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quinta-feira, 3 de maio de 2018

A encenação da “Última pena de morte no Brasil”, em Pilar: os desafios para não enforcar a história do povo negro



Alexandre Falcão de Araújo[1]

Em 28 de abril de 2018 completaram-se 142 anos do evento que é considerado a última execução por pena de morte no Brasil. Trata-se da execução do negro escravizado Francisco, ocorrida na cidade de Pilar (que atualmente é parte da região metropolitana de Maceió), na província de Alagoas, em 1876. Francisco, juntamente com outros dois negros escravizados, foi julgado pelo assassinato do capitão da guarda da província e proprietário de escravos João Evangelista de Lima e sua esposa, Josefa Marta de Lima. Os assassinatos teriam ocorrido como revolta contra os maus-tratos sofridos por parte dos senhores e na ânsia por liberdade. De acordo com a lei vigente à época, Francisco foi condenado à pena de morte enquanto o outro negro escravizado que fora preso, Vicente, acabou morrendo no cárcere.
Há 18 anos este marcante e trágico acontecimento é foco de uma encenação grandiosa, intitulada “A última pena de morte no Brasil”, de autoria e direção de Alberto do Carmo, com promoção da Prefeitura do município de Pilar e ampla participação da população.
Pilar em 1869
No dia em que se lembra o doloroso fato histórico, tive a oportunidade de assistir ao espetáculo em sua mais recente encenação. Pelos relatos de amigos soube que originalmente a encenação acontecia de forma processual, pelas ruas e espaços públicos da cidade de Pilar, terminando no sítio Bonga, onde ocorreu o assassinato de Josefa e, posteriormente, o enforcamento de Francisco. Porém, como este período do ano, na região, é muito chuvoso, algumas edições da encenação foram prejudicadas e então optou-se por leva-la para o Ginásio de Esportes Nossa Senhora do Pilar, onde a apresentação tem ocorrido nos últimos anos.
Os registros históricos indicam que a execução da pena de morte foi realizada com amplo caráter espetacular, de forma a “servir de exemplo” para que tal tipo de crime não mais ocorresse. Não pude assistir à encenação em sua versão itinerante pelas ruas da cidade, mas posso imaginar a força simbólica que ela deveria alcançar, na relação com os locais históricos onde ocorreram a sequência de atos violentos. Porém, independente do local onde é apresentada a encenação, é louvável a iniciativa do poder público municipal em realiza-la e é bonito ver o envolvimento de parte da população da pequena cidade, de cerca de 35.000 habitantes, em sua concretização.
 O elenco envolve jovens estudantes de oficinas de teatro e dança da comunidade, além de experientes atores e atrizes convidados e outras personalidades da região. Salta aos meus olhos “estrangeiros” o caráter sincrético da cultural regional e da abordagem trazida no espetáculo, uma vez que os ritos afro-brasileiros são mostrados de forma imbricada à presença da religião católica. Inclusive, as cenas que mais me encantaram foram as de dança afro e capoeira, lideradas por artistas e capoeiristas mais experientes, acompanhados por jovens aprendizes que entraram em cena junto a seus mestres.
É muito bonito também ver em cena a presença de atrizes e atores negros, que compõem a maioria do elenco, interpretando inclusive alguns papeis como o de senhor de escravos, gerando uma inversão do que tradicionalmente ocorre, por exemplo, na teledramaturgia brasileira, em que a presença de artistas negros é absurdamente desproporcional à realidade étnica de nossa população.
Porém, parte do meu encantamento se esvaiu com a perspectiva histórica que é trazida pela encenação. Ao apresentar a história, especialmente do meio para o final da trajetória cênica, parece que os responsáveis optam por conta-la do ponto de vista dos vencedores, ou seja, da elite imperial.
O olhar da encenação me parece extremamente condescendente com a política imperial e com a postura oficial da Igreja Católica à época. O dramaturgo coloca “na boca” do Imperador Dom Pedro II e dos homens livres (e brancos) da elite, um discurso que não parece condizer com o que os documentos históricos indicam em relação ao discurso oficial de meados do século XIX.
Não sou nenhum especialista em história imperial e muito menos na história alagoana, porém uma pesquisa na internet me levou a alguns artigos que reforçaram minhas dúvidas quanto à perspectiva assumida pela Encenação.
Destaco aqui o artigo “Crime e Castigo: Pena de Morte e a Manutenção da Ordem no Império Brasileiro (1830-1876)”, de autoria de Oseas Batista Figueira Junior (FIGUEIRA JUNIOR, 2017), historiador e mestrando em História Social pela UFAL. Nos parágrafos a seguir, parto da análise de Figueira Junior e mais algumas referências (devidamente citadas), para ajudar a contextualizar parte da perspectiva oficial em relação à escravidão.
Francisco foi condenado a partir da Lei 4, de 10 de junho de 1835, lei esta que só foi de fato revogada com a proclamação da República e a aprovação de uma nova constituição, em 1889. A dura lei de 1835 tem grande semelhança com o primeiro Código Criminal do Brasil, aprovado em 1830, sendo que ambos eram, de certa forma, respostas ao medo da elite imperial frente às revoltas e insurreições de escravos.
            A inserção da pena de morte no código criminal gerou amplo debate, de forma que o deputado André Rebouças manifestou sua posição de que a inclusão da pena capital seria uma grave desobediência às leis divinas. No entanto, esta visão de Rebouças restringia-se aos homens livres e brancos, pois em relação aos negros escravizados, o deputado assim se manifestou:

