Por Adailtom Alves Teixeira - Historiador e ator do Buraco d`Oráculo
Desde sua formação o Buraco d`Oráculo trabalha com um gênero específico: a farsa. Não foi uma escolha consciente, pensada. Os espetáculos nos arrastaram para esse gênero teatral, que tem uma estrutura simples e absurda. Na farsa ocorre um desmascaramento constante e o corpo assume uma importância fundamental. No nosso caso, um corpo disforme e estranho. Um corpo grotesco.
O termo grotesco vem de gruta (em italiano grota), por causa das descobertas, no século XV, de uns ornamentos “esquisitos” retirados de escavações em frente ao Coliseu. O termo sofreu variações ao longo dos tempos. Inicialmente era apenas um substantivo, adjetivou-se e chegou a categoria estética. Esteticamente o grotesco sempre existiu e sempre esteve presente nas manifestações artísticas desde a Antiguidade, antes mesmo da invenção do termo (ante litteram).
Victor Hugo foi quem elevou o grotesco a categoria estética, ao defender, no prefácio de Cromwell, a mistura do sublime com o grotesco. Mas o que vem a ser uma categoria estética? Segundo Muniz Sodré, "a categoria responde tanto pela produção e estrutura da obra quanto pela ambiência afetiva do espectador, na qual se desenvolve o gosto, na acepção da faculdade de julgar ou apreciar objetos, aparências e comportamentos." Para tanto, “necessita de uma organização dos elementos na criação do artista".
O grotesco opera por rebaixamento, "suscitando riso, horror, espanto, repulsa" e está presente no teatro, na literatura, nas artes plásticas etc. No dizer de Sodré, "o grotesco é o belo de cabeça para baixo". Ainda segundo este autor, uma categoria estética tem três planos: criação, componentes e efeitos de gosto; e quatro elementos: equilíbrio de forças, reação afetiva (do espectador perante a obra), valor estético (julgamento) e trânsito estético ("o grotesco pode acontecer numa pintura, num romance, num filme, na vida real e assim por diante").
Mikhail Bakhtin afirma que para entender o grotesco é necessário um mergulho na cultura popular, que para ele é pouco estudado. Estudando a cultura popular medieval e renascentista ele denominou essa estética de realismo grotesco, que tem sua expressão máxima no carnaval, que seria "a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva. Essa segunda vida se construiria como "paródia da vida ordinária." Ainda segundo o autor o riso carnavalesco é um patrimônio popular, universal e ambivalente.
Bakhtin afirma que "o traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento", ou seja, faz descer a terra tudo que é elevado. O riso grotesco nos libertaria das "idéias dominantes. Ao penetrar nesse mundo sentimos uma alegria especial e ‘licenciosa’ do pensamento e da imaginação."
O grotesco está associado "a escatologia, a teratologia, aos excessos corporais, às atitudes ridículas e a toda manifestação da paródia em que se produza uma tensão risível, por efeito de um rebaixamento de valores." O fenômeno grotesco manifesta-se, ainda segundo Sodré, representado ou atuado. Sendo que o representado pode estar no suporte escrito (literatura, imprensa) e imagístico (pintura, fotografia, cinema televisão etc.). No atuado o fenômeno pode ser espontâneo ("incidentes da vida cotidiana"), encenado (teatro) e carnavalesco (associado às festas e aos espetáculos circenses).
Atuado ou representado o grotesco assume "modalidades expressivas": escatológico, teratológico, chocante (misto das anteriores, visa apenas chocar) e crítico. Este último propicia um desmascaramento das convenções, rebaixando pelo riso os cânones e o "poder absoluto." A crítica é lúcida, cruel e risível.É justamente o grotesco crítico que o Buraco d`Oráculo tem trabalhado em seus espetáculos, rebaixando e desmascarando alguns tipos sociais, fazendo com que o espectador desvele através dessa operação outros valores e encontre, no dizer de Bakhtin, o "seu corpo social."
Bibliografia
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad.: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 1987.
SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O Império do Grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.
*Publicado originalmente em A Gargalhada, nº 04, Setembro/Outubro de 2006, p. 02.
*Publicado originalmente em A Gargalhada, nº 04, Setembro/Outubro de 2006, p. 02.
Um comentário:
Muito bom o texto, Adailton, nós lemos também Bakhtin no nosso processo de trabalho e de quebra ainda o utilizamos também na UFRR (a maioria dos integrantes da Cia. do Lavrado são estudantes de Letras). Nos identificamos também com vocês quanto a escolha das farsas. Elas é que nos escolheram e resolvemos montar uma trilogia farsesca, que encerrou com o espetáculo A RETRETE OU A LATRINA (2008). Engraçado é que estamos sofrendo influência direto das farsas na nossa próxima produção. Na verdade a Cia. do Lavrado é nova (04 anos) e estamos em busca da nossa linguagem, mas pode ter certeza de seremos influnciados pelas farsas. É uma delícia! Abraços
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