Adailtom
Alves Teixeira[1]
Se
como seres humanos somos o resultado cultural de onde fomos socializados
(Laraia, 2005), em um mundo globalizado, integrado por um único modo de
produção que regula nossas vidas, somos todos/as afetados e formados (postos na
forma) por esse tempo e sistema do qual não temos como nos desvincularmos.
Mesmo a crítica ou oposição, é feita a partir de um ponto de vista de dentro.
Como alerta Terry Eagleton: “Cultura é uma dessas raras ideias que têm sido tão
essenciais para a esquerda política quantos são vitais para a direita [...]”
(2005, p. 11). Mas nosso ponto aqui será as mudanças profundas realizadas pelo
capitalismo tardio.
Tanto
Zygmunt Bauman em Vidas Desperdiçadas (2005),
como Richard Sennett em A Cultura do Novo
Capitalismo (2006), apresentam uma crítica contundente à forma como a
sociedade contemporânea foi moldada pelo capitalismo tardio. Ao abordar a
fluidez e a volatilidade que caracterizam a modernidade atual, eles destacam
como as mudanças no trabalho, no chamado “talento” e no consumo afetaram
profundamente a vida humana. Essa transformação cultural, segundo ambos os
autores, não trouxe a tão prometida e propagandeada liberdade, mas, ao
contrário, aprisionou os indivíduos em novas formas de insegurança,
precariedade e alienação.
Sennett
descreve como a aceleração do tempo se tornou uma característica central da
vida moderna. Na cultura capitalista contemporânea, o tempo não é apenas um
recurso, mas um campo de batalha onde todos lutam para não ficarem para trás. A
lógica de mercado demanda que os trabalhadores migrem constantemente de uma
tarefa para outra, de um emprego para outro, de um lugar para outro. O
"ideal do artesanato", que valorizava a dedicação e o aprofundamento
em uma habilidade específica, foi relegado ao passado. Para Bauman, esse
deslocamento contínuo reflete a liquidez da modernidade, pois nesse nosso tempo
tudo é transitório e descartável, inclusive as pessoas.
O
tempo, que antes oferecia um senso de continuidade e planejamento (como nas
carreiras lineares do passado), tornou-se uma série de momentos fragmentados, em
que a acumulação de experiência ou conhecimento a longo prazo é desvalorizada.
O trabalhador deve ser flexível, capaz de se adaptar rapidamente a novas
demandas. Nesse cenário, a estabilidade e a profundidade dão lugar à superficialidade
e ao imediatismo.
A Crise do Artesanal
Para
Sennett, o novo capitalismo destrói o ideal do trabalho artesanal. Fazer algo
bem feito, simplesmente pelo prazer de fazê-lo, perdeu sentido em um contexto
onde o que importa é a capacidade de executar múltiplas tarefas, muitas vezes
desconectadas entre si. “A especialização profunda é substituída pela
"portabilidade de habilidades”, valorizando-se profissionais que podem ser
deslocados para diferentes funções sem muita preparação.
Bauman
complementa essa análise ao mostrar que, em um mundo governado pela lógica do
consumo, o valor do trabalho está atrelado à sua utilidade imediata e
descartabilidade. Se no passado havia um vínculo entre a identidade do
trabalhador e o seu ofício, hoje, essa relação é fragmentada. Os trabalhadores
tornaram-se meras engrenagens, peças substituíveis, sempre à mercê das demandas
do mercado.
Daí
a chamada modernidade líquida de Bauman, enfatizar o conceito de "vidas
desperdiçadas" ou refugos humanos. A aceleração do tempo e a
superficialidade no trabalho levam a um aumento no número de indivíduos
considerados descartáveis, ou como chamou Fernando Henrique Cardoso,
"inimpregáveis" – pessoas que, devido à sua idade, falta de
qualificação ou até mesmo obsolescência tecnológica, são descartadas pelo
sistema. Sennett reforça essa ideia ao observar que a lógica do capital
privilegia o jovem, flexível e barato, enquanto os mais velhos, com suas
habilidades que se tornam obsoletas rapidamente, são deixados de lado.
O
medo de se tornar supérfluo, redundante, isto é, refugo humano, assombra os
trabalhadores, que precisam constantemente requalificar-se para se manterem
relevantes. A incerteza e o medo se tornam os novos motores de uma economia que
demanda eficiência e lucratividade instantâneas. Desse modo, a criação de
espantalhos é outro aspecto desse problema, isto é, o outro, sobretudo o imigrante
para as economias desenvolvidas, passa a ser o inimigo de plantão.
Uma política para ser consumida
Sennett
também explora como o consumo permeia não apenas o mercado, mas todas as
esferas da vida, incluindo a política. Os cidadãos são tratados como
consumidores, cuja insatisfação é capitalizada para gerar lucros e manipular o
mercado político. Bauman identifica esse fenômeno como uma alienação extrema,
onde até mesmo os desejos e as aspirações das pessoas são moldados por uma
lógica consumista. A política torna-se um produto, com plataformas que mais se
assemelham a estratégias de marketing do que a ideais de transformação social.
