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domingo, 24 de agosto de 2025

Crise de narrativa

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Vivemos uma contradição inquietante: nunca se falou tanto em “narração” e, paradoxalmente, nunca estivemos tão mergulhados em uma crise profunda das narrativas. Se no passado as histórias orais eram a base para dar coesão às comunidades, construindo laços, identidades e memória coletiva, hoje, no ritmo vertiginoso das telecomunicações e da hiperconectividade, quase nada permanece. Tudo é instantâneo, tudo se dissipa.

Walter Benjamin já percebia os sinais dessa crise em seu célebre ensaio “O Narrador”, escrito à sombra da Primeira Guerra Mundial. Para ele, aquele conflito trouxe uma “pobreza de experiência” em vez de um enriquecimento humano. Se as narrativas são mediadoras de experiência, o que restava era o silêncio diante do absurdo das guerras. É significativo lembrar que a Primeira Guerra foi o primeiro grande conflito marcado pelo uso massivo da tecnologia, tanto nos armamentos quanto nos meios de comunicação. Essa ruptura levou Benjamin a afirmar, em outro texto seu, “Experiência e Pobreza”: “Uma forma completamente nova de miséria recaiu sobre os homens com esse monstruoso desenvolvimento da técnica” (2012, p. 124).

Décadas depois, Byung-Chul Han (2023) retoma e aprofunda essa análise, evidenciando como a narrativa tradicional, que era circular, fechada e criava comunidade, foi substituída pelo storytelling — uma narrativa funcional, voltada para a lógica do consumo. Nas palavras do autor: “A Community é formada por consumidores. Consumidores são solitários. Não formam uma comunidade.”
O storytelling, assim, é uma apropriação capitalista da narrativa: as histórias não existem mais para compartilhar experiências, mas para dar emoção aos produtos, para transformá-los em objetos mais vendáveis.

Han também distingue narração e informação, de certo modo, retomando a diferença benjaminiana entre vivência (Erlebnis) e experiência (Erfahrung). A vivência passa por nós superficialmente; a experiência nos atravessa, nos transforma. No entanto, na sociedade atual, a aceleração informacional promove o que Han chama de desnarrativização do mundo. Ele alerta: “Estamos muito bem-informados, mas desorientados.”

Evidente que essa dinâmica altera a nossa capacidade de atenção, é que pesquisas no campo da neuro ciência tem demonstrado. A narrativa exige tempo, paciência, disponibilidade — virtudes em extinção. Hoje, queremos tudo rápido: reels que expliquem assuntos complexos em segundos; áudios ouvidos em velocidade 1,5x ou 2x; livros resumidos em posts. Até as indústrias da narrativa por excelência, como a editorial e a audiovisual, se adaptaram: séries mais curtas, filmes condensados, livros com menos páginas. Obras com mais de 200 páginas (quando não são clássicos) se tornam raras, enquanto cresce o fenômeno da autoficção, sintética e fragmentada. Desse modo, temos uma inflação de narrativas que não resolve o problema; pelo contrário, o amplia. Como afirma Han: “O storytelling representa um fenômeno patológico do presente” (2023, p. 16).

Diante disso, surge a pergunta: há saída? Luis Alberto de Abreu, um dos grandes dramaturgos brasileiros, sugere que o teatro épico seja uma das possíveis respostas. Para ele, essa forma não apenas promove a partilha, mas: “Propõe e pede a restauração da antiga unidade entre o público e o privado, o indivíduo e sua comunidade, a força progressista e de ruptura da imaginação individual e a solidez do imaginário coletivo” (2011, p. 609).

Tal proposta dialoga diretamente com as contribuições de Bertolt Brecht, que, ainda segundo Abreu, abriu caminhos para um teatro capaz de equilibrar elementos épicos e dramáticos, recuperando o potencial crítico e coletivo da narrativa. Diferenças entre o épico e o dramático, no entanto, é uma conversa para outro momento.

Referências

ABREU, Luís Alberto. A restauração da narrativa. In: NICOLETE, Adélia (Org.). Luís Alberto de Abreu: um teatro de pesquisa. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 599-609.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.

HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Petropolis, RJ: Vozes, 2023.



[1] Professor do curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (Unir); mestre e doutor em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); integrante do Teatro Ruante.

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