Por Adailtom Alves[1]
O secretário de cultura da cidade de São Paulo, Carlos Augusto Calil, participou em 2008 de um seminário que discutiu cultura e cidade. O seminário foi realizado pelo Itaú Cultural, o Programa ACERCA da AECI-Agência Espanhola de Cooperação Internacional e o Centro Cultural de Espanha em São Paulo. Publicado em livro organizado por Teixeira Coelho, por Itaú Cultural em parceria com a Iluminuras no mesmo ano.
O artigo do Calil, "Sede de Cultura", mostra muito bem o seu posicionamento no que tange as políticas públicas de cultura, reservando três páginas (das doze do artigo) à Virada Cultural e três linhas ao Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. A quem ainda não conhece, cabe informar que o Fomento é Lei, conseguida com muita luta da categoria teatral da cidade, por meio do Movimento Arte Contra a Barbárie. O secretário limita-se a afirmar que: "No campo tradicional do apoio às expressões artísticas, a Secretaria Municipal de Cultuar manteve o Programa de Fomento ao Teatro, criado por iniciativa da Câmara Municipal em 2002 e o estendeu para a Dança, desde 2006".
Calil aproveita para falar dos feitos de sua gestão e dos espaços tradicionais da elite, para ele "há uma sede de cultura no ar". Apesar de saber que a cidade cresceu e que em muitas regiões não se tem acesso a cultura e ao lazer, o processo da Virada Cultural ensinou "que o centro é o território a ser ocupado simbolicamente por todos os habitantes da cidade." Este ano, 2010, serão gastos oito milhões de reais nas vinte e quatro horas que duram o evento. Por isso é sempre bom perguntar: se o povo tem sede de cultura, o que está sendo programado e qual o valor para os outros 364 dias do ano? Se a população deve tomar o centro da cidade não pode ser apenas em um único dia. Há transporte público de qualidade e barato para que a população mais pobre possa ocupar o centro? Melhor, há interesse que a população ocupe o centro ou os interesses são outros?
Cabe lembrar que as duas primeiras edições houve um esforço para que o evento ocorresse em toda a cidade, sem os mega shows, isso não significa que aquele modelo seja melhor que o atual. De qualquer forma, a afirmação da Virada Cultural, veio em 2006 após os ataques do Primeiro Comando da Capital, que dias antes do evento havia paralisado a cidade, mesmo assim a prefeitura manteve o evento e nenhum incidente ocorreu. No ano seguinte, 2007, segundo Calil, o enfrentamento da polícia com o público do show de hip hop, "turvou o resultado de cordialidade que predominou do outro lado do Anhagabaú". Mas o evento é uma referência, no seu dizer, converteu-se "na Festa da Cidade".
No artigo, o secretário aborda ainda futuras construções, como o Centro de Formação Cultural, a ser construído em Cidade Tiradentes, e a Praça das Artes, ao lado do Conservatório, no Boulevard da avenida São João e do Vale do Anhangabaú. E aqui é importante nos atermos a um detalhe, pois a Virada Cultural, que no entender do secretário, é mais do que a simples devolução do imposto "ao contribuinte no velho modo republicano", trata-se do "desejo de tomar posse do centro, o território comum a todos." Embora no discurso seja um território de todos, não é bem isso o que se revela quando olhamos atentamente.
Em outros trechos Calil trata da recuperação do centro histórico, "concreta e simbólica." Ora, há hoje uma disputa em são Paulo em torno das centralidades, já discutidas por Heitor Frúgoli Jr. Essas disputas, grosso modo, tratam da valorização de algumas áreas, em detrimento de outras, nas quais a elite tem muitos imóveis e outros interesses financeiros. A Associação Viva Centro, a anos vem lutando pela valorização dessa área, isso depois que perdeu status para a região da Paulista, após uma grande campanha do Banco Itaú para eleger a Avenida Paulista símbolo de São Paulo. E mais recentemente essa centralidade vem se deslocando para a região da Berrini, na qual São Paulo desponta como a cidade global, oferecendo serviços de ponta.
