Adailtom Alves Teixeira
I
A presente reflexão analisa o
conceito de massas em Jean Baudrillard a partir de sua obra À Sombra
das Maiorias Silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas (1994).
Para o autor, as massas não constituem um sujeito político nem um coletivo
organizado, mas um princípio de absorção, indiferenciação e inércia que provoca
a implosão dos códigos tradicionais de sentido, sejam eles sociais, políticos e/ou
simbólicos. Ao resumir parte das ideias do autor, o texto discute como a figura
da “maioria silenciosa” desestabiliza a noção moderna de representação e
anuncia a crise do sentido na contemporaneidade.
II
A obra de Baudrillard ocupa
lugar central na crítica à modernidade tardia, particularmente no que concerne
à saturação de signos e à dissolução das referências que estruturavam o
pensamento social clássico. Em À Sombra das Maiorias Silenciosas, por
exemplo, o autor desloca radicalmente o olhar sobre a noção de “massa”,
recusando sua definição sociológica tradicional e interpretando-a como uma
entidade paradoxal: ao mesmo tempo hipervisível e inapreensível, saturada de
signos e esvaziada de sentido.
O autor propõe que o social,
tal como concebido no século XIX e consolidado no século XX pelas ciências
sociais, está em vias de desaparecimento. Em seu lugar, surgem as “massas”, não
como sujeito político, mas como “referente esponjoso, realidade ao mesmo tempo
opaca e translúcida” (BAUDRILLARD, 1994, p. 9). Nesse sentido, a massa absorve,
neutraliza, silencia e impede qualquer tentativa de captura conceitual. Desse modo,
o fenômeno produz, segundo o autor, uma verdadeira implosão do social.
III
Outro ponto importante é que para
Baudrillard, “o termo massa não é um conceito” (1994, p. 11). Pois a própria
tentativa de defini-lo já constitui erro metodológico, pois significaria
procurar sentido onde ele não existe: “Querer especificar o termo massa é
justamente um contra-senso – é procurar um sentido no que não o tem”, isso
porque “ela não tem ‘realidade’ sociológica” (1994, p. 11-12).
Tal recusa vai além da crítica
à sociologia tradicional: ela aponta para a saturação dos grandes conceitos que
organizaram a análise social moderna — classe, relação social, status, poder.
Baudrillard afirma que esses termos, antes considerados pilares explicativos,
sempre foram “noções confusas, mas sobre as quais se conciliaram misteriosos
objetivos, os de preservar um determinado código de análise” (1994, p. 11).
Desse ponto de vista, sua concepção se insere no pensamento pós-moderno, no
qual critica as chamadas grandes narrativas.
Assim, o autor inverte a
lógica com que a modernidade pensou o coletivo: não existe mais um corpo social
organizado, nem uma consciência coletiva, nem mesmo um princípio de conflito
capaz de produzir transformação. Na massa desaparece a distinção entre sujeito
e objeto, ativo e passivo, dominado e dominante. “Na massa desaparece a
polaridade do um e do outro” (1994, p. 12). Por isso, “é também o que produz a
impossibilidade, para a massa, de ser alienada, visto que nela nem um nem o
outro existem mais” (1994, p. 12). Desse modo, a massa não pode ser mobilizada
ou esclarecida. Ela absorve tudo. Mas nada devolve.
IV
Um dos pontos mais fortes da
obra é a relação que o autor estabelece entre massa e informação. Enquanto os
sistemas tentam cada vez mais “manter as massas sob sentido”, elas reagem com
indiferença. Baudrillard afirma: “As massas querem apenas signos, idolatram o
jogo de signos e de estereótipos, idolatram todos os conteúdos desde que eles
se transformem numa sequência espetacular” (1994, p. 15). Tal
espetacularização, não deixa de ser um diálogo com Guy Debord.
Nesse aspecto, o autor
recupera seu diagnóstico anterior da sociedade de consumo: não basta mais
produzir mercadorias — é preciso produzir consumidores. De modo análogo,
não basta produzir sentido — é preciso produzir demanda de sentido. E
isso se tornou quase impossível: “Hoje tudo mudou: o sentido não falta, ele é
produzido em toda parte... é a demanda que está declinante” (1994, p. 27).
Assim como nos mercados
saturados, o sistema sofre com excesso: excesso de discurso, excesso de
comunicação, excesso de convocações à participação. Mas o público permanece
indiferente, como um espectador que se abandona à avalanche de imagens. Daí a
comparação central do autor: as massas são como buracos negros,
“sepulcros estelares”, que absorvem todo o sentido, toda a energia, sem nada
repercutir (1994, p. 33).
