Adailtom Alves Teixeira[1]
Vivemos uma contradição
inquietante: nunca se falou tanto em “narração” e, paradoxalmente, nunca
estivemos tão mergulhados em uma crise profunda das narrativas. Se no passado
as histórias orais eram a base para dar coesão às comunidades, construindo laços,
identidades e memória coletiva, hoje, no ritmo vertiginoso das telecomunicações
e da hiperconectividade, quase nada permanece. Tudo é instantâneo, tudo se
dissipa.
Walter Benjamin já percebia os
sinais dessa crise em seu célebre ensaio “O Narrador”, escrito à sombra da
Primeira Guerra Mundial. Para ele, aquele conflito trouxe uma “pobreza de
experiência” em vez de um enriquecimento humano. Se as narrativas são
mediadoras de experiência, o que restava era o silêncio diante do absurdo das
guerras. É significativo lembrar que a Primeira Guerra foi o primeiro grande
conflito marcado pelo uso massivo da tecnologia, tanto nos armamentos quanto
nos meios de comunicação. Essa ruptura levou Benjamin a afirmar, em outro texto
seu, “Experiência e Pobreza”: “Uma forma completamente nova de miséria recaiu
sobre os homens com esse monstruoso desenvolvimento da técnica” (2012, p. 124).
Décadas depois, Byung-Chul Han
(2023) retoma e aprofunda essa análise, evidenciando como a narrativa
tradicional, que era circular, fechada e criava comunidade, foi substituída
pelo storytelling — uma narrativa funcional, voltada para a lógica do
consumo. Nas palavras do autor: “A Community é formada por consumidores.
Consumidores são solitários. Não formam uma comunidade.”
O storytelling, assim, é uma apropriação capitalista da narrativa: as histórias
não existem mais para compartilhar experiências, mas para dar emoção aos
produtos, para transformá-los em objetos mais vendáveis.
Han também distingue narração
e informação, de certo modo, retomando a diferença benjaminiana entre vivência
(Erlebnis) e experiência (Erfahrung). A vivência passa por nós
superficialmente; a experiência nos atravessa, nos transforma. No entanto, na
sociedade atual, a aceleração informacional promove o que Han chama de desnarrativização
do mundo. Ele alerta: “Estamos muito bem-informados, mas desorientados.”
Evidente que essa dinâmica
altera a nossa capacidade de atenção, é que pesquisas no campo da neuro ciência
tem demonstrado. A narrativa exige tempo, paciência, disponibilidade — virtudes
em extinção. Hoje, queremos tudo rápido: reels que expliquem assuntos
complexos em segundos; áudios ouvidos em velocidade 1,5x ou 2x; livros
resumidos em posts. Até as indústrias da narrativa por excelência, como
a editorial e a audiovisual, se adaptaram: séries mais curtas, filmes
condensados, livros com menos páginas. Obras com mais de 200 páginas (quando
não são clássicos) se tornam raras, enquanto cresce o fenômeno da autoficção,
sintética e fragmentada. Desse modo, temos uma inflação de narrativas que não
resolve o problema; pelo contrário, o amplia. Como afirma Han: “O storytelling
representa um fenômeno patológico do presente” (2023, p. 16).
Diante disso, surge a
pergunta: há saída? Luis Alberto de Abreu, um dos grandes dramaturgos
brasileiros, sugere que o teatro épico seja uma das possíveis respostas. Para
ele, essa forma não apenas promove a partilha, mas: “Propõe e pede a
restauração da antiga unidade entre o público e o privado, o indivíduo e sua
comunidade, a força progressista e de ruptura da imaginação individual e a
solidez do imaginário coletivo” (2011, p. 609).
Tal proposta dialoga
diretamente com as contribuições de Bertolt Brecht, que, ainda segundo Abreu,
abriu caminhos para um teatro capaz de equilibrar elementos épicos e
dramáticos, recuperando o potencial crítico e coletivo da narrativa. Diferenças
entre o épico e o dramático, no entanto, é uma conversa para outro momento.
Referências
ABREU, Luís Alberto. A
restauração da narrativa. In: NICOLETE, Adélia (Org.). Luís Alberto
de Abreu: um teatro de pesquisa. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 599-609.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica,
arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8ª ed. São
Paulo: Brasiliense, 2012.
HAN, Byung-Chul. A crise da
narração. Petropolis, RJ: Vozes, 2023.
[1] Professor do curso Licenciatura em
Teatro da Universidade Federal de Rondônia (Unir); mestre e doutor em Artes pelo
Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); integrante do Teatro
Ruante.
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