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quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Um corpo sem órgãos numa perspectiva do ator na rua

“Ainda não suportamos a efemeridade, do lugar, da vida, de nós mesmos”
Por Renata K. S. Lemes, mestranda UNICAMP O corpo sem órgãos artaudiano é abordado por Deleuze numa alusão aos “organismos” sociais, tratando aqui de combater a idéia de mundo organizado, dual e arborescente. O corpo como espaço de criação de significâncias, altamente semiotizado é nesta reflexão tomado como elemento-potência para a criação de linhas de fuga, gerando um Corpo sem Órgãos (CsO), onde os sentidos são desterritorializados de suas funções. A abordagem do autor carece de um olhar livre, pois é necessário se deixar um pouco desorganizar: ler com os ouvidos, tatear com olhos, pensar com o olfato, amarrar o coração...mudar orifícios de lugar, fechá-los, desprogramá-los. Deleuze utiliza o CsO para sugerir a desconstrução do corpo conhecido, programado e conduzido pelos vários estratos geradores de significação e repressão . Trataremos aqui de refletir a partir do conceito de CsO, tendo em vista o corpo criativo do ator. O que significa para o ator atuar num corpo “organizado”, de organismo “definido”, com funções claras, trajetórias estabelecidas, jogo sem riscos? Engravidado de um teatro de órgãos - pois não restaria mais o que gerar, senão um teatro hierarquizado fruto de um corpo hierarquizado - o ator busca violentamente inventar seu CsO. Muito já se indagou sobre as propriedades de um CsO: seria um corpo neutro? Seria uma dramaturgia ausente de sentido? Seria um corpo ausente de personagem? De que corpo afinal se está falando quando tratamos do CsO? Quando Deleuze aborda a construção do CSO ele fala principalmente na radicalização de um processo, ele reflete principalmente um processo: "Ele não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas." (Deleuze, 1999) Neste sentido, é possível refletir sobre o trabalho criativo do ator, sua preparação e todo o acontecimento teatral como um processo presentificado, ou seja, a presença infinita de um processo, cujo resultado é também processo; um processo que busca constantemente o alcance de um limite, onde nunca se chega, singularizado em cada experiência; um processo que é o próprio CsO. A partir desta compreensão pensemos na construção de um corpo sem órgãos como uma prática conforme nos sugere Deleuze, elaborando primeiramente a idéia de que ator e corpo não são unidades distintas, mas uma só coisa, hecceidade. Portanto não existe o corpo do ator, mas o ator que é ele mesmo corpo, que é ele mesmo Processo. Esse Processo não é delimitado por um treinamento, ou pelo processo de criação de um espetáculo. O processo gerador de um CsO é o próprio ator colocado em risco em qualquer circunstancia criativa de seu trabalho, numa busca que possibilite libertá-lo das amálgamas “estratificadoras” histórico-sociais de toda existência humana, que solidificam sentidos e identidades, imobilizando as pulsões mais plenas, possíveis de serem geradas em múltiplas combinações que não são essas combinações já funcionalizadas: nariz que cheira, ouvido que ouve, boca que fala, olho que vê. As pulsões trazidas no processo de um CsO desfuncionaliza o corpo criativo, desorganiza o olho que produz e o olho que vê. Ou seja, gera uma infinidade de combinações sempre em movimento, ora o olho que vê também ouve, também fala, também bombeia o sangue... Há nesse processo uma produção de sentido completamente móvel, porosa, um descondicionamento dos estratos, das hierarquias e das funções. No entanto, Deleuze afirma que ao CsO não se chega nunca, ele é o limite, a borda. Porque até alcançarmos a borda, até chegarmos ao limite muitos estratos foram superpostos, por isso sempre haverá estratos a se remover. Criar para si um CsO é colocar-se em processo, em risco, em novidades, sempre na busca de um limite radicalizado de um corpo que nunca se basta, pleno de desejos, desejo-potência. Cada corpo possui o seu próprio limite, sua densidade, fôlego, suas substancias de intensidades. O ator (corpo), portanto, constrói o seu CsO a partir de seus processos criativos em que experimenta a intensificação de suas intensidades gerando outras intensidades, em que se deixa fissurar e atravessar por tensões que vão desestabilizar não só a presença desse ator como toda a linguagem teatral. Criar para si um CsO significa abrir mão de um espaço-tempo cênico