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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O ataque às artes e a cultura

Adailtom Alves Teixeira

(...) a função permanente da arte é recriar para a experiência de cada indivíduo a plenitude daquilo que ele não é, isto é, a experiência da humanidade em geral.
Ernst Fischer – A necessidade da arte

Aprendemos com a sociologia e a história da arte que precisamos analisar obras e artistas a partir de seu contexto. O contexto mundial vive uma onda reacionária gigantesca. Por isso mesmo, não é à-toa o que se passa no país, pois quem está no poder, seja por meio do golpe ou das urnas, são os conservadores, daí a onda de ataques. Claro que, no âmbito federal, o golpe de estado que sofremos recentemente apenas pôs em prática aquilo que já vinha se desenhando nas gestões anteriores, travestida de participação popular.

Aquilo que não gera lucro não interessa para o capital e a burguesia descobriu isso muito cedo. Ora, em um mundo dominado pela financeirização e em que os capitalistas precisam lucrar cada vez mais produzindo pouco ou apenas replicando ideias, qualquer arte só interessa se vier acompanhada de lucros estratosféricos, daí o alargamento da indústria cultural e a perseguição ou o esmagamento de artes mais próximas da artesania (aquela em que o artista domina todo o processo) e daquelas de viés mais crítico. Para quem vê a arte apenas como produto, o simbólico deve correr o mundo e dá lucro, não há preocupação com a emancipação das subjetividades, aliás, quanto mais dominados estiverem artistas e público, melhor. O filme Avatar (2009), de James Cameron, é um bom exemplo (ainda que exagerado) do que se espera da arte, seja do algo pequeno ao grande, orçado em US$ 280 milhões (aqui), já lucrou pouco mais de US$ 2,7 bilhões (aqui). Assim, um único produto, depois de gerado fica produzindo lucro quase que indefinidamente.

Quais ataques a arte e a cultura têm sofrido em nosso país? Extinção do Minc, depois revertido por meio da luta dos artistas (caberia perguntar: mas em que condições e com quais políticas foi retomado?); mudança no ensino médio, que irá privar muitos jovens do contato com as artes; contingenciamento de quase 50% das verbas na cidade de São Paulo; cortes também no estado de São Paulo; expulsão de grupos de teatro de uma ala do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, isso após de 16 anos de ocupação; suspensão do PROMIC em Londrina; extinção da Banda Sinfônica de São Paulo; demissão dos membros da Orquestra Sinfônica do Paraná e do Balé Teatro Guaíra e, consequentemente, a suspensão das atividades por tempo indeterminado desses dois corpos estáveis; houve e há problemas em Sorocaba, Campinas, Santos, todas no estado de São Paulo; além disso, se fôssemos nomear todas as cidades ou mesmo todas as questões relacionadas à cultura – que vão desde a ausência de políticas públicas à perseguição mais clara e direta – o texto teria dezenas de páginas.

Arte é conhecimento, é possibilidade de desenvolvimento e do que é o humano. Nas palavras de Ernst Fischer, a arte “(...) capacita o ‘EU’ a identificar-se com a vida de outros, capacita-o a incorporar a si aquilo que ele não é, mas tem possibilidade de ser” (1973, p. 19). Talvez, por essas dimensões tão significativas, foi o que levou nossos constituintes a asseguraram na Carta Magna o direito à cultura, cabendo ao Estado assegurar o fomento e o acesso (embora desrespeitada desde o começo). Vivemos outro tempo histórico e os homens e mulheres públicas, ao menos em sua maioria, ao que tudo indica, não estão mais preocupados com o que reza a Constituição, mas sim com o seu desmantelamento. Se a busca é pelo econômico, a desculpa também vem daí: vivemos um tempo de crise. É preciso cortar gastos.

Ora, a cultura não representa nem um 1% do orçamento no âmbito federal, nos estados e, pelo menos, na maioria dos mais de cinco mil municípios brasileiro. E onde há políticas públicas, elas funcionam também como distribuidoras de riqueza. Quantos ficarão desempregados com esses ataques? O que está em jogo não são os recursos, mas o desmonte do senso crítico, dos aspectos de sensibilização humana. Querem nos tornar máquinas. Seres cada vez mais insensíveis e aptos apenas para apertar botões, seres que não questionam e não olham para o lado para ver se há ou não outro ser humano com o qual podemos dialogar e pensarmos juntos.