Os escravos não podem assaz prezar a vida por que assaz a não gozam; se para alguém a morte é menos repressiva, é pra eles, e sem nenhuma boa esperança se insurgem e morrem brutalmente (...). Faça-se para os escravos uma ordenança separada; e por eles não façamos tamanho mal aos cidadãos, aos homens livres. Ninguém pode tirar a vida do homem, que não deu nem pode reparar; tirá-la é contra o poder divino, está fora do poder humano; nenhum legislador pode decretar a pena de morte (REBOUÇAS apud FIGUEIRA JUNIOR, 2017, p. 193-194).

            Fica claro pelo teor do discurso, que os negros escravizados não eram considerados humanos. Na mesma perversa linha de raciocínio se manifesta o deputado Paula Cavalcanti:
(...) quem senão o temor da morte fará conter essa gente imoral nos seus limites (...) exclui-se do código a pena de morte e das galés; resta a prisão simples. Ora, o escravo que viver (...) encerrado numa prisão pode se entregar a ociosidade e a embriaguez. Paixão favorita dos escravos (...). A pena de galés é ainda muito doce para essa qualidade de gente (CAVALCANTI apud FIGUEIRA JUNIOR, 2017, p. 194).

Em resumo, a lei de 1835 foi um endurecimento do Código Penal de 1830 e se aplicava especialmente aos negros e negras escravizados. Consta no artigo 1º da Lei 4, de 1835:

Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e ás suas mulheres, que com elles viverem.[2]

