CONTRIBUIÇÃO À REDE BRASILEIRA DE TEATRO DE RUA
Adailtom Alves Teixeira[1]
Esse texto tem por objetivo fazer alguns apontamentos e levantar questões no intuito de contribuir com o encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) que se aproxima. São discutidos pontos como identidade e a organização em rede, além de apresentar um levantamento das possibilidades de aprofundamento de nossa forma de organização. Desde já, cabe ressaltar que o texto não tem por objetivo esgotar a discussão e nem fechar-se em si, muito pelo contrário, esperamos e desejamos que os demais articuladores da RBTR, contribuam com a discussão, pois só assim aprofundaremos nossa organização político-artística.
RBTR: identidade em construção
Muitos são os autores que escrevem sobre a atual crise de identidade, no entanto, sua discussão nunca foi tão importante. Se as identidades nacionais estão se esfacelando (HALL, 2005), cada vez mais outras identidades vêm se afirmando, tornando-se necessárias nos movimentos de resistência em um mundo globalizado.
Desde já é importante dizer que toda identidade é uma construção (ORTIZ, 1994; CASTELLS, 2001; HALL, 2005; BAUMAN, 2005) e que a mesma se afirma pela diferença, isto é, se afirma a medida que se diferencia de outras identidades. Assim, é na relação que se define a identidade, por isso mesmo, não é a mesma para sempre.
Manuel Castells, em seu livro O poder da identidade, aborda três formas de identidades, enfatizando como as mesmas têm forjado os coletivos. Para Castells, cada vez mais a vida vem sendo moldada pelos conflitos criados pelo processo de globalização, o que tem levado a criação e a afirmação das identidades, dessa forma, a "sociedade em rede" tem levado aos "processos de construção de identidade (...), induzindo assim novas formas de transformação social" (2001: 27). As três formas de identidades são as legitimadoras, de resistências e de projeto.
A primeira identidade apresentada por Castells, a legitimadora, está ligadas as instituições dominantes "e se aplica a diversas teorias dominantes do nacionalismo" (2001: 24). Para o autor, a nação é uma comunidade imaginada que une pessoas em torno de uma história e um projeto político comum. A grande maioria dos nacionalismos foram criados no século XIX; no Brasil não foi diferente. Mas, foi na virada do século, no começo do século XX, que se forjou a ideia de uma nação fundada a partir das três raças: o índio, o branco e o negro. Assim, "o que era mestiço torna-se nacional" (ORTIZ, 1994: 41). Foi dessa forma, com o viés de dominação que se tentou apagar as diferenças que existiam nesse processo de encontro dos três povos, tomando, sobretudo a cultura popular como legitimadora dessa construção (ORTIZ, 1994).
A segunda forma de identidade discutida por Castells é a de resistência, criada por atores em "condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação" (2001: 24). Nesse campo estão os movimentos que lutam por melhores condições de vida, que lutam contra os diversos preconceitos, pelo cumprimento dos direitos humanos. Para além dos movimentos, encontram-se outros coletivos, que levam a termo a formação de comunas ou comunidades de resistência (CASTELLS, 2001:25), que em muitos casos, podem ser apenas defensivos, por estarem limitados em suas forças.
Por fim, o terceiro ponto levantado por Manuel Castells é a identidade de projeto, em que os atores sociais travam uma luta pela mudança da estrutura social. Essa forma de identidade diz respeito a movimentos como o feminista, por exemplo, que tem travado uma disputa na contemporaneidade contra o patriarcado e vem, assim, modificando a estrutura sob a qual foi erigida a sociedade atual.
As identidades de resistência e de projeto podem estar relacionadas, ou seja, um movimento pode começar como resistência e se encaminhar para um projeto que vise modificar a sociedade. Outro aspecto relevante, é que a identidade de resistência pode ser exercida por coletivos menores, como, por exemplo, pelos fazedores de teatro de rua, que são uma categoria social e que podem gerar pequenas comunas. As comunas ou comunidades geradas por pequenos coletivos, também podem ser denominadas de tribos (CASTELLS, 2001).
