade à sua volta. O teatro de rua, por não está calcando na troca mercantil, realiza a troca de experiência no sentido benjaminiano. Walter Benjamin (20120 trata de dois tipos de trocas, erfahrung (experiência) X erlebnis (vivência). No primeiro somos atravessados, afetados e isso pode nos modificar; já o segundo o que temos é uma mera vivência, sem profundidade. Ora, o nosso tempo vive o império da vivência, do particular, da ligeireza, do não aprofundamento. Ao mesmo tempo uma radicalização de todo o ideário da modernidade, mas para onde caminhamos? Nas palavras de Zygmunt Bauman (2005, p.13), a globalização se tornou uma “linha de produção de refugo humano ou de pessoas refugadas”. A história da modernidade nos trouxe até aqui. É tarefa dos artistas e das artes por eles praticadas, incluso o teatro de rua, uma disputa na mudança de rumos, isto é, um rompimento com o projeto da modernidade. Afinal, estamos no quadrante histórico no qual a espécie humana terá o grande desafio de qual mundo construirá para as futuras gerações ou se haverá um “mundo” para a nossa espécie. Disputar as subjetividades e ocupar as ruas, os rios, as comunidades em geral com uma arte que seja de diversão e mobilização, no sentido de uma mudança radical.

 

Referências

ARTE Pública. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2024. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo356/arte-publica. Acesso em: 30 de outubro de 2024. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras Escolhidas v. 1)

HADDAD, Amir. Amir Haddad de todos os teatros. Rio de Janeiro: Cobogó, 2022.

SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu, 2023.


[1] ARTE Pública. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2024. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo356/arte-publica. Acesso em: 30 de outubro de 2024. Verbete da Enciclopédia.

 

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