Tal lei se manteve no ordenamento jurídico brasileiro até a nova constituição republicana. Apesar da pena de morte continuar valendo para homens brancos e livres, regulamentada pelo Código Penal de 1830, na maior parte dos casos as execuções eram aplicadas somente a homens negros. Diferentemente do que é dito na encenação de Pilar, apesar de gradualmente não ter sido mais aplicada, a Lei 4, de 1835, foi mantida por Dom Pedro II, por motivos políticos ligados aos interesses de manutenção do Império.
            Apesar de em algumas publicações ser citado que Dom Pedro II seria contrário à escravidão, uma das hipóteses mais aceitas é de que esta posição só seria consolidada após encontros do imperador com o escritor francês Victor Hugo, ocorridos após a condenação de Francisco (WESTIN, 2016).
            No aparente esforço de desenhar um quadro positivo do imperador e da elite da época, a encenação de Pilar acaba por legitimar o discurso oficial e quase justificar a execução de Francisco, frente ao horrendo assassinato cometido, sem deixar de analisar e pesar (especialmente do meio para o desfecho da obra), quão horrenda foi a escravidão que perdurou por mais de três séculos em nosso país e que foi responsável pela morte de incontáveis negras e negros escravizados.
            Nesse mesmo sentido, na encenação, frente à iminência da execução de um dos seus irmãos, as personagens escravizadas apresentam um discurso de passividade e resignação, dizendo que para alcançar a liberdade era preciso esperar. Ouvir um discurso desse tipo na região onde Zumbi dos Palmares e seus conterrâneos promoveram sua resistência e enfrentamento me deixou bastante incomodado.
            Talvez de forma não intencional, a encenação acaba por culpabilizar o povo negro pela sua situação e no afã de promoveu um discurso pacifista, mas que por vezes soa ingênuo ou parcial (no sentido de defender a paz para apenas uma parcela da sociedade), acaba por apresentar personagens da elite imperial, econômica e religiosa supostamente humanistas, mas que, ao mesmo tempo, perpetuam a escravidão! Segundo a fala de uma das personagens brancas, o erro dos senhores de escravos (e, indiretamente, da elite social como um todo) não teria sido a escravidão em si, mas os “excessos”, como os açoitamentos e outros maus-tratos que ajudavam a manter o controle dos negros escravizados e, por vezes, também os levavam à morte.
            Ao final, ao apresentar um Dom Pedro II e diversos figurões da sociedade como “enojados” com a decisão da pena de morte, mas considerando-a necessária, a encenação, aparentemente, defende esta posição, uma vez que não a contrapõe com outros discursos de personagens negras ou dos próprios artistas em cena. Assim, a obra pode, mesmo sem ter a intenção, contribuir para o fortalecimento do discurso fascista que renasce com força nos tempos atuais.
            O espetáculo termina com a fala de um personagem branco, defendendo a “humanização”, mas eu me pergunto: como é possível defender a humanização e perpetuar a escravidão ao mesmo tempo?
            Talvez um dos problemas centrais da construção cênica esteja na opção, na maior parte dos momentos, pela forma dramática de interpretação. Aqui entro em algumas especificidades que podem não ficar muito claras para leitores de fora do universo teatral. Mas, uma das máximas em teatro é que “forma é conteúdo e conteúdo é forma”, assim, apresentar um tema complexo como é a escravidão, tentando manter a maior parte dos posicionamentos políticos restritos às falas das personagens, aumenta o risco de que o trabalho, mesmo eventualmente sem querer, reforce um discurso que legitima a violência contra a população negra. Uma opção para o encenador e para o elenco, seria se valer de quebras épicas, com narradores, comentários, inserção de mais documentos históricos ou a assunção de um posicionamento por parte dos próprios artistas em cena, de forma que o público pudesse compreender qual o real posicionamento daquele conjunto de artistas frente à trajetória contada, mostrando as muitas contradições dos movimentos históricos, em vez de reforçar o discurso oficial da época. 
            Tal posicionamento me parece necessário por diversos motivos, entre eles pelas evidências de que apesar de juridicamente abolida do estado brasileiro, a pena de morte contra a população jovem e negra continua válida e cotidiana nas periferias das cidades brasileiras e que, portanto, essa e outras tantas dívidas históricas com o povo negro não foram sanadas.
 
Referências
CARDOSO, Antonio Pessoa. Pena de morte: 400 anos atrás. Disponível em: http://www.ibrajus.org.br/revista/artigo.asp?idArtigo=88 Acesso em 30.abril.2018.
FIGUEIRA JUNIOR, Oseas Batista. Crime e Castigo: Pena de Morte e a Manutenção da Ordem no Império Brasileiro (1830-1876). Revista História e Diversidade, Cáceres-MT, v. 9, n. 1, p. 188-202, 2017. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/historiaediversidade/article/view/2755 Acesso em: 29.abril.2018.
WESTIN, Ricardo. Há 140 anos a última pena de morte do Brasil. Senado Notícias. 04/04/2016. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/04/04/ha-140-anos-a-ultima-pena-de-morte-do-brasil. Acesso em: 29.abril.2018.


[1] Ator, arte-educador e pesquisador teatral. Professor do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia.
[2] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM4.htm Acesso em: 30.04.2018.

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