A recuperação do centro histórico aludido por Calil, está em pleno processo e a Virada Cultural é um chamariz, uma espécie de cereja do bolo, afinal, segundo ele, "o vetor que pode recuperar o centro histórico, mesmo na sua vertente construtiva, é o da valorização cultural." E a Praça das Artes pode vir complementar esse projeto – não esqueçamos faz tempo esse processo vem sendo aplicado na região da Luz. Trata-se de uma política de gentrification,[2] de valorização econômica, em que a cidade torna-se mercadoria.
Quem mais ganha com a recuperação do centro nesses moldes, já que não se fala nunca de habitação popular nessas regiões? A Associação Viva Centro, já citada, tem uma publicação, a revista Urbs, nas suas páginas é possível identificar quem faz parte dessa rede: Bank Boston, Pinheiro Neto Advogados, Bovespa entre outros.
Todo esse processo começou faz tempo com a retirada dos camelôs e a ida de alguns departamentos públicos para prédios da região central, tanto do Estado como do município. O processo é amparado em lei desde 1997 (lei municipal 12.349) e é chamada de Operação Urbana Centro, um projeto de parcerias entre poder público e iniciativa privada. A lei – que permite que grandes prédios sejam construídos em uma pequena área, possibilidade que não existe em outras regiões – atenderia "a demanda por escritórios, hotelaria, serviços e residências numa área onde os terrenos são relativamente escassos e de dimensões mais reduzidas que em outras partes da cidade" é o que afirma o texto de Jule Barreto na revista Urbs de outubro/novembro de 2003. Mais adiante, completa: "Foi para acomodar essa demanda futura e despertar um circulo virtuoso de incremento econômico, qualidade de vida e valorização do patrimônio público e privado que se criou a Operação Urbana Centro – um excelente negócio para a cidade e para o empreendedor."
É importante ficarmos atento a esta operação, que está inserido em um movimento mundial que tem se intensificado pós-Barcelona. No Brasil não é só em São Paulo que tem se aplicado as políticas de gentrification, o Rio padece desse problema, Recife e outras cidades, que mesmo numa pesquisa rasa é possível identificarmos. As cidades espetáculos, transformam os lugares, poucos pedaços, em falsas localidades culturais, servindo para que uns poucos possam acumular ainda mais. Enquanto isso, a população de rua, que "moram" basicamente na região central, só aumenta. Em recente notícia do Diário de S. Paulo, afirmava-se que os moradores de rua incomodavam o padre da Sé,[3]criando uma divisão na própria igreja, pois se alguns querem dignidade para essas pessoas, o padre entende que os mendigos nas escadas da igreja da Sé incomodam os turistas. Percebe-se, assim, que os discursos estão bem articulados entre poder público, iniciativa privada e a igreja. E nesse acordo tácito, os refugos humanos são um problema e devem ser descartados e nada melhor que um perfume francês para disfarçar a podridão. Mas, se não tem perfume, pode ser um evento de inspiração francesa, uma nuit blanche, por exemplo.
Bibliografia
BARRETO, Jule. "As Operações da Operação Urbana Centro". In: Urbs. Ano VII, n 32, outubro/novembro de 2003.
CALIL, Carlos Augusto. "Sede de Cultura". In: COELHO, Teixeira (org.). A Cultura pela Cidade. São Paulo: Itaú Cultural; Iluminuras, 2008.
CHRISTIANO, Cristina. "Mendigos na Sé dividem católicos" In: DIÁRIO de São Paulo. Dia-a-Dia, sexta-feira, 07 de maio de 2010. Disponível em: HTTP://www.diariosp.com.br/Noticias/Diaadia/4900/Mendigos+na+Se+dividem+catolicos, consultado em 12/05/10.
LEITE, Rogério Proença. Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea. 2ª ed. Campinas: Unicamp; Aracaju: UFS, 2007.
[1]Licenciado em História e mestrando em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp.
[2]Por ser uma tradução ainda complicada, preferi deixar o termo no original, assim como Rogério Proença Leite, para quem "as políticas de gentrification reinventam lugares, recriam tradições, estabelecem centralidades." (2007, p. 29)
[3]A matéria pode ser encontrada também na internet: HTTP://www.diariosp.com.br/Noticias/Diaadia/4900/Mendigos+na+Se+dividem+catolicos
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