Adailtom Alves Teixeira
(...) a função
permanente da arte é recriar para a
experiência de cada indivíduo a plenitude daquilo que ele não é, isto é, a experiência da humanidade em
geral.
Ernst Fischer –
A necessidade da arte
Aprendemos com a sociologia e a história da arte que
precisamos analisar obras e artistas a partir de seu contexto. O contexto
mundial vive uma onda reacionária gigantesca. Por isso mesmo, não é à-toa o que
se passa no país, pois quem está no poder, seja por meio do golpe ou das urnas,
são os conservadores, daí a onda de ataques. Claro que, no âmbito federal, o
golpe de estado que sofremos recentemente apenas pôs em prática aquilo que já
vinha se desenhando nas gestões anteriores, travestida de participação popular.
Aquilo que não gera lucro não interessa para o capital e a
burguesia descobriu isso muito cedo. Ora, em um mundo dominado pela
financeirização e em que os capitalistas precisam lucrar cada vez mais produzindo
pouco ou apenas replicando ideias,
qualquer arte só interessa se vier acompanhada de lucros estratosféricos, daí o
alargamento da indústria cultural e a perseguição ou o esmagamento de artes
mais próximas da artesania (aquela em que o artista domina todo o processo) e
daquelas de viés mais crítico. Para quem vê a arte apenas como produto, o
simbólico deve correr o mundo e dá lucro, não há preocupação com a emancipação
das subjetividades, aliás, quanto mais dominados estiverem artistas e público,
melhor. O filme Avatar (2009), de
James Cameron, é um bom exemplo (ainda que exagerado) do que se espera da arte,
seja do algo pequeno ao grande, orçado em US$ 280 milhões (aqui), já lucrou pouco
mais de US$ 2,7 bilhões (aqui).
Assim, um único produto, depois de gerado fica produzindo lucro quase que indefinidamente.
Quais ataques a arte e a cultura têm sofrido em nosso país? Extinção
do Minc, depois revertido por meio da luta dos artistas (caberia perguntar: mas
em que condições e com quais políticas foi retomado?); mudança no ensino médio,
que irá privar muitos jovens do contato com as artes; contingenciamento de
quase 50% das verbas na cidade de São Paulo; cortes também no estado de São
Paulo; expulsão de grupos de teatro de uma ala do Hospital Psiquiátrico São Pedro,
em Porto Alegre, isso após de 16 anos de ocupação; suspensão do PROMIC em
Londrina; extinção da Banda Sinfônica de São Paulo; demissão dos membros da
Orquestra Sinfônica do Paraná e do Balé Teatro Guaíra e, consequentemente, a
suspensão das atividades por tempo indeterminado desses dois corpos estáveis; houve
e há problemas em Sorocaba, Campinas, Santos, todas no estado de São Paulo;
além disso, se fôssemos nomear todas as cidades ou mesmo todas as questões
relacionadas à cultura – que vão desde a ausência de políticas públicas à
perseguição mais clara e direta – o texto teria dezenas de páginas.
Arte é conhecimento, é possibilidade de desenvolvimento e do que
é o humano. Nas palavras de Ernst Fischer, a arte “(...) capacita o ‘EU’ a
identificar-se com a vida de outros, capacita-o a incorporar a si aquilo que
ele não é, mas tem possibilidade de ser” (1973, p. 19). Talvez, por essas
dimensões tão significativas, foi o que levou nossos constituintes a asseguraram
na Carta Magna o direito à cultura, cabendo ao Estado assegurar o fomento e o acesso
(embora desrespeitada desde o começo). Vivemos outro tempo histórico e os
homens e mulheres públicas, ao menos em sua maioria, ao que tudo indica, não estão
mais preocupados com o que reza a Constituição, mas sim com o seu
desmantelamento. Se a busca é pelo econômico, a desculpa também vem daí:
vivemos um tempo de crise. É preciso cortar gastos.
Ora, a cultura não representa nem um 1% do orçamento no
âmbito federal, nos estados e, pelo menos, na maioria dos mais de cinco mil
municípios brasileiro. E onde há políticas públicas, elas funcionam também como
distribuidoras de riqueza. Quantos ficarão desempregados com esses ataques? O
que está em jogo não são os recursos, mas o desmonte do senso crítico, dos
aspectos de sensibilização humana. Querem nos tornar máquinas. Seres cada vez
mais insensíveis e aptos apenas para apertar botões, seres que não questionam e
não olham para o lado para ver se há ou não outro ser humano com o qual podemos
dialogar e pensarmos juntos.