Canclini, ao discutir o termo criatividade em Leitores, espectadores e internautas (2008) aponta para as mudanças em relação a seu entendimento. Se na primera metade do século XX havia uma desconfiança provocada pela sociologia e pela história, que mostravam que a criatividade artística dependia do contexto de produção e circulação; a partir dos anos 1960 teve uma capacidade criativa nas artes que questionou esse reducionismo; mas recentemente a crise de criatividade vem ocorrendo pela “atrofia do mecenato estatal e dos movimentos artísticos independentes na cultura”, isto é, “Cada vez pergunta-se menos o que traz de novo essa obra ou esse movimento artístico. Interessa saber se essa atividade se auto-financia, gera lucros e prestígio para a empresa que a patrocina. Poucos artistas conseguem interessar um patrocinador sem oferecer-lhe impacto na mídia e benefícios materiais ou simbólicos” (p. 36). Dessa maneira, a criatividade tem migrado do campo da arte e ido para o campo dos negócios. Toda a criatividade tem que ser direcionada para gerar lucro. “As contribuições de intelectuais, editores, músicos, cineastas e designers são reconhecidas como atividade criadoras, como parte de uma ‘economia criativa’” (p. 37).

E aqui se faz necessário uma discussão, ainda que rápida, sobre o produtivo e o improdutivo na sociedade capitalista, isto é, sobre aquilo que é capaz de gerar mais valia, lucro para alguém e o que não. Aliando, na medida do possível, a discussão sobre o desenvolvimento dos sentidos, ou de como esse ataque também tem como alvo modalidades que poderiam ou que contribuem para o avanço de nosso entorpecimento. Pois o ataque ao campo cultural se direciona, basicamente, para as atividades ou corpos estáveis incapazes de gerar lucro ou, como gostam de frisar, de produzirem a própria autosustentabilidade. No entanto, fundamentais para tornar os cidadãos mais sensíveis, críticos e com um olhar mais apurado para a realidade que os cerca, como grande parte do teatro de grupo.

A arte é uma das possibilidades de objetivação da essência humana, o que, por sua vez, educa os sentidos, na direção de tornar homens e mulheres humanos. Pois como se sabe, nascemos em meio aos humanos, mas precisamos tornamo-nos humanos. Ao mesmo tempo, vivemos em um mundo cada vez mais precarizado e como já anunciou Marx e Engels (2010), homens e mulheres premidos por urgências, não conseguem se voltarem para o mais belo espetáculo. E quando, além da precarização, se retira um dos fatores dessa possibilidade de se humanizarem, como as artes, o que resta?

Ainda com Marx (2010), aprendemos que o artista cria o objeto, que por sua vez cria o próprio público dessa arte. “Portanto, a produção não produz somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto” (p. 137).

E onde entra a questão da mais-valia? Peguemos um exemplo. O contingenciamento de quase metade das verbas na cidade de São Paulo tem prejudicado um setor muito importante que tem arejado a cultura daquela cidade: o teatro de grupo (mas não só). Marx vai definir produtivo ou improdutivo pela relação que se estabelece, isto é, um ator de teatro, por exemplo, tanto pode ser produtivo como improdutivo. Se ele trabalha para um produtor em troca de salário ele é produtivo, está gerando mais-valor para outro, seu empregador. Se, no entanto, ele organiza sua produção em outros modos, em grupo, por exemplo, em que tudo, em tese, é compartilhado, sem hierarquia, sem patrão e sem empregado, ele passa a ser improdutivo. Pois bem, se analisarmos todos os ataques à cultura, parece que é justamente os improdutivos o principal alvo dos ataques.

“A burguesia despiu da sua auréola sagrada todas as atividades até então veneráveis e reputadas como dignas. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela” (MARX, 2010, p. 148). Dessa forma, com a nova sanha neoliberal, manter qualquer atividade sem dela tirar proveito, sem ter lucro, é uma aberração inominável para a classe dominante. Conhecimento e arte só são significativos se estes podem representar lucros para uns poucos.

Bibliografia
CANCLINI, Néstor García. A socialização da arte: teoria e prática na América Latina. Trad.: Maria Helena Ribeiro da Cunha e Maria Cecília Queiroz Moraes Pinto. São Paulo: Cultrix, 1980.
_____. Leitores, espectadores e internautas. Trad.: Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras, 2008.
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. Trad.: José Paulo Netto e Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

2 comentários:

Luciano Oliveira disse...

Excelente texto, professor! Nessa onda de extinção, podemos citar também o excelente Balé Jovem da Fundação Clóvis Salgado/Palácio das Artes de Belo Horizonte. Se não me engano, nesse período, o governador do Estado de Minas Gerais era Antônio Anastasia, do PSDB.

João Luiz Pereira Tavares disse...
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