Alexandre Falcão de
Araújo[1]
Em 28 de abril de 2018 completaram-se 142
anos do evento que é considerado a última execução por pena de morte no Brasil.
Trata-se da execução do negro escravizado Francisco, ocorrida na cidade de
Pilar (que atualmente é parte da região metropolitana de Maceió), na província
de Alagoas, em 1876. Francisco, juntamente com outros dois negros escravizados,
foi julgado pelo assassinato do capitão da
guarda da província e proprietário de escravos João Evangelista de Lima e sua
esposa, Josefa Marta de Lima. Os assassinatos teriam ocorrido como revolta
contra os maus-tratos sofridos por parte dos senhores e na ânsia por liberdade.
De acordo com a lei vigente à época, Francisco foi condenado à pena de morte
enquanto o outro negro escravizado que fora preso, Vicente, acabou morrendo no
cárcere.
Há 18 anos
este marcante e trágico acontecimento é foco de uma encenação grandiosa, intitulada
“A última pena de morte no Brasil”, de autoria e direção de Alberto do Carmo,
com promoção da Prefeitura do município de Pilar e ampla participação da
população.
Pilar em 1869 |
No dia em que
se lembra o doloroso fato histórico, tive a oportunidade
de assistir ao espetáculo em sua mais recente encenação. Pelos relatos de
amigos soube que originalmente a encenação acontecia de forma processual, pelas
ruas e espaços públicos da cidade de Pilar, terminando no sítio Bonga, onde
ocorreu o assassinato de Josefa e, posteriormente, o enforcamento de Francisco.
Porém, como este período do ano, na região, é muito chuvoso, algumas edições da
encenação foram prejudicadas e então optou-se por leva-la para o Ginásio de
Esportes Nossa Senhora do Pilar, onde a apresentação tem ocorrido nos últimos
anos.
Os registros
históricos indicam que a execução da pena de morte foi realizada com amplo
caráter espetacular, de forma a “servir de exemplo” para que tal tipo de crime
não mais ocorresse. Não pude assistir à encenação em sua versão itinerante
pelas ruas da cidade, mas posso imaginar a força simbólica que ela deveria
alcançar, na relação com os locais históricos onde ocorreram a sequência de
atos violentos. Porém, independente do local onde é apresentada a encenação, é
louvável a iniciativa do poder público municipal em realiza-la e é bonito ver o
envolvimento de parte da população da pequena cidade, de cerca de 35.000
habitantes, em sua concretização.
O elenco envolve jovens estudantes de oficinas
de teatro e dança da comunidade, além de experientes atores e atrizes
convidados e outras personalidades da região. Salta aos meus olhos “estrangeiros”
o caráter sincrético da cultural regional e da abordagem trazida no espetáculo,
uma vez que os ritos afro-brasileiros são mostrados de forma imbricada à presença
da religião católica. Inclusive, as cenas que mais me encantaram foram as de
dança afro e capoeira, lideradas por artistas e capoeiristas mais experientes,
acompanhados por jovens aprendizes que entraram em cena junto a seus mestres.
É muito
bonito também ver em cena a presença de atrizes e atores negros, que compõem a
maioria do elenco, interpretando inclusive alguns papeis como o de senhor de
escravos, gerando uma inversão do que tradicionalmente ocorre, por exemplo, na
teledramaturgia brasileira, em que a presença de artistas negros é absurdamente
desproporcional à realidade étnica de nossa população.
Porém, parte
do meu encantamento se esvaiu com a perspectiva histórica que é trazida pela
encenação. Ao apresentar a história, especialmente do meio para o final da
trajetória cênica, parece que os responsáveis optam por conta-la do ponto de
vista dos vencedores, ou seja, da elite imperial.
O olhar da
encenação me parece extremamente condescendente com a política imperial e com a
postura oficial da Igreja Católica à época. O dramaturgo coloca “na boca” do
Imperador Dom Pedro II e dos homens livres (e brancos) da elite, um discurso
que não parece condizer com o que os documentos históricos indicam em relação
ao discurso oficial de meados do século XIX.
Não sou
nenhum especialista em história imperial e muito menos na história alagoana,
porém uma pesquisa na internet me levou a alguns artigos que reforçaram minhas
dúvidas quanto à perspectiva assumida pela Encenação.