conhecido, e lançar-se no abismo de um acontecimento estranho ao corpo-organismo. Tendo em vista que é necessário tornar esse corpo uma espécie de des-estrutura criativa, tomemos aqui a rua, como espaço que desterritorializa o ator, a cena e o espectador. A rua cria uma ambiência espaço-temporal completamente adversa ao corpo cênico. Não somente no sentido de desestruturar seus órgãos, mas de desestruturar o organismo teatral. O corpo sem órgãos não é de modo algum o contrário dos órgãos. Seus inimigos não são os órgãos. O inimigo é o organismo. (Deleuze, 1999) Quando o ator se lança nesse espaço-rua, ele tensiona a convenção teatral, criando uma possibilidade de furar os estratos da subjetividade e da significância. A ambiência é um processo ora de permanência, ora de desorganização do corpo, enquanto fenômeno social. Ela cria uma mobilidade de vivências do corpo que ao mesmo tempo em que o estratifica, também desterritorializa-o. Consideremos aqui espaço como o lugar mais a vida que ele engendra, que o preenche e que por ele é preenchido. A rua é espaço que a medida que reflete e reafirma os estratos sociais da vida das cidades, a hierarquização dos órgãos (cada coisa em seu lugar), a articulação de um organismo representado como “metrópole”, ela própria, a rua feita espaço, desarticula e contraria a ordem programada. Porque a vida que ela engendra não cabe no lugar estabelecido de “organismo”, ela faz vazar, ela trans-borda a vida. O ator é lançado nesse espaço-rua, seu corpo começa a se desterritorializar. Não há cochia, não há silêncio, nem ao menos uma platéia avizinhada, um olhar mais acostumado, um canto...um foco, um refletor. Acontecimentos sucedem-se simultâneos ao corpo-cênico, acontecimentos outros, imprevisíveis. A cidade pulsa no corpo do ator e fora dele. Ele já não reconhece o que é dentro e fora, porque a vida das ruas é tão pulsante quanto seu próprio coração. Ele já não reconhece seu coração.
Porque o corpo sem órgãos é tudo isso: necessariamente um Lugar, necessariamente um Plano, necessariamente um coletivo (agenciando elementos, coisas, vegetais, animais, utensílios, homens, potências, fragmentos de tudo isto, porque não existe “meu” corpo sem órgãos, mas “eu” sobre ele, o que resta de mim, inalterável e cambiante de forma transpondo limiares) (Deleuze, 1999)
A pulsão do desejo desse corpo que desterritorializa-se e reterritorializa-se empurra seus órgãos para um abismo onde suas funções primeiras se deslocam num fluxo constante. Não se trata apenas de colocar o corpo do ator em jogo, uma vez que se está na rua, neste espaço de ambiência. Mas de radicalizar os papeis dados á elaboração das significâncias. Aqui, os estratos de significâncias se desfazem a cada instante, não há regras semânticas ou fisicas que assegure o funcionamento da experiência teatral na rua, cada experiência é singularizada pela adversidade do espaço-tempo da rua. Há sempre oposições, nunca há uma conformação. Então quando Deleuze indica procedimentos, programa para desprogramar o corpo, a rua aparece, como potência que prende orifícios e reabre em outros lugares. Porque a rua é acontecimento, infinitos de acontecimentos que contraria a estrutura do corpo cênico, criando um deslocamento da retina de quem vê, um processo de intensidades que se dá entre a cidade, o ator e o espectador. A cidade se abre pelas ruas desnudando-se diante do ator. O ator, em vias de criar para si um CsO, materializa-se nessa cidade como substância da urbanidade da qual ele próprio é feito. Confunde-se!!! O teatro agora, um desconhecido, exerce sua força criativa sobre esse corpo, sobre os espaços, sobre os olhares...ele, o teatro quer se des-significar. Talvez abrindo mão de uma velha “teatralidade”, ou lançando-se nela até seu esgotamento. Na rua, o ator (corpo) está sempre em esgotamento. Esgotamento das formas, do texto, do sujeito, da recepção. É sempre um outro, em devires de muitos outros, em ação poética, em dores da própria cidade. Na rua, o ator construindo seu Corpo sem Órgãos, pode finalmente compreender o mundo inteiro. Bibliografia citadaDELEUZE, G., GUATTARI, F. Mil Platôs, capitalismo e esquizofrenia, Rio de Janeiro, ed. 34, vol. 3 e vol. 5, 1999 e 1997.

Um comentário:

dickson du-arte disse...

muito interessante sua reflexão. minha pesquisa também compreende a cidade sobre o viés do corpo na dança contemporânea. gostaria de seu contato para trocar figurinhas
meu e-mail: bailadick@yahoo.com.br
abraços!