Conforme salienta Sennett, cinco aspectos afastam o consumidor-espectador-cidadão
da política progressista: ele é
[...] (1) convidado a
aprovar plataformas políticas que mais parecem plataformas de produtos e (2)
diferenças laminadas a ouro; (3) convidado a esquecer a “retorcida madeira
humana” (como se referia a nós Immanuel Kant) e (4) dar crédito a políticas de
mais fácil utilização; (5) aceitar constantemente novos produtos políticos em
oferta (2006, p. 148).
Nesse
contexto, o engajamento político autêntico é corroído, pois os cidadãos-consumidores
tornam-se passivos, movidos mais pelo desejo de satisfação imediata do que pela
reflexão crítica. A democracia, assim, é simplificada e diluída,
transformando-se em um espetáculo onde a participação se resume a um
"comprar" simbólico de ideias políticas, muitas vezes já mastigadas e
pré-formatadas para fácil digestão.
Uma falsa liberdade para consumo
Os
defensores do novo capitalismo argumentam que ele oferece maior liberdade, mas
tanto Bauman quanto Sennett discordam. A liberdade prometida é ilusória: em vez
de promover uma autonomia real, ela aprisiona os indivíduos em um ciclo
constante de consumo e atualização. A liberdade de escolha, evidentemente, é
superficial, pois, na prática, as opções são limitadas às mercadorias e às
experiências oferecidas pelo mercado, seja ele de um novo governo, seja de um
novo mundo.
A
"paixão consumptiva", como Sennett descreve, reflete a necessidade constante
de buscar algo novo, mesmo que esse algo não satisfaça plenamente. No entanto,
essa busca constante é, paradoxalmente, uma fonte de alienação e solidão. A
frustração gerada pela insaciabilidade do consumo é frequentemente canalizada
para o campo político, criando um ambiente onde o populismo e as respostas
simplistas ganham força.
Considerações finais
A
reflexão sobre a cultura no capitalismo contemporâneo, a partir de Bauman e
Sennett, revela um cenário sombrio: um mundo onde o tempo é acelerado, o
talento é descartável, e o consumo se tornou o único paradigma válido. A
promessa de liberdade e progresso se desfaz diante de uma realidade em que os
indivíduos são constantemente substituídos, descartados e manipulados. Assim, o
capitalismo tardio não trouxe a liberdade que prometia, mas sim uma sociedade
mais fragmentada, onde as vidas são desperdiçadas em nome de um progresso que
serve apenas a uma elite cada vez mais rica. Kohei Saito em O capital no antropoceno afirma que “[...]
que os 26 capitalistas mais ricos do mundo controlam tanta riqueza quanto os
3,8 bilhões mais pobres (aproximadamente metade da população mundial)” (2024,
p. 143).
Medo,
por rumarmos ao desconhecido e por estarmos pressionados pelo iminente descarte,
nos sobra a ânsia de mergulhar cada vez mais fundo no mundo das mercadorias,
seja ela reais ou simbólicas:
Em suma, as mercadorias
encarnam a derradeira falta de razão e a capacidade que as escolhas têm de
serem revogáveis, assim como a extrema descartabilidade dos objetos escolhidos.
Mais importante ainda, parecem colocar-nos no controle. Somos nós, os
consumidores, que traçamos a linha divisória entre o útil e o refugo. Tendo por
parceiras as mercadorias, podemos deixar de nos preocuparmos em terminar na
lata de lixo (Bauman, 2005, p. 161).
Ao
final, se temos todos/as nos tornado meros consumidores/as, resta-nos a
pergunta: é possível resgatar um sentido de pertencimento e propósito em um
mundo que valoriza mais o efêmero do que o duradouro? Teremos capacidade de
realizarmos as mudanças necessárias? Fato é que é mais que necessário repensar
radicalmente as estruturas que regem nossas vidas, antes que nos tornemos,
todos, meros consumidores em um espetáculo sem fim.
Referências
BAUMAN,
Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Trad.:
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
EAGLETON,
Terry. A ideia de cultura. Trad.:
Sandra Castello Branco. São Paulo: EdUnesp, 2005.
LARAIA,
Roque de Barros. Cultura: um conceito
antropológico. 18ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
SAITO,
Kohei. O capital no antropoceno.
Trad.: Caroline M. Gomes. São Paulo: Boitempo, 2024.
SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Trad.:
Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2006.
[1] Professor adjunto da Universidade Federal
de Rondônia (UNIR). Doutor e Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da
Universidade Estadual Paulista (Unesp); graduado em História; autor dos livros Circo Teatro Palombar: somos
periferia; potência criativa (Fala, 2024), Teatro de rua: identidade,
território (Giostri, 2020) e coorganizador de Paky`op: experiência,
travessias, práxis cênica e docência em teatro (Edufro, 2022).
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