Destaco aqui
o artigo “Crime e Castigo: Pena
de Morte e a Manutenção da Ordem no Império Brasileiro (1830-1876)”, de autoria
de Oseas Batista Figueira Junior
(FIGUEIRA JUNIOR, 2017), historiador e mestrando em História Social pela UFAL. Nos
parágrafos a seguir, parto da análise de Figueira Junior e mais algumas
referências (devidamente citadas), para ajudar a contextualizar parte da
perspectiva oficial em relação à escravidão.
Francisco
foi condenado a partir da Lei 4, de 10 de junho de 1835, lei esta que só
foi de fato revogada com a proclamação da República e a aprovação de uma nova constituição,
em 1889. A dura lei de 1835 tem grande semelhança com o primeiro Código Criminal
do Brasil, aprovado em 1830, sendo que ambos eram, de certa forma, respostas ao
medo da elite imperial frente às revoltas e insurreições de escravos.
A inserção da pena de morte no código criminal gerou amplo debate, de
forma que o deputado André Rebouças manifestou sua posição de que a inclusão da
pena capital seria uma grave desobediência às leis divinas. No entanto, esta
visão de Rebouças restringia-se aos homens livres e brancos, pois em relação
aos negros escravizados, o deputado assim se manifestou:
Os
escravos não podem assaz prezar a vida por que assaz a não gozam; se para
alguém a morte é menos repressiva, é pra eles, e sem nenhuma boa esperança se
insurgem e morrem brutalmente (...). Faça-se para os escravos uma ordenança
separada; e por eles não façamos tamanho mal aos cidadãos, aos homens livres.
Ninguém pode tirar a vida do homem, que não deu nem pode reparar; tirá-la é
contra o poder divino, está fora do poder humano; nenhum legislador pode
decretar a pena de morte (REBOUÇAS apud FIGUEIRA JUNIOR, 2017, p. 193-194).
Fica claro pelo teor do discurso,
que os negros escravizados não eram considerados humanos. Na mesma perversa
linha de raciocínio se manifesta o deputado Paula Cavalcanti:
(...) quem senão o temor da morte fará conter essa
gente imoral nos seus limites (...) exclui-se do código a pena de morte e das
galés; resta a prisão simples. Ora, o escravo que viver (...) encerrado numa prisão
pode se entregar a ociosidade e a embriaguez. Paixão favorita dos escravos
(...). A pena de galés é ainda muito doce para essa qualidade de gente (CAVALCANTI
apud FIGUEIRA JUNIOR, 2017, p. 194).
Em resumo, a lei de 1835 foi um endurecimento
do Código Penal de 1830 e se aplicava especialmente aos negros e negras escravizados.
Consta no artigo 1º da Lei 4, de 1835:
Serão punidos com a pena de morte os escravos ou
escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem
gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa physica a seu senhor, a sua
mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a
administrador, feitor e ás suas mulheres, que com elles viverem.[2]
Tal lei se manteve no ordenamento jurídico
brasileiro até a nova constituição republicana. Apesar da pena de morte
continuar valendo para homens brancos e livres, regulamentada pelo Código Penal
de 1830, na maior parte dos casos as execuções eram aplicadas somente a homens
negros. Diferentemente do que é dito na encenação de Pilar, apesar de
gradualmente não ter sido mais aplicada, a Lei 4, de 1835, foi mantida por Dom
Pedro II, por motivos políticos ligados aos interesses de manutenção do
Império.
Apesar
de em algumas publicações ser citado que Dom Pedro II seria contrário à
escravidão, uma das hipóteses mais aceitas é de que esta posição só seria
consolidada após encontros do imperador com o escritor francês Victor Hugo,
ocorridos após a condenação de Francisco (WESTIN, 2016).
No
aparente esforço de desenhar um quadro positivo do imperador e da elite da
época, a encenação de Pilar acaba por legitimar o discurso oficial e quase
justificar a execução de Francisco, frente ao horrendo assassinato cometido,
sem deixar de analisar e pesar (especialmente do meio para o desfecho da obra),
quão horrenda foi a escravidão que perdurou por mais de três séculos em nosso
país e que foi responsável pela morte de incontáveis negras e negros
escravizados.
