Alexandre
Falcão de Araújo[1]
Na noite de 27
de abril de 2018, a pequena praça Nossa Senhora das Candeias, na cidade de
Japaratinga, litoral norte de Alagoas, recebeu a apresentação de “A mulher braba”,
da cia. La Casa, de Maceió. A apresentação aconteceu por meio do projeto
“Circuito Alagoano de Teatro”, realizado pela cia. Nêga Fulô, também de Maceió,
com recursos do prêmio Mestre Cicinho (do governo do estado) e em parceria com
a prefeitura local.
O trabalho tem
a direção e adaptação de Abides de Oliveira, importante artista teatral da cena
alagoana, oriundo do coletivo Joana Gajuru, grupo do qual se desvinculou em
2015. Abides é responsável pela organização de publicações de referência na
cena regional, como o catálogo dos grupos de teatro de rua do Nordeste
(OLIVEIRA, 2014) e o catálogo de 15 anos do grupo Joana Gajuru (OLIVEIRA,
2010), além de ter sido colaborador do capítulo alagoano da “Cartografia do
Teatro de Grupo do Nordeste” (YAMAMOTO, 2012), realizado pela cia. Clowns de
Shakespeare.
Abides de Oliveira - Cia La Casa, em Japaratinga. |
Além disso, recentemente
Abides também entrou em cena no espetáculo “A mulher braba”, substituindo outro
ator. Em cena, somam-se a ele as atrizes Ane Oliva e Tereza Gonzaga, o ator Gi
Silva e o músico Gama Filho. Não por acaso, todos os atores e atrizes do elenco
passaram pelo grupo Joana Gajuru, um coletivo de destaque na história do recente
teatro alagoano. O diretor da cia. La Casa ressalta, inclusive, a influência
dos grupos Imbuaça (de Aracaju, Sergipe) e Joana Gajuru no trabalho da La Casa,
uma vez que a vertente do teatro popular, muito presente no teatro de rua
alagoano, é a principal característica do trabalho em “A mulher braba”.
Na data da
apresentação em Japaratinga, apesar da forte e insistente chuva que caiu ao
longo do dia e até meia hora antes do horário marcado para a apresentação, o
público compareceu em peso, assim que a chuva cessou. A maioria dos presentes
era formada por moradores da comunidade, já que é período de baixa temporada e
não havia muitos turistas hospedados na cidade. O público reagiu muito bem à
apresentação, que conta a história de um pai e uma mãe ricos, que querem casar
a filha, uma jovem brava e arredia. Mas, os pais só conseguirão “solucionar” o
matrimônio da filha com o aparecimento de um jovem plebeu.
De
forma eminentemente épica, o espetáculo se inicia com a apresentação do elenco
(com brincadeiras com os nomes das atrizes e dos atores) e suas personagens ao
público. Com estrutura narrativa simples, as personagens-tipo logo são
reconhecidas pelo público: o pai que tenta impor respeito, mas não consegue; a
mãe mandona e autoritária; a filha brava e rebelde e o plebeu “astuto”.
Como
é característico de grande parcela do teatro popular, o elenco traz uma bela,
simples e expressiva maquiagem, que ressalta os tipos das personagens. Além
disso, joga bastante com o público, que participa e se diverte juntamente com
as e os artistas. Nas palavras do diretor, o grupo tenta aproveitar ao máximo
as interferências e participações do público, como aconteceu neste dia, na cena
do casamento, em que, de improviso, duas crianças do público foram convidadas a
fazer as daminhas de honra da noiva. Isso gerou uma situação muito curiosa e cômica,
já que a cena estava longe de ser romântica, pois a noiva seguia bem brava, o
que trazia um contraponto ao divertimento das crianças em cena.
Ane Oliva em A Mulher Braba |
As questões
tecnológicas ainda seguem como desafio para o teatro de rua, uma vez que se
relacionam com, além de limites financeiros, diversos fatores como o clima, que
não podem ser controlados em espaço aberto. Neste dia, especificamente, as
dificuldades com os microfones causaram perdas na concentração das atrizes e
dos atores e limitações de movimentação (já que quando eles se movimentavam
mais rapidamente o equipamento deixava de funcionar). Após o grupo abandonar os
microfones, sua movimentação e concentração melhorou e a voz falada esteve bem
audível, mesmo sem amplificação. Apenas o canto ficou com volume mais baixo,
sendo um pouco difícil perceber os arranjos propostos. Ainda em relação à parte
musical, o competente músico e compositor Gama Júnior talvez também pudesse ser
melhor utilizado em cena.