Como as pessoas vivem nos lugares, interagindo com as outras, é aí que se formam as redes sociais, esse processo auxilia na formação da identidade pessoal, formando também uma identidade territorial. Para Manuel Castells, mesmo com o intenso processo de individualização da sociedade em rede, as pessoas resistem e tendem "a agrupar-se em organizações comunitárias que, ao longo do tempo, geram um sentimento de pertença e, em última análise, em muitos casos, uma identidade cultural, comunal" (2001: 79). Essa forma de identidade pode ser estendido à Rede Brasileira de Teatro de Rua: os fazedores de teatro de rua tem cada vez mais buscado parceiros, com objetivos comuns e que compartilham práticas igualitárias.
Mas, ainda no que concerne a identidade e no caso da RBTR, qual ou quais seriam nossas identidades? Em sendo artistas do povo[2], como sempre frisamos, seria assim que nos definiríamos? Ou para além do artístico, como sujeitos, somos também do povo? Somos identificados apenas ao teatro de rua? Ou aos trabalhadores de maneira geral? Se nós temos sidos alijados ao longo dos séculos – e já que é possível portarmos várias identidades, não apenas por dizer da boca pra fora, mas por, verdadeiramente, nos sentimos pertencentes – poderíamos afirmar que somos artistas, trabalhadores do teatro, sobretudo daquele feito nos espaços abertos e que não levamos nossa arte ao seio popular, ao povo, mas somos integrantes desse povo. Dessa forma, nossa identidade se constitui, por fim, como uma identidade de classe. Pois se a sociedade é dividida entre aqueles que mandam e aqueles que lutam por melhores condições e para modificar essa realidade, os trabalhadores do teatro de rua não estão do lado daqueles que mandam e tem expropriado a classe trabalhadora ao longo desses séculos. Somos trabalhadores do teatro e solidário aos demais trabalhadores.
Uma rápida palavra sobre a questão territorial, já que nos afeta diretamente e influencia na formação identitária, embora seja um tema complexo. Por ora cabe afirmar que os territórios são múltiplos, logo, no caso dos integrantes da RBTR, esses territórios seriam desde o bairro de atuação de um grupo, passando por sua cidade, seu Estado e, por fim, o Brasil como um todo. A territorialização ocorre quando nos apropriamos de um território, o que pode ocorrer por meio da força ou de forma simbólica. Como a RBTR está presente em todo o território brasileiro, é por aí que estamos entendendo o território: o espraiamento nacional. Ainda que esse nacional seja, em certa medida, "imaginado", pois de fato, estamos espalhados por diversas cidades que, por sua vez, estão dentro das unidades federativas, pertencentes ao território brasileiro. Por último, é importante dizer que o território é também fundamental na construção de uma identidade. Parafraseando Marx, é possível afirmar que fazemos o território, ao mesmo tempo que somos feitos pelo território.
Assim, tomando as proposições apresentadas por Manuel Castells, somos um coletivo que tem uma identidade de resistência. Mas, por sermos também um movimento político, temos também um projeto. Logo, e já sendo redundante, somos um movimento político-artístico de resistência. Mas todos têm claro qual é o nosso projeto? E se está claro, como estamos lutando para realizá-lo? Na prática, o que tem sido feito para concretizá-lo?
Para entendermos melhor nossas proposições analiso, de forma rápida, o documento de constituição da RBTR: a Carta de Salvador de 25 de março de 2008[3].
De Salvador para o Brasil ou sob a benção de Caymmi
Que Deus entendeu de dar
A primazia
Pro bem, pro mal
Primeira mão na Bahia
A primazia
Pro bem, pro mal
Primeira mão na Bahia
Toda Menina Baiana. Gilberto Gil
A constituição da Rede Brasileira de Teatro de Rua, ao menos em termos documentais, não se deu no primeiro encontro, ocorrido em 2007 também em Salvador, muito embora naquele primeiro "contato" decidiu-se criar a rede virtualmente, para irmo-nos conhecendo melhor. O Encontro de 2007, realizado pelo Movimento de Teatro de Rua da Bahia (MTR/BA), convocou pessoas dos movimentos organizados de outros Estados, bem como pessoas de onde não havia movimentos organizados, mas que poderiam vir a constituir movimentos em seus Estados. Antes desse encontro, houve outro, ainda em 2005, na cidade de Recife, realizado por outro coletivo: o MTP-PE (Movimento de Teatro Popular de Pernambuco), dentro da programação do 2º Festival de Teatro de Rua do Recife – onde já se desenhava a possibilidade de uma organização nacional. O encontro de 2005 contou com a presença do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo e do Escambo, o MTR/BA foi convidado mas não conseguiu enviar ninguém. Já no encontro em 2007, havia pessoas de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e Espírito Santo[4].