Nesse
mesmo sentido, na encenação, frente à iminência da execução de um dos seus
irmãos, as personagens escravizadas apresentam um discurso de passividade e
resignação, dizendo que para alcançar a liberdade era preciso esperar. Ouvir um
discurso desse tipo na região onde Zumbi dos Palmares e seus conterrâneos
promoveram sua resistência e enfrentamento me deixou bastante incomodado.
Talvez
de forma não intencional, a encenação acaba por culpabilizar o povo negro pela sua
situação e no afã de promoveu um discurso pacifista, mas que por vezes soa
ingênuo ou parcial (no sentido de defender a paz para apenas uma parcela da
sociedade), acaba por apresentar personagens da elite imperial, econômica e
religiosa supostamente humanistas, mas que, ao mesmo tempo, perpetuam a
escravidão! Segundo a fala de uma das personagens brancas, o erro dos senhores
de escravos (e, indiretamente, da elite social como um todo) não teria sido a
escravidão em si, mas os “excessos”, como os açoitamentos e outros maus-tratos
que ajudavam a manter o controle dos negros escravizados e, por vezes, também
os levavam à morte.
Ao final,
ao apresentar um Dom Pedro II e diversos figurões da sociedade como “enojados”
com a decisão da pena de morte, mas considerando-a necessária, a encenação,
aparentemente, defende esta posição, uma vez que não a contrapõe com outros
discursos de personagens negras ou dos próprios artistas em cena. Assim, a obra
pode, mesmo sem ter a intenção, contribuir para o fortalecimento do discurso
fascista que renasce com força nos tempos atuais.
O
espetáculo termina com a fala de um personagem branco, defendendo a
“humanização”, mas eu me pergunto: como é possível defender a humanização e
perpetuar a escravidão ao mesmo tempo?
Talvez
um dos problemas centrais da construção cênica esteja na opção, na maior parte
dos momentos, pela forma dramática de interpretação. Aqui entro em algumas
especificidades que podem não ficar muito claras para leitores de fora do universo
teatral. Mas, uma das máximas em teatro é que “forma é conteúdo e conteúdo é
forma”, assim, apresentar um tema complexo como é a escravidão, tentando manter
a maior parte dos posicionamentos políticos restritos às falas das personagens,
aumenta o risco de que o trabalho, mesmo eventualmente sem querer, reforce um
discurso que legitima a violência contra a população negra. Uma opção para o
encenador e para o elenco, seria se valer de quebras épicas, com narradores,
comentários, inserção de mais documentos históricos ou a assunção de um
posicionamento por parte dos próprios artistas em cena, de forma que o público
pudesse compreender qual o real posicionamento daquele conjunto de artistas
frente à trajetória contada, mostrando as muitas contradições dos movimentos
históricos, em vez de reforçar o discurso oficial da época.
Tal
posicionamento me parece necessário por diversos motivos, entre eles pelas
evidências de que apesar de juridicamente abolida do estado brasileiro, a pena
de morte contra a população jovem e negra continua válida e cotidiana nas
periferias das cidades brasileiras e que, portanto, essa e outras tantas
dívidas históricas com o povo negro não foram sanadas.
Referências
CARDOSO, Antonio Pessoa. Pena de morte: 400 anos atrás. Disponível em: http://www.ibrajus.org.br/revista/artigo.asp?idArtigo=88 Acesso em 30.abril.2018.
FIGUEIRA JUNIOR,
Oseas Batista. Crime e Castigo: Pena de Morte e a Manutenção da Ordem no
Império Brasileiro (1830-1876). Revista
História e Diversidade, Cáceres-MT, v. 9, n. 1, p. 188-202, 2017.
Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/historiaediversidade/article/view/2755
Acesso em: 29.abril.2018.
WESTIN, Ricardo. Há 140 anos a última pena de morte do Brasil. Senado Notícias. 04/04/2016. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/04/04/ha-140-anos-a-ultima-pena-de-morte-do-brasil. Acesso em: 29.abril.2018.
[1] Ator, arte-educador e
pesquisador teatral. Professor do Curso de Licenciatura em Teatro da
Universidade Federal de Rondônia.
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