Tratando da movimentação,
o grupo utiliza bem os procedimentos de entradas e saídas de cena e o uso de
alguns espaços externos à roda, para o jogo entre o elenco e com o público. No
entanto, o elenco esteve tímido em relação à construção das máscaras corporais,
apoiando-se muito no texto e nas habilidades verbais, ficando aquém do potencial
físico que a obra permitiria. Destaco, porém, o trabalho da atriz Ane Oliva,
como “mulher braba” que, em diversos momentos, deu intensidade à sua máscara
corporal, aproveitando-se do potencial oferecido pela personagem.
Retornando à
estrutura da narrativa, é importante contar que o texto montado pela cia. La
Casa é uma livre adaptação do original “O Moço que casou com a mulher braba”, datado
do século 14 e de autoria do escritor espanhol Don Juan Manuel. Tal obra recebeu
uma nova versão, em 1903, do também espanhol Alejandro Casona. Abides
ressalta que o texto original era muito mais violento, e também, podemos
imaginar, extremamente machista. Na montagem da cia. La Casa, o texto tornou-se
mais leve, com alterações de algumas cenas que não seriam aceitas nos dias
atuais.
Ainda assim, a
temática da montagem repercutiu e, em apresentações em Maceió, algumas
militantes feministas se manifestarem contrárias à conclusão do espetáculo, em
que a filha se casa com o plebeu, se submetendo a ele. Tais críticas ecoaram no
grupo e a cena foi alterada, de forma que a real submissão da filha ao novo
marido torna-se dúbia, na medida em que a personagem declara: “É uma hora
servir e honrar o homem de sua casa”, ao mesmo tempo em que faz um gesto
explícito para o público indicando que estava mentindo, que aquela não era sua
real posição.
Sensível
ao posicionamento de mulheres do público, o grupo alterou o sentido final da
obra, questionando a submissão da esposa em relação ao marido. Assim como na
encenação de “Torturas de um coração”, da cia. Nêga Fulô (apresentada em texto
anterior, neste mesmo blog), o humor popular e seus preconceitos são colocados
em questão na atualidade, na medida em que nos perguntamos: estamos fazendo uma
denúncia ou reforçando os estereótipos e relações de poder? Creio que as
respostas a tais perguntas não são únicas, nem tão óbvias e devem ser sempre
pensadas em relação ao contexto. Na capital alagoana, a encenação incomodou
parte do público e foi alterada. No interior, já com a cena final adaptada, a
impressão é de que o público (que talvez ainda viva ou veja mais frequentemente
em seu cotidiano relações machistas, tidas como naturais) reconheceu a situação
vivenciada pela mulher braba, mas apesar das críticas apresentadas na montagem
à situação de opressão, ainda parece ficar contrário a personagem feminina
central.
A mulher braba
denuncia: “Fui obrigada a casar!” e, em outro momento, critica o público
presente que gargalhava: “dançando com a miséria dos outros!”. No entanto, após
o término da apresentação, uma senhora do público passa ao lado da roda e diz,
de forma brincalhona, para a atriz Ane Oliva, ainda caracterizada como sua
personagem: “_Case, mulé!”. Uma simples e espontânea participação de uma
espectadora parece indicar certa concordância com os padrões machistas de
relacionamento ainda predominantes em nossa sociedade.
As temáticas
feminista e de gênero estão na pauta contemporânea do teatro de rua e vêm sendo
abordadas em cena ou debatidas, por exemplo, pelos jovens coletivos femininos
Mãe da Rua e Madeirite Rosa, ambos de São Paulo e pelo grupo Resta Nóis, de
Florianópolis. O desafio de pesar e
medir, a cada momento, as escolhas estéticas e políticas para as cenas, seguirão
no horizonte dos grupos que se aventuram a ir pra rua com suas obras e que têm
seriedade e compromisso em seu fazer artístico, como é o caso da cia. La Casa.
Dessa forma, creio que o que me cabe aqui é lançar dúvidas e reflexões, que
deverão ser encaradas continuamente ao longo de nossas trajetórias e em diálogo
com os movimentos sociais e com as parceiras e parceiros de nosso ofício e de
nossas lutas.
Referências
OLIVEIRA, Abides de. Joana Gajuru 15 anos: memórias dos
filhos de Joana. Maceió: Associação Teatral Joana Gajuru, 2010.
OLIVEIRA, Abides de. Beleza, cheguei agora! Grupos de teatro
de rua do Nordeste. Maceío: 2014.
YAMAMOTO, Fernando Minicuci