Após esse rápido histórico, passemos à análise do documento de constituição da RBTR de março de 2008, que, na ocasião, contou com a presença de articuladores[5] de nove Estados: BA, PE, MA, CE, RN, RO, MG, SP e RJ.
A Rede se constituiu como um espaço "físico e virtual". Quanto ao seu aspecto virtual é mais claro, inteligível, pois a criação do e-grupo, em tese, supre essa questão. Mas e quanto ao físico? Trata-se tão somente dos encontros? O documento não deixa claro e não recordo se houve discussão acerca desse assunto. O que se discutiu é que os encontros são decisórios, isto é, funcionam como assembléias, logo, são soberanos. Seria possível criar outros espaços físicos para além dos encontros? Quais? Com que objetivo? De qualquer forma, quanto às decisões o documento é explícito ao afirmar que o intercâmbio entre seus membros ocorrerão de maneira virtual com deliberações presenciais. No entanto, a cada encontro são criadas demandas, propostas de ações... quem as põe em prática? Em tese, todos. Mas se ninguém fizer, cobraremos de quem? De nós mesmos. Mas quem é esse nós mesmos? Talvez fosse o momento de, em se decidindo os encaminhamentos e as demandas, criar comissões, grupos de trabalho ou outras formas de organização que pudessem encaminhar as questões, de maneira que o movimento como um todo avance e as demandas sejam realizadas.
Dois pontos no documento são muito importantes, dizem respeito a nossa organização e o papel a ser desempenhado por cada articulador. Quanto à sua organização é "horizontal, sem hierarquia, democrático e inclusivo". Portanto, todos são bem-vindos e ao entrar vem para compartilhar a gestão da RBTR. Para além do exposto, existe um item em que o papel do articulador fica ainda mais claro: "O papel de cada integrante é o de ampliar a Rede". Essa ampliação deve ocorrer na direção da criação de movimentos regionais, haja vista a RBTR ter sido criada a partir de uma articulação de movimentos regionais. E aí nessa área cabe perguntar: como andam as redes locais? O que elas tem feito? Quais redes novas foram criadas? Será que não nos descuidamos das redes regionais pelo fato da RBTR aceitar a todos, independente de estes estarem ou não ligados as redes regionais ou locais? Em tese, as redes regionais deveriam servir de suporte e fortalecimento da grande Rede. Nesse sentido, a RBTR seria uma rede de redes.
O que é uma rede?
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
Quadrilha. Carlos Drummond de Andrade
As redes ganharam impulso nos anos 1990, não por acaso foi a época da política mundial do neoliberalismo, que visa diminuir as obrigações do Estado, terceirizando serviços, privatizando empresas, enfim, eliminando responsabilidades. Após a crise do petróleo no final dos anos 1970, dois governos reacionários reestruturam suas políticas e exportaram seus modelos. Os governos foram o de Margareth Thatcher, na Grã-Bretanha, logo seguida por Ronald Reagan, nos Estados Unidos da América. Na Europa, houve um recuo nas conquistas da classe trabalhadora, que na reconstrução dos países pós Segunda Guerra Mundial, havia conseguido a implantação do Welfare State ou Estado do Bem-Estar Social. Para Thatcher não existe coletivo, apenas indivíduos, estes, por sua vez, deveriam travar uma luta entre si, numa selvageria evolucionista, em que apenas "os bons" sobreviveriam.
O resultado dessa política é uma radicalização da individualidade. Por sua vez, os anos 1980 são marcados pela revolução tecnológica e comunicacional. Assim, o planeta "encolheu" e tudo passou a ser "instantâneo". O mundo ficou menor e pudemos começar (ou desejar) a nos vestirmos como europeu, comer comida japonesa, praticar dança afro e acompanhar notícias da Índia. É a tal da globalização. No campo social, aumentou ainda mais a distância entre ricos e pobres.
No Brasil o neoliberalismo – apesar da Constituição Federal de 1988 ter sido criada com o objetivo de avançar em direção a construção do Welfare, aumentando assim as responsabilidades do Estado – chega no inicio da década de 1990 com Fernando Collor de Melo, que, além de raptar o dinheiro dos brasileiros, no campo das artes, entre outras coisas, acabou com a Fundacen (Fundação Nacional de Artes Cênicas), arrancado pelos artistas em plena ditadura civil-militar.
Logo, se no campo das políticas partidárias e de governo se desenhava o modelo thatcheriano, no campo social, viu-se surgir muitas organizações políticas visando garantir o cumprimento da Constituição e avançar nas políticas sociais. As redes surgem nesse contexto. Mas o que é mesmo uma rede?
Vou tomar aqui as proposições de Cássio Martinho, que após apresentar um panorama histórico da constituição das redes no Brasil, afirma que as mesmas são "um conjunto de pontos interligados" (2004:23). Os pontos, nós, vértices ou elos se ligam a outros pontos, que, no caso da RBTR são os articuladores, mas também os grupos ou mesmo os movimentos regionais. "As redes tornaram-se a principal forma de expressão e organização coletiva, no plano político e na articulação de ações de grande envergadura, de âmbito nacional ou internacional, das ONGs e dos novos movimentos sociais" (MARTINHO, 2004: 16).
Então, em relação à RBTR, caberia perguntar: como deveria agir cada um desses elos, desses pontos? Se, no que diz respeito aos sujeitos (articuladores) que compõem a RBTR e que estão interligados virtualmente, existe certa clareza no documento de constituição acerca dos mesmos, a saber, ampliar e criar movimentos regionais; o mesmo não está claro em relação aos grupos e nem ao papel a ser desempenhado pelos movimentos regionais. Esse seria um ponto interessante a se destrinchar. Ou a Rede se constitui apenas por meio das pessoas ou agrega os elos já levantados e aí é preciso definir o papel de cada um, para que o tecido torne-se mais forte. Evidente que quem realiza as ações são os sujeitos, sejam eles "avulsos", pertencentes a um grupo ou a um coletivo maior, mas ter claro que todos esses elementos podem vir a ter responsabilidades e funções diferenciadas dentro da RBTR merece ser discutido e aprofundado. Para citar um exemplo: nos Estados onde ainda não há movimentos regionais que sejam criados, ainda que tenha apenas dois grupos, e que os mesmos (os movimentos regionais) sejam responsáveis pela realização dos encontros da RBTR. De que forma? A somatória de articuladores e grupos poderiam contribuir com determinado valor para o coletivo regional, estes, por sua vez, somariam o dinheiro de todos os Estados e realizariam os encontros. Isso talvez eliminasse a dependência em um processo de organização dos encontros obrigatórios estipulados no documento de constituição da RBTR, que são dois por ano. Mas isso é apenas um dos fatores, pois outras ações nacionais poderiam ser mais fáceis de serem realizadas se tivermos os movimentos regionais articulados.
Por outro lado, essa forma de organização não constitui a caracterização de uma entidade. Uma rede não é uma entidade, mas sim, uma forma organizacional, que tem como característica a não-linearidade: "a circulação de informação de forma não-linear (isto é, aleatória, não controlada) é capaz de produzir um processo circular de aprendizagem crescente que leva, como consequência, à reorganização dos próprios elementos do sistema" (MARTINHO, 2004: 25). Desse ponto de vista uma rede gera uma grande e múltipla aprendizagem, pois eu posso aprender com pessoas que estão em situação e região diferente da minha; um erro que ocorre em um dado lugar serve de exemplo a outros tantos, assim elimina-se a probabilidade de repetição do mesmo; bem como uma prática que deu certo dentro de dado contexto poderá ser repetido em outro lugar, respeitando determinadas particularidades.
Outro elemento importante em uma rede é a ausência de hierarquia, sem, no entanto, significar baderna ou desorganização, mas sim horizontalidade, o que leva a criação de múltiplas lideranças. Para Martinho, não são os pontos os mais importantes em uma rede, mas sim, as linhas, isto é, as conexões.
É o relacionamento entre os pontos que dá qualidade de rede ao conjunto. Não se tem um diagrama de redes só com pontos, mas com efeito, pode-se perfeitamente desenhar uma rede só com linhas: os pontos aparecem no entrecruzamento das linhas. São as conexões (as linhas) que dão ao conjunto organicidade (...). E é o fenômeno de produção dessas conexões – a conectividade – que constitui a dinâmica de rede. A rede se exerce por meio da realização contínua das conexões; ela só pode existir na medida em que houver ligações (sendo) estabelecidas (2004: 28-9).
Assim, pontos desligados não compõem a rede. Isso parece claro, mas é importante frisar, porque não basta dizer que é ou que está na rede, é preciso fazê-la balançar, se conectando a outros pontos. Essa proposição, que gera a dinâmica da rede, pode ser ilustrada com um exemplo: algumas das pessoas que estavam na criação da RBTR se ausentaram das discussões, das proposições e das práticas, mas a Rede não parou, porque quem foi chegando ou ficando, foi embalando a mesma. Dessa forma se chega à densidade da rede, a capacidade de conexões de uma rede. Se o mais importante são as linhas e não os pontos, é isso que demonstra a densidade da rede, ou seja, a capacidade de conexões que cada ponto pode gerar. O que, por sua vez, demonstra o potencial de ação prática da mesma. Um exemplo claro foi a realização do recente projeto Escambo em Travessia, que, por meio, sobretudo, do articulador Junio Santos (sem nenhum desmerecimento dos demais escambistas) possibilitou a viagem por duas regiões do Brasil: Nordeste e Sudeste. Isto é, a capacidade de um articulador, que "explodiu" em várias conexões com outros articuladores, possibilitou a troca, a viagem e o aprendizado, não apenas para eles, mas para todos da RBTR. Caberia perguntar: será que é possível encontrar uma forma de realizar o mesmo processo do Escambo em Travessia para fora da Rede? Isto é, usar o potencial já existente da RBTR, mas criar conexões com outras pessoas fora da Rede, de maneira, inclusive, de potenciá-la ainda mais? Pensar que o mesmo ocorra de forma mais sistemática para fora, pois em certa medida todos nós já fazemos, até por uma questão de sobrevivência, utilizamos a nossa rede de relações pessoais[6]. Mas como realizar essas ações e potencializar, ao mesmo tempo, a Rede como um todo? Isto é, como potencializar a RBTR utilizando as redes pessoais? Enfim, não sei se seria possível, mas não custa colocar nossa imaginação para funcionar. Seria, talvez, a possibilidade de criar uma força capaz de nos tornarmos independentes, ao menos para muitas ações, e isso enquanto projeto político é alentador. Por outro lado, ações dentro da própria Rede como o já citado Escambo em Travessia, potencializam também a RBTR e fortalece os laços entre os articuladores, o que é fundamental para que a mesma continue a balançar. Afinal as conexões potenciais não postas em ato, em prática, pode vir a esfriar as relações na medida em que o tempo passa.
Martinho apresenta uma equação na qual é possível medir o potencial de relacionamentos das redes a que aplicamos a RBTR. Supondo que somos 200 articuladores, o cálculo ficaria assim: 200 x (200 -1): 2 = (200 x 199): 2 = 39.800:2 = 19.900. Essas quase vinte mil conexões, segundo a equação apresentada pelo autor, seria as possibilidades de relações que podem ser geradas apenas na RBTR, tomando como base, 200 pessoas. "Cada ponto (pessoa), ao estabelecer uma conexão, amplia os limites da rede" (MARTINHO, 2004: 43). As redes são descentralizadas, sem centros, logo, também sem periferias; se realiza por múltiplos caminhos, por isso cria as horizontalidades e por isso impede o desmantelamento da mesma, já que não depende desse ou daquela pessoa, mas sim das conexões que, a cada instante, pode dinamizar e redirecionar a rede. Desse ponto de vista sua estrutura é invisível: "Na verdade, as pessoas, de modo geral, só veem a rede quando precisam dela" (MARTINHO, 2004: 69). É por isso que ao acionar a rede, ainda segundo Martinho, cria-se uma dinâmica de comunidade. E é essa dinâmica de comunidade, do que é comum, que precisa ser potencializado cada vez mais entre nós.
As redes podem ser temáticas ou territoriais. No caso da RBTR, trata-se de uma rede temática, embora relacionado ao território brasileiro, é o tema que nos aglutina e nos mobiliza. Quanto a ação, as redes podem ser de trocas de informações ou operativas. A RBTR, sem dúvida é uma rede operativa:
(...) as redes operativas têm como projeto muito mais do que apenas trocar informação. São elas, necessariamente, redes de troca de informação, mas essa função é apenas mais uma entre tantas atividades que realiza. Esse tipo de rede também desenvolve pesquisas e estudos; estabelece e conduz processos de interlocução e negociação políticas; realiza o acompanhamento de políticas públicas; promove processos de formação e capacitação; faz campanhas públicas de sensibilização, esclarecimento e mobilização; atua na defesa e conquista de direitos sociais e causas coletivas; capta e distribui recursos; presta serviços; e, em alguns casos, como o das redes de socio-economia solidária, realiza mesmo atividades de produção, circulação e até regulação econômica. A maioria absoluta das redes da sociedade civil brasileira é do tipo operativo (MARTINHO, 2004: 94-5).
Assim, uma rede pode "ser um instrumento de transformação da vida" (MARTINHO, 2004: 95). O surgimento pode ser espontâneo ou induzido, mas só ocorre se as pessoas perceberem um projeto comum. Segundo Martinho, os encontros presenciais são pontos de partidas para muitas redes, afinal primeiro se identifica os parceiros, depois o projeto comum. O autor apresenta algumas perguntas norteadoras para a constituição de uma rede: quais os objetivos, área de atuação, a quem beneficiará, o que pretende fazer, entre outras, ou seja, perguntas a que também devemos responder em profundidade.
A missão da RBTR
Ao se constituir uma rede, quase sempre, uma carta de princípios é criada. Assim, de certa forma, a Carta de Salvador, pode ser tomada por esse viés. Isso não significa que precise ser estática, que não possa ser modificada etc., uma rede é sempre dinâmica. Mas, voltemos a Carta de Salvador, para analisar os propósitos da RBTR, ao menos naquele momento, isto é, a três anos atrás.
O documento estabelecia como missão o seguinte:
A MISSÃO da Rede Brasileira de Teatro de Rua é lutar por políticas públicas de cultura com investimento direto do estado em todas as instâncias: municípios, estados e União; divulgação do teatro popular de rua e de seus fazedores e agregar o maior número de articuladores por todo país[7].
Assim, o que se estabelecia naquele momento como luta eram três objetivos fundamentais: lutar por políticas de Estado, divulgar o teatro de rua e ampliar o número de integrantes da Rede. Claro que esses pontos principais podem se desdobrar em pontos menores. Por sua vez, a cada Carta existem também algumas demandas pontuais que podem ou não estar relacionada à sua missão. Caberia perguntar: o que foi conquistado? Fica claro que a Rede se ampliou e auxiliou, mesmo que seja apenas como inspiração, a constituição de redes locais como a do Rio Grande do Sul (na verdade, muito mais uma re-articulação, já que nesse Estado os fazedores se constituíram em movimento em anos anteriores), Rio de Janeiro, entre outros. Mas também inspirou encontros como o de fazedores do Nordeste, puxado pelo grupo Quem Tem Boca é Pra Gritar. Além disso, diversas ações como mostras e festivais, objetivando que os fazedores se encontrem e troquem artisticamente. Outros exemplos ainda podem ser acrescentados por outros membros da Rede.
Quanto ao outro ponto, da divulgação do teatro de rua, penso que, hoje, é quase impossível negar a prática do teatro de rua brasileiro. Isso não significa, no entanto, que o mesmo já foi aceito pelos órgãos públicos, pela academia ou pelos demais fazedores que optam por atuar em outros espaços teatrais. Mas o avanço é claro: essa modalidade teatral foi inserida em muitos festivais, o Congresso Brasileiro de Teatro foi realizado grandemente por causa da RBTR; o Decreto da prefeitura da cidade de São Paulo, que libera os espaços públicos para os artistas populares, dispensando-os dos pedidos de autorizações e todo o trâmite burocrático, não deixa de ser um reconhecimento[8], ainda que, em certa medida, tenha outros interesses por trás disso tudo, que não é o foco da discussão.
No que diz respeito ao ponto principal, a construção de políticas públicas de Estado, a mesma ainda não se realizou, até onde se sabe, em nenhum ente público, seja municipal, estadual ou federal – onde parece estar longe de ocorrer, afinal os recuos que o atual governo federal vem realizando, só tem nos distanciado ainda mais desse objetivo. Mesmo o edital de Artes Cênicas na Rua, uma proposição da RBTR, mas dentro de uma política de governo, representou, em certo sentido, avanços. Não obstante, nesse momento, com o lançamento do atual edital de 2011, parece, a primeira vista, um recuo em relação ao que era, pois tudo indica que em sua reformulação se encaminha para contemplar produtores que queiram realizar ações nos espaços abertos, afinal estes podem pleitear recursos desse edital como complemento de "grandes" ações.
Mesmo assim, há que se reconhecer que o teatro de rua teve avanços e foi graças às ações e as articulações de seus fazedores nesses últimos anos. Mas será que esses pontos da Carta de Salvador devem permanecer como missão, como programa dessa organização político-artística? Sem dúvida a luta por políticas públicas continua atual. Mas será que não é o momento de ampliar os horizontes? E se ampliarmos os horizontes, será em qual direção? A RBTR chegou aos seus quatro anos de existência, mas muito dos fazedores de teatro de rua vêm ainda sendo ignorado socialmente, o que ocorreu por séculos e séculos com o artista popular em geral. É hora de conquistarmos nossa cidadania cultural. Mas é também a hora de nos perguntarmos qual nossa função social: a nossa arte está a serviço do quê e de quem?
(In)conclusão ou hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás
Vivemos um momento de encruzilhada. Em 2011 não conseguimos realizar os dois encontros propostos por nós mesmos. As políticas públicas no âmbito da cultura têm sofrido um retrocesso, não apenas no âmbito federal mas em todas as instâncias. A novidade é que o capitalismo padece de uma tremenda crise pelo mundo todo e todos aqueles que sabem o que ele representa não o suporta mais. É o momento de empurrá-lo mais rápido para o precipício. Mas o capital é dinâmico e voraz. Se na Europa ele está a alguns passos do precipício, pelos países ditos em desenvolvimento como o Brasil, ainda tem campo para explorar. E é o que tem feito com todas as suas forças e ao fazê-lo, é lógico que o alimenta em todo o mundo. Aqui basta citar as grandes usinas hidrelétricas, a especulação imobiliária ou mesmo o pré-sal que, em grande parte, já está na mão do grande capital estrangeiro ou tupiniquim.
O que os fazedores de teatro de rua têm a ver com isso? Não estamos apartados da sociedade, logo, é hora de (re)definirmos objetivos e parceiros. Quem somos nós? O que queremos? Quem é nosso inimigo? Como vamos enfrentá-lo? Quais táticas e estratégias criaremos para enfrentar nosso(s) inimigo(s) e alcançarmos nossos objetivos? Somos um coletivo de resistência, que deve ter um projeto político claro, com objetivos muito bem definidos, com táticas e estratégias definidas por todos e para todos utilizarem; estamos organizados em rede, virtual e fisicamente, com uma potência de conexões extraordinária. E já que somos uma rede temática e operativa, é preciso colocar em funcionamento esse potencial extraordinário de conexões, de maneira a atingirmos nossos objetivos que, inicialmente diz respeito a constituição de políticas públicas para o setor, mas temos o potencial para uma luta maior: a luta contra o capitalismo. Para tanto, é necessário reconhecermos nossa identidade de classe e ampliar nossos parceiros, como os movimentos sociais e outras redes afinadas e empenhadas na luta de classe. É hora de ampliarmos nosso horizonte. Se a RBTR tem uma identidade de resistência, se faz necessário constituir também uma identidade de projeto.
