Adailtom
Alves Teixeira[1]
Volta
e meia, como o dia que inevitavelmente sucede à noite, ressurge o debate (ou a
ilusão) de uma arte que não seja política, como se isso fosse possível. A
reivindicação por uma arte “neutra”, “pura” ou “não engajada” é, em si, uma
tomada de posição ideológica, pois o alinhamento ou engajamento é mais profundo
do que muitas vezes se imagina. Todo ser humano nasce em um mundo culturalmente
estruturado, em um tecido simbólico e social já dado, que antecede e condiciona
nossas escolhas. À medida que ganhamos consciência, podemos deliberar e
transformar, mas mesmo essas decisões se dão dentro dos limites do mundo
conhecido, das linguagens e valores herdados. Assim, os pressupostos idealistas
da arte — essa ideia de uma arte “autônoma”, “acima” das contradições
históricas — persistem e atormentam os desavisados desde, pelo menos, a
Antiguidade. No Ocidente, essa tensão tem raízes profundas: basta lembrar de
Platão, que em A República expulsou os poetas de sua cidade ideal, por
considerá-los perigosos à ordem racional do Estado.
Apesar
dessa legitimação filosófica inicial, e de muitas outras que viriam depois, a
condenação platônica ressurgirá diversas vezes ao longo da história ocidental,
ora sob a forma de censura direta, ora como desconfiança moral em relação à
arte e aos artistas, frequentemente vistos como figuras dissolutas ou
subversivas. Como lembra Haar,
[...] na Inglaterra o
puritanismo conseguiu, em 1642, o fechamento dos teatros. Assim também temos
que lembrar que a instituição da censura é extremamente antiga e persistente:
ela já existia desde Atenas, foi exercida pela Igreja e mais tarde organizada
por Richelieu como aparelho do Estado (Haar, 2000, p. 31).
Desse
modo, a perseguição às artes assume múltiplas faces: a censura explícita, o
controle econômico, a desvalorização simbólica ou mesmo o discurso
aparentemente inofensivo de que “arte e política não se misturam”. No fundo,
trata-se sempre de uma tentativa de desarticular o potencial crítico da arte e
de neutralizar seu poder de imaginar outros mundos possíveis.
Entretanto,
se somos seres sociais e, portanto, seres políticos por definição, não há arte
que não seja política. Raymond Williams explica com clareza essa condição de
pertencimento estrutural:
[...] nascemos em uma
situação social, em relações sociais, em uma família, que juntas formaram o
que, elevando o nível de abstração, poderíamos ver como sendo nós mesmos
enquanto indivíduos. Muito dessa formação ocorre antes de termos consciência de
qualquer individualidade. De fato, a consciência da individualidade é
frequentemente a de todos esses elementos de nossa formação, mesmo que nunca
possa ser completada. Os alinhamentos são certamente profundos. São nossa
maneira normal de viver no mundo, nossa maneira normal de ver o mundo
(Williams, 2015, p. 127).
E
Williams aprofunda ainda mais essa reflexão, tomando o caso específico do
escritor:
[...] para um escritor, há
algo ainda mais específico: ele nasceu em uma língua; seu próprio meio de
comunicação é algo que aprendeu como se fosse natural, embora, sem dúvida,
saiba que existem outras línguas muito diferentes. [...] Portanto, nascido em uma
situação social, com todas as suas perspectivas específicas, e em uma língua, o
escritor está alinhado desde o início (Williams, 2015, p. 128).
Ora,
não é apenas o escritor que nasce sob uma língua, na verdade todo artista,
mesmo aquele cuja arte não se expressa por palavras, está imerso em um universo
simbólico e ideológico. Como já afirmara Bakhtin/Volochínov (2009), todo signo
é ideológico: ao nos expressarmos, refletimos ou refratamos a realidade social
em que estamos inseridos. Nesse sentido, como bem observam Carboni e Maestri, a
língua “[...] é palco privilegiado da luta de classes, expressão e registro dos
valores e sentimentos contraditórios de exploradores e explorados” (2012, p.
12).
Essa
concepção é fundamental para compreendermos que não há neutralidade possível:
toda criação, mesmo aquela que reivindica afastamento do “mundo real”, traz
consigo um ponto de vista, um recorte de classe, de gênero, de território, de
tempo. O mito da arte “pura” é uma das formas mais sofisticadas de alinhamento
com o status quo.
O
ator e diretor Orson Welles, em um breve texto sobre o teatro, recorda o quanto
a arte ganha sentido quando se liga à vida concreta: ao referir-se à invasão da
Áustria por Hitler, afirmou que quando a arte se conecta com a vida cotidiana “[...]
então vale a pena fazer peças, compor canções para elas, produzi-las e nelas
atuar. No minuto em que perdemos isso de vista, nós nos tornamos necromantes ou
encantadores” (Welles, 1998, p. 139).
Evidentemente
que isso não significa reduzir a arte a um mero discurso político. A arte exige
forma, técnica, invenção estética. Pois, como lembra Bertolt Brecht (2005),
quanto mais poética a arte for, mais potente será politicamente, sobretudo se
revelar o mundo como algo transformável. A arte, afinal, não é reflexo passivo
da realidade, mas uma força ativa que desestabiliza certezas e amplia o campo
do possível.
Assim,
insistir na neutralidade é, paradoxalmente, uma forma de alinhamento. Toda arte
é política. A diferença está apenas em saber a favor de quem e de quê lado ela
se move.
Referências
BAKHTIN,
Mikhail; VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. 13ª ed. Trad.:
Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009.
BRECHT,
Bertolt. Estudos sobre teatro. 2ª ed. Trad.: Fiama Pais Brandão. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
CARBONI,
Florence; MAESTRI, Mário. A linguagem escravizada: língua, história,
poder e luta de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
HAAR,
Michel. A obra de arte: ensaio sobre a ontologia das obras. Trad.: Maria
Helena Kühner. Rio de Janeiro: Difel, 2000.
WELLES,
Orson. O teatro e a Frente Popular. In: PRAGA – Estudos Marxistas. N. 5,
maio/1998. São Paulo: Hucitec, 1998, p. 138-139.
WILLIAMS,
Raymond. Recursos da esperança: cultura, democracia, socialismo. Trad.:
Nair Fonseca e João Alexandre Peschanski. São Paulo: EdUnesp, 2015.
[1] Professor do Departamento Acadêmico de
Artes da Universidade Federal de Rondônia (UNIR); mestre e doutor em Artes (Área
de Concentração Artes Cênicas) pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual
Paulista (Unesp); ator, diretor, dramaturgo; integrante do Teatro Ruante; e
articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR).
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