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quinta-feira, 6 de maio de 2010

Uma difícil viagem pelo teatro paulista

Por Alexandre Mate – Professor e pesquisador teatral
Documentar a história é uma espécie de trabalho de Penélope, com a diferença fundamental de que essa construção não pode ser desfeita na calada da noite, como fazia a personagem aqui evocada. As ações humanas não podem ser 'desconstruídas', mas, e por outro lado, como tem acontecido, podem ser esquecidas, pelo seu não registro. Assim, e tendo em vista a complexidade da dinâmica social, a história, do que quer que se ligue ao humano, jamais poderá ser finalizada. Por isso, na história são feitos os chamados recortes, para que se possa reconstituir determinados acontecimentos, em contextos especificados. Nesses recortes, e não se pode esquecer que o teatro é, essencialmente, o espetáculo - uma arte efêmera, que acontece num aqui-agora, sempre determinado e irrepetível -, tem se priorizado principalmente a literatura dramática. Mas vamos que vamos!
Da parte escrita, o registro e a documentação da atividade teatral, que possa ser estendida a um maior número de indivíduos, tem cabido, desde sempre, a um pequeno grupo que seleciona dentre todos os eventos aqueles que por questões de estética, de sucesso, de afinidade pessoal e de parceria, inclusive de classe, lhes interessam. Na totalidade absoluta dos países, e desde sempre, apenas uma pequena parte dessa produção foi e tem sido registrada. Nessa perspectiva, é evidente que há pouca coisa sobre a produção popular registrada e aquela praticada tanto nas periferias como nos centros por grupos 'não antenados' aos interesses dos detentores dos veículos de guarda e socialização de informações. Nelson de Sá, crítico do jornal Folha de São Paulo, durante mais de uma década, em seu livro Divers/idade, apresenta algumas afirmações interessantes. Dentre elas, talvez a mais significativa diga respeito aos processos de subjetividade e de objetividade que ele admite acometer o crítico. Assim, e tomando as observações de um crítico norte-americano, chamado George J. Natham, Sá afirma, à p. 456:
Uma acusação que se faz ao crítico é de ser preconceituoso em favor de certos tipos de teatro e preconceituoso contra outros tipos. Verdade. Mas preconceito, se saudável, é o que dá ao crítico sua posição. Todo homem adquire preconceitos baseado na experiência, por que não o crítico? Há, obviamente, os preconceitos tolos assim como os saudáveis, mas os primeiros logo se traem e derrubam seus mercadores. Preconceitos que são a conseqüência da educação crítica estão entre as armas mais vigorosas do arsenal do crítico. Mostre-me um crítico sem preconceitos e eu mostrarei um cretino completo.
Ufa! Pena não ficar explicado o que seria preconceito tolo e saudável. Aliás, a totalidade dos registros históricos tem mostrado apenas um único tipo de preconceito. Mas como a introdução já ficou maior do que deveria, tentarei e de modo ousado, pelo pequeno espaço disponível entrar no 'assunto principal': uma olhar sobre a produção teatral paulistana.
De modo sumário, mas de acordo com certas panorâmicas de teatro mais longas, no século XVI, as plagas paulistas receberam – da capital ao litoral – alguns autos do Pe. José de Anchieta, criados com o objetivo de inculcar valores e ideologias religiosas e européias aos aborígenes. Nos séculos XVII e XVIII, além da Casa de Ópera (construída no XVIII, em São Vicente), parece que nada ficou documentado. Alguns viajantes estrangeiros relataram em seus diários de viagem algumas cenas vistas, apresentadas por negros, em ocasiões especiais. Dessa forma, e apesar de não haver quase nenhum registro, é seguro que nesses dois últimos séculos foram os negros forros e escravos os praticantes da atividade teatral. No início do século XIX, certa onda nacionalista se desenvolve devido a um conjunto de acontecimentos: vinda da Família Real Portuguesa (1808), Independência do Brasil de Portugal (1822), a criação da Cia. Dramática de João Caetano (Rio de Janeiro), as criações de Martins Pena e tantos outros eventos, desse modo o teatro se desenvolve.[1]Mas, diferentemente daquilo que os preconceituosos críticos da época gostariam, explode, sobretudo a partir da década de 80, principalmente no Rio de Janeiro - Capital do Império (cidade que foi, basicamente, construída a partir de 1808 e reconstruída várias vezes) - um gênero musical conhecido por Teatro de Revista. Os primeiros grandes sucessos foram criados por Arthur Azevedo.