V
Um dos argumentos mais
surpreendentes de Baudrillard é que o silêncio da maioria não deve ser
interpretado como alienação, mas como estratégia. Um silêncio ativo, mesmo sem
intenção: “não é um silêncio que fala, é um silêncio que proíbe que se fale em
seu nome. E, nesse sentido, longe de ser uma forma de alienação, é uma arma
absoluta” (1994, p. 23). A massa não responde, não protesta, não reivindica, e
justamente por isso desarma o poder.
O poder espera participação,
opinião, engajamento. Ele quer ouvir e quer ser ouvido. Mas as massas recusam:
“Ninguém pode dizer que representa a maioria silenciosa, e esta é sua vingança”
(1994, p. 23).
A política moderna —
democracia representativa, partidos, sindicatos, movimentos — presumia uma
lógica de mobilização. Mas a massa, ao recusar-se a participar, torna-se irrepresentável.
Isso gera o colapso das esperanças revolucionárias: não há sujeito histórico
capaz de fazer a revolução. Não há classe operária revolucionária. Não há povo
unificado. Há apenas dispersão. Mais um signo de certo pensamento lyotardiano
nas proposições de Baudrillard.
Por isso mesmo, o autor afirma
que já é tarde demais para que o poder tente reverter a apatia em participação:
“o limite da massa crítica foi transposto” (1994, p. 24).
VI
Outro ponto polêmico do livro
é a afinidade entre massas, meios de comunicação e terrorismo. Não porque um
produza o outro, mas porque ambos funcionam pela mesma lógica de negação,
saturação e implosão do sentido.
O terrorismo nega a
representação; a massa também. O terrorismo recusa a lógica social; a massa
igualmente. Baudrillard afirma: “o único fenômeno que está em relação de
afinidade com elas... é o terrorismo” (1994, p. 42-43).
Essa convergência, embora não seja
causal, é assombrosa, pois ambos expõem o mesmo processo: o fim do social.
“Massas, meios de comunicação e terrorismo, em sua afinidade triangular,
descrevem o processo de implosão hoje dominante” (1994, p. 48). Na concepção do
autor, o terrorismo age, a massa absorve. Mas ambos inviabilizam qualquer
horizonte de sentido, já que operam pela desestruturação.
VII
Para Baudrillard, a crise não
é apenas da política representativa, mas de toda a ordem simbólica que
estruturava o social. Ele afirma que estamos diante de “uma ordem simulada” que
não permite nem participação nem negação (1994, p. 81). O socialismo, por
exemplo, perderia sua verdade, tornando-se apenas espectro: “um socialismo
simulado... espectros de segunda mão” (1994, p. 81).
Nesse contexto, o autor
escreve que vivemos uma espécie de “leucemia política”: incapacidade do
organismo social de produzir anticorpos, de reagir, de resistir. Não há mais
inimigo externo: “os melhores (subjetivamente) são também os piores
(objetivamente)” (1994, p. 83). O resultado é paralisia, indiferença, neutralização,
implosão.
VIII
Em À Sombra das Maiorias
Silenciosas, Baudrillard propõe uma teoria radical da saturação e da
dissolução do social. As massas não se comportam como sujeito histórico; não
respondem ao poder; não reivindicam; não participam; não produzem sentido. Elas
absorvem. E nesse processo produzem a implosão da política, da ideologia, da
representação e até mesmo da crítica.
Ainda assim, o diagnóstico do
autor, longe de ser um chamado pessimista, é uma análise provocadora do fim das
categorias que organizaram o pensamento moderno. A massa (“força do neutro”,
“buraco negro”, “referente esponjoso”) teria se tornado o destino do social. A
hiperprodução de sentido, a saturação dos discursos políticos e a
espetacularização da vida pública seriam incapazes de reverter essa tendência.
Por fim, Baudrillard nos
convida a repensar a própria possibilidade de ação política em um mundo em que
o sujeito já não existe, o social se dissolve e o sentido se desintegra. Há
nessa obra muita atualidade, pois descreve com precisão perturbadora a lógica
das sociedades contemporâneas: conectadas, saturadas, informacionalmente
superexpostas e, paradoxalmente, muitas das vezes, silenciosas.
Referência
BAUDRILLARD,
Jean. À Sombra das Maiorias Silenciosas: o fim do social e o surgimento
das massas. Trad.: Suely Bastos. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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