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quarta-feira, 9 de julho de 2025

Quando as contradições explodem

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

A valorização moral do trabalho como virtude não é uma noção atemporal ou natural, mas uma construção histórica que ganha força especialmente com a ética protestante calvinista. Essa perspectiva, que associa a prosperidade à graça divina e ao esforço individual, foi fundamental para justificar as desigualdades sociais ao longo da modernidade. Assim, os ricos seriam “trabalhadores virtuosos” e os pobres, vítimas da própria “preguiça” ou falha moral. Tal lógica é reciclada nos tempos atuais pela ideia de meritocracia e pela teologia da prosperidade, que insiste em afirmar que o sucesso é apenas fruto da dedicação pessoal, ignorando por completo as estruturas sociais que moldam as oportunidades.

Contudo, nas últimas décadas, com o avanço das tecnologias da informação e da comunicação, o capitalismo sofreu mutações profundas. A aceleração do tempo histórico e a compressão do espaço – fenômenos bem descritos por autores como David Harvey (1996) – fizeram emergir uma nova configuração social, marcada por serviços, virtualidade e imaterialidade da produção. A chamada sociedade de conhecimento, ou sociedade em rede, como define Manuel Castells, revela um deslocamento do eixo produtivo clássico para formas de trabalho cada vez mais simbólicas e cognitivas: “O que pensamos e como pensamos é expresso em bens serviços, produção material e intelectual, sejam alimentos, moradia, sistema de transporte e comunicação, mísseis, saúde, educação ou imagens” (Castells, 2011, p. 69).

Neste novo regime, as big techs tornam-se protagonistas. Empresas como Google, Amazon, Meta e outras dominam mercados, ditam comportamentos e capturam, por meio de algoritmos, nossos dados e nossas subjetividades. Para Marilena Chaui, essa nova configuração social se estrutura na “articulação entre ciência, tecnologia e setor empresarial” (2025, p. 119). A ideologia que a sustenta é a da competência, onde o valor do indivíduo é medido por sua capacidade de adaptação, produtividade e visibilidade.

A virtualidade deixou de ser apenas potência – como era concebida na filosofia – e passou a ser realidade concreta e dominante. Vivemos em um presente contínuo, sem memória do passado ou projeto de futuro. Nesse cenário, o sentimento de existência está atrelado à visibilidade nas redes: “O sentimento de que existir é ser visto, dando origem a uma subjetividade narcisista que, como já explicara Freud, é uma subjetividade depressiva” (Chaui, 2025, p. 121).

A consequência é uma explosão de doenças psíquicas, um mal-estar generalizado da civilização digital. Estamos, muitas vezes, trabalhando sem perceber – e sem remuneração – alimentando com nosso tempo, atenção e dados os sistemas que geram valor para poucos. As redes sociais se tornaram novas formas de exploração do trabalho, ao mesmo tempo em que promovem fragmentação e alienação.

Diante dessa realidade, a velha estrutura de classes persiste e se aprofunda, ainda que obscurecida pela ideologia. A desigualdade é visível a olho nu, mas a ideologia dominante esconde sua origem estrutural e tenta explicá-la como fruto de desvios individuais.

A ideologia distingue, assim, o de facto e o de jure: de fato há divisões sociais; de direito, a sociedade é uma, indivisa, homogênea e harmoniosa, de sorte que as divisões são meramente empíricas e suas causas devem ser encontradas em maus sujeitos sociais (facções, rebeldes, bandidos, preguiçosos, raças inferiores, caipiras, migrantes, imigrantes etc.) (Chaui, 2025, p. 125).

O resultado é a busca constante por inimigos internos ou externos, culpados pelo "fracasso" coletivo. Quando não se encontram inimigos fora, o olhar se volta contra si mesmo, num autojulgamento cruel: cada um se torna responsável pela sua própria derrota, reforçando o isolamento e a culpa.

A crítica de Chaui revela como a ideologia neoliberal opera por deslocamento: “A lógica da circulação das mercadorias, no lugar da lógica da produção; a lógica da informação e da comunicação, no lugar da lógica do trabalho; e a lógica da satisfação-insatisfação dos desejos individuais na sua intimidade, no lugar da lógica da luta de classes” (Chaui, 2025, p. 126).

Esse processo reforça a ideia de que não há alternativa ao sistema atual, mesmo diante de sua evidente falência civilizatória. Estamos, como já se disse, em uma fase histórica em que o velho mundo apodrece, mas o novo ainda não nasceu. A contradição, contudo, insiste em se manifestar. Apesar da ideologia buscar apagar a luta de classes, ela ressurge em manifestações, em greves, em rebeliões urbanas e também em movimentos difusos nas redes sociais.

Como na canção popular, “a vida vem em ondas”, tal onda, ainda que seja algo que vem e passa, deixa marcas. A onda do momento é o “nós contra eles” e o “Somos 99%” (uma releitura do Occupy Wall Street?) são expressões simbólicas da luta de classes que se manifesta dentro do próprio campo das big techs – afinal esse território é do capital, mas depende do uso diário dos/as trabalhadores/as. É preciso ter clareza de que: “A luta de classes não é um conflito, e sim uma contradição interna ao capitalismo entre duas classes que se definem uma pela negação da outra” (Chaui, 2025, p. 130).

A radicalização da desigualdade no Brasil torna essa contradição ainda mais evidente. De um lado, uma elite econômica concentrada no Congresso, formada por representantes do agronegócio, do sistema financeiro e de setores religiosos fundamentalistas. De outro, uma população exausta, precarizada, empurrada para a informalidade e convencida de que deve ser empreendedora de si mesma. A política neoliberal de Estado mínimo para os pobres e Estado máximo para os ricos – com isenções, subsídios e proteção jurídica – gerou uma explosão de insatisfação.

Mesmo com a crise das esquerdas, incapazes por ora de apresentar um projeto alternativo convincente, a realidade econômica bateu mais forte que o discurso dos coaches e dos televangelistas, adeptos da teologia da prosperidade. A fantasia da meritocracia não se sustenta diante da fome, do desemprego, da violência estrutural e da ausência de perspectivas reais para a maioria da população, especialmente a mais jovem.

Em tempos como o nosso, a lucidez crítica é não só um exercício de pensamento, mas uma forma de resistência. O primeiro passo é ver além das aparências e reconhecer que, apesar de todas as máscaras, o sistema continua sendo o mesmo: produtor de desigualdades e destruidor de futuros. Que os movimentos saiam das redes, do virtual, e ganhem o real, as ruas.

 

Referências

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 6ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

CHAUI, Marilena. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2025.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. 6ª ed.  São Paulo: Loyola, 1996.



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista; graduado em História.


[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista; graduado em História.

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