A atividade teatral na cidade de São Paulo no século XIX, pobre em relação àquela fluminense, recebeu muitos dos artistas e cias. da Capital, principalmente no início do século XX. Lentamente, as atividades teatrais foram se desenvolvendo na cidade. Várias colônias fizeram teatro, dentre elas a italiana criou vários círculos filodrammatici. Estas experiências não aparecem relatadas em livros, mas, graças (vejam que ironia) ao Gabinete de Investigações – Censura Teatral e Cinematográfica do Departamento de Polícia e Investigações, desde o governo de Arthur Bernardes, que guardava uma cópia dos textos censurados em seus arquivos, pode-se ter acesso, a muitas das obras montadas na cidade. São inúmeros os textos, muitos deles manuscritos, nas mais diferentes línguas, que podem ser consultados hoje no Arquivo Miroel Silveira, na Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da USP. Dos mencionados círculos Filodrammatici saíram vários artistas que seguiram carreira, como, Nino Nello, e - a considerada primeira atriz paulista do século XX a ser conhecida nacionalmente - Itália Fausta entre outros. A despeito de nossos críticos afirmarem em seus livros que o fenômeno revisteiro (teatro de revista) ficou circunscrito à cidade do Rio de Janeiro, vale afirmar que o gênero, por exemplo, em 1929 teve quase 70 montagens apresentadas na cidade. Esta história ainda espera por ser registrada!
Como se sabe, a Semana de Arte Moderna de 22, que assaltou tanto o Teatro Municipal como seus burgueses e acomodados freqüentadores, não produziu nenhuma obra teatral; entretanto, um dos arautos daquele movimento, bastante influenciado pelas vanguardas européias históricas, Oswald de Andrade escreveu 3 obras turbulentas, que até hoje incomodam muita gente. São elas: O rei da vela (1933), O homem e o cavalo (1934) e A morta (1937).
Influenciado tanto por Oswald como pelas vanguardas européias e paulistas, em 1933, o artista plástico, arquiteto e ativista performático-cultural Flávio de Carvalho, funda o Teatro da Experiência e apresenta a obra escrita e dirigida por ele: Bailado para um deus morto. Com apenas três apresentações, a obra foi censurada. Flávio fazia passeios pelas ruas de São Paulo com saias e brincos.
Fazendo um grande corte temporal, e até por conta daquilo que vem a partir da década de 40, marcar linhas e tendências teatrais; em 1948 - e por iniciativa do engenheiro italiano Franco Zampari e do empresário Ciccilo Matarazzo, que criaram uma sociedade com 200 sócios e sem fins lucrativos, chamada Sociedade Brasileira de Comédia -, foi inaugurado o Teatro Brasileiro de Comédia. Com obras mais ao gosto da burguesia e com espetáculos visualmente impecáveis, o TBC, de 1948 a 1964, apresentou 144 obras e se caracterizou na primeira empresa de produção de espetáculos no Brasil. Passando, didaticamente, por 3 fases distintas, apesar de não ajudar a desenvolver a dramaturgia nacional, o TBC lançou artistas e técnicos, sendo seu maior ícone Cacilda Becker; incentivou o desenvolvimento da crítica teatral; criou uma certa metodologia de ensaio e de procedimentos de análise de obras teatrais; estimulou, através de Alfredo Mesquita, a criação da Escola de Arte Dramática. Enfim, e o que nos interessa agora, criou paradigmas para serem quebrados por aqueles que vieram depois. Fazendo oposição à linha que se pode ligar ao esteticismo realista francês; em 1953, por iniciativa de ex-alunos da EAD, liderados por José Renato, e discordantes da linha do TBC, foi fundado o Teatro de Arena. Com início meio semelhante àquele do grupo por eles rejeitado, somente a partir de 1958, com a estréia de Eles não usam black-tie de Gianfrancesco Guarnieri é que o grupo definiu-se por um teatro épico, nacional e popular. De modo, mais ou menos programático, de 1958 até 1969 (importante lembrar que o Ato Institucional número 5, conhecido como AI-5 foi promulgado em 13/12/68, cessando todos os direitos constitucionais e mergulhando o país em crudelíssimo estado de sítio), os militantes artistas do grupo dedicaram-se ao teatro épico, fundamentado nas experiências brechtianas. Nesse período, para além do estético, os principais integrantes do grupo estavam convencidos que o teatro tinha, também, um compromisso político-social. Desfeito o grupo, em 1972, dele alguns jovens atores saíram para formar o grupo Teatro Núcleo, que levou as propostas do grupo para a periferia da cidade, com sede, na Zona Leste, em São Miguel Paulista. Opondo-se tanto ao esteticismo do TBC como ao épico do Arena; em 1958, no Diretório XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, foi criado o Teatro Oficina, por José Celso Martinez Corrêa e outros. Depois de uma carreira mesclando sucessos comerciais a montagens mais densas, a linha que melhor caracterizou o grupo (que existe até hoje, apesar de alguns anos sem atividades, posto que Zé Celso esteve exilado) liga-se a muitas proposições do pensamento antropofágico e vanguardista de Oswald de Andrade. Ao montar, em 1967, O rei da vela e Roda viva de Chico Buarque de Holanda, Zé Celso cria o conceito de 'estética do deboche', fazendo um esforço, e sem reduzir o conceito, esse deboche corresponde a um comportamento estético mais iconoclasta, grotesco e ritualístico, que caracteriza os espetáculos do Grupo até hoje. Ao lado desses três grupos, e defendendo uma proposta robinhoodiana (cobrar dos ricos e apresentar-se gratuitamente aos moradores da periferia), em 1966, também surgido no Diretório Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, e talvez o mais premiado internacionalmente grupo brasileiro, o União e Olho Vivo, fundado e coordenado até hoje por César Vieira (Idibal Piveta), caracteriza-se em grupo de resistência, cujos espetáculos, com textos tirados coletivamente, e apresentados a partir de uma estética rigorosamente popular alegoriza e representa uma espécie de grito dos excluídos. O União e Olho Vivo apresenta-se em qualquer espaço, tendo em vista seus compromissos estético-políticos.