Temos uma tarefa hercúlea, mas somos muitos e estamos em todo o território nacional. Isso não pode ser negligenciado. Vamos mapear quais são nossos parceiros? Se nos vemos como trabalhadores, é claro que são esses nossos principais aliados e que sofre na pele o mesmo que todos nós. Nós não nos diferenciamos dos demais trabalhadores, a não ser pelo fato de termos os meios de produção a que eles não têm. Essa é a nossa grande vantagem: nós detemos os meios de produção, pois necessitamos, em última instância, apenas de nosso corpo e de nossa voz e com esses elementos podemos travar uma disputa pelo simbólico junto aos demais trabalhadores. No entanto, isso não significa que não necessitamos de melhores condições materiais, lutamos para termos isso e assim, ampliarmos nossa luta.
Não tenho dúvida de que nosso principal inimigo é o capitalismo e a sua forma de exploração. No entanto, ele não é o único, ele é o maior e coordena os demais. No nosso caso, o campo artístico, tem um que nos afeta diretamente: a indústria cultural de massa, que, obviamente, é um dos elementos fundamentais para a manutenção do capital. Todos os fazedores de teatro, por ser uma arte artesanal, disputa diretamente com a indústria cultural de massa. Nossa disputa é simbólica, contra a criação de um imaginário perverso que cria consumidores e valores nocivos, da mesma forma que cria uma mercadoria qualquer em uma grande fábrica.
Definir claramente nossos objetivos, nossos parceiros e como caminhar (táticas e estratégias) para ampliarmos os fazedores, os parceiros e atingirmos o alvo, eis o que nos espera em outubro em Teresóplis.
Bibliografia
BAUMAN. Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad.: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Trad.: Klaus Brandini Gerhardt. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas.10ª ed. São Paulo: Cortez, 2003.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad.: Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
MARTINHO, Cássio. Redes: uma introdução às dinâmicas da conectividade e da auto-organização. Brasília: WWF-Brasil, 2004.
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Sites visitados
[1] Ator, diretor, membro do Núcleo de Pesquisadores de Teatro de Rua, integrante do Buraco d`Oráculo, membro do MTR/SP e da RBTR desde a fundação desses dois coletivos.
[2] Marilena Chauí, sempre preocupadas com as questões ideológicas, prefere o termo cultura do povo, ao invés de cultura popular, pois, para a autora, "Considerar a cultura como sendo do povo permitiria assinalar mais claramente que ela não está simplesmente no povo, mas que é produzida por ele, enquanto a noção de 'popular' é suficientemente ambígua para levar à suposição de que representações, normas e práticas porque são encontradas nas classes dominadas são, ipso facto, do povo. Em suma, não é porque algo está no povo que é do povo" (2003: 43). Assim, e reforçando o que muitos têm dito nas discussões virtuais: nós não vamos ou levamos arte pro povo: nós somos o povo.
[3] Disponível em: http://mtrsaopaulo.blogspot.com/2008/04/rede-brasileira-de-teatro-de-rua.html. Consultado em: 27/08/2011.
[4] Um pouco mais desse encontro pode ser encontrado em: http://teatroderuaeacidade.blogspot.com/2009/06/genese-da-rbtr.html.
[5] É importante dizer que nos dois primeiros encontros as pessoas foram como representantes dos coletivos e das cidades. Mas na constituição da RBTR, na escrita do documento, travou-se uma discussão visando uma forma mais horizontal, logo, entendeu-se que o formato de rede era o melhor, surgindo aí termos como articulador e capilazação.
[6] Aqui me refiro às redes que vamos criando com os nossos trabalhos, sejam por meio de vendas dos espetáculos, oficinas etc.
[7] Disponível em: http://mtrsaopaulo.blogspot.com/2008/04/rede-brasileira-de-teatro-de-rua.html. Consultado em: 27/08/2011.
[8] Claro que essa conquista não foi uma luta direta do teatro de rua em particular, mas dos artistas populares em geral em suas diversas áreas, como músicos, circenses, estátuas vivas etc.
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