Canclini, ao discutir o termo criatividade em Leitores, espectadores e internautas (2008)
aponta para as mudanças em relação a seu entendimento. Se na primera metade do
século XX havia uma desconfiança provocada pela sociologia e pela história, que
mostravam que a criatividade artística dependia do contexto de produção e
circulação; a partir dos anos 1960 teve uma capacidade criativa nas artes que questionou
esse reducionismo; mas recentemente a crise de criatividade vem ocorrendo pela “atrofia
do mecenato estatal e dos movimentos artísticos independentes na cultura”, isto
é, “Cada vez pergunta-se menos o que traz de novo essa obra ou esse movimento
artístico. Interessa saber se essa atividade se auto-financia, gera lucros e
prestígio para a empresa que a patrocina. Poucos artistas conseguem interessar
um patrocinador sem oferecer-lhe impacto na mídia e benefícios materiais ou
simbólicos” (p. 36). Dessa maneira, a criatividade tem migrado do campo da arte
e ido para o campo dos negócios. Toda a criatividade tem que ser direcionada
para gerar lucro. “As contribuições de intelectuais, editores, músicos, cineastas
e designers são reconhecidas como atividade criadoras, como parte de uma ‘economia
criativa’” (p. 37).
E aqui se faz necessário uma discussão, ainda que rápida,
sobre o produtivo e o improdutivo na sociedade capitalista, isto é, sobre
aquilo que é capaz de gerar mais valia, lucro para alguém e o que não. Aliando,
na medida do possível, a discussão sobre o desenvolvimento dos sentidos, ou de
como esse ataque também tem como alvo modalidades que poderiam ou que
contribuem para o avanço de nosso entorpecimento. Pois o ataque ao campo
cultural se direciona, basicamente, para as atividades ou corpos estáveis
incapazes de gerar lucro ou, como gostam de frisar, de produzirem a própria autosustentabilidade.
No entanto, fundamentais para tornar os cidadãos mais sensíveis, críticos e com
um olhar mais apurado para a realidade que os cerca, como grande parte do
teatro de grupo.
A arte é uma das possibilidades de objetivação da essência
humana, o que, por sua vez, educa os sentidos, na direção de tornar homens e
mulheres humanos. Pois como se sabe, nascemos em meio aos humanos, mas
precisamos tornamo-nos humanos. Ao mesmo tempo, vivemos em um mundo cada vez
mais precarizado e como já anunciou Marx e Engels (2010), homens e mulheres
premidos por urgências, não conseguem se voltarem para o mais belo espetáculo.
E quando, além da precarização, se retira um dos fatores dessa possibilidade de
se humanizarem, como as artes, o que resta?
Ainda com Marx (2010), aprendemos que o artista cria o objeto,
que por sua vez cria o próprio público dessa arte. “Portanto, a produção não
produz somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto”
(p. 137).
E onde entra a questão da mais-valia? Peguemos um exemplo. O
contingenciamento de quase metade das verbas na cidade de São Paulo tem
prejudicado um setor muito importante que tem arejado a cultura daquela cidade:
o teatro de grupo (mas não só). Marx vai definir produtivo ou improdutivo pela
relação que se estabelece, isto é, um ator de teatro, por exemplo, tanto pode
ser produtivo como improdutivo. Se ele trabalha para um produtor em troca de
salário ele é produtivo, está gerando mais-valor para outro, seu empregador.
Se, no entanto, ele organiza sua produção em outros modos, em grupo, por
exemplo, em que tudo, em tese, é compartilhado, sem hierarquia, sem patrão e sem
empregado, ele passa a ser improdutivo. Pois bem, se analisarmos todos os
ataques à cultura, parece que é justamente os improdutivos o principal alvo dos
ataques.
“A burguesia despiu da sua auréola sagrada todas as
atividades até então veneráveis e reputadas como dignas. Transformou o médico,
o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados
pagos por ela” (MARX, 2010, p. 148). Dessa forma, com a nova sanha neoliberal,
manter qualquer atividade sem dela tirar proveito, sem ter lucro, é uma
aberração inominável para a classe dominante. Conhecimento e arte só são significativos
se estes podem representar lucros para uns poucos.
Bibliografia
CANCLINI, Néstor García. A
socialização da arte: teoria e prática na América Latina. Trad.: Maria
Helena Ribeiro da Cunha e Maria Cecília Queiroz Moraes Pinto. São Paulo:
Cultrix, 1980.
_____. Leitores,
espectadores e internautas. Trad.: Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras,
2008.
FISCHER, Ernst. A
necessidade da arte. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. Trad.: José Paulo
Netto e Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
2 comentários:
Excelente texto, professor! Nessa onda de extinção, podemos citar também o excelente Balé Jovem da Fundação Clóvis Salgado/Palácio das Artes de Belo Horizonte. Se não me engano, nesse período, o governador do Estado de Minas Gerais era Antônio Anastasia, do PSDB.
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