Na década de 70, com a proibição tácita ao teatro engajado e à palavra socialmente significativa, uma série de espetáculos foi proibida de apresentar-se. Decorrência disso: obras extremamente metaforizadas passaram a ser criadas. Essa situação trouxe, por um lado, obras mais fundamentadas nos aspectos visuais ou inseridas no chamado primado da forma. Essa tendência, na década de 80, teve, talvez, como principal matriz os espetáculos de Gerald Thomas e, por aí, o desenvolvimento do chamado teatro pós-moderno. Das experiências mais significativas, ainda nesta década, há que ser destacado Macunaíma, dirigido por Antunes Filho e apresentado pelo então Grupo de Arte Pau Brasil. Desde o final dessa década, e até os dias atuais, Antunes Filho tem apresentado obras, absolutamente significativas e referencias do teatro brasileiro. Também nos 70, tem início o chamado teatro besteirol, mas desvia-se grandemente de Quem tem medo de Itália Fausta de Miguel Magno e Ricardo de Almeida, considerada uma das primeiras dessa 'tendência'. Tomando, como se convenciou chamar, o texto como pretexto vem do Rio de Janeiro, e faz surpreendente sucesso em São Paulo, o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone. Criado em São Paulo, por alunos de Artes Plásticas da FAAP, orientados pelo grande mestre Naum Alves de Souza, surge o grupo Pod Minoga, com um humor ácido e tangenciante ao besteirol. Com significativa produção popular, absolutamente sofisticada, destaca-se, em dramaturgia, Carlos Alberto Soffredini, idealizador do Grupo Mambembe. Nessa década, surge talvez a primeira bailarina a dedicar-se ao chamado teatro-dança: Marilena Ansaldi, com espetáculos, segundo a crítica especializada, antológicos.
Na década de 80, e com o processo de reabertura política (e é bom não esquecer que o último general militar, João Figueiredo, afirmava, ao tomar posse em 79, que transformaria o país numa democracia nem que para isso tivesse de dar porrada!), a palavra significativa e os grandes espetáculos começaram a reaparecer. Com essa retomada, dentre os vários autores importantes que surgiram, e que transita com obra significativa até hoje, trabalhando com o épico e o popular, é Luís Alberto de Abreu. Depois de 6 anos censurado e com direção de José Renato, e protagonizado por Raul Cortez, estréia na cidade, em 1980, Rasga coração de Oduvaldo Vianna Filho. Seguindo, de certa forma, a curta carreira de Marilena Ansaldi, surge nessa década, depois de aproximadamente 4 anos estudando na Inglaterra, Denise Stoklos.
Atualmente, na cidade muitos são os grupos significativos que têm dignificado a linguagem, mencioná-los aqui seria impossível. Com relação ao teatro popular e o de rua, e se for possível, prometo comentar em próxima oportunidade.
Publicado originalmente em A Gargalhada nº 02, maio/junho de 2006, p. 4 e 5.




[1]A totalidade de nossos autores de história do teatro afirma que o teatro brasileiro, enquanto dramaturgia, de fato, desenvolveu-se nesse século. Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, Gonçalves de Magalhães, França Jr., Gonçalves Dias, Agrário de Menezes, Araújo de Porto Alegre e tantos outros autores apareceram nesse século. Muitos deles tiveram suas obras montadas e escritas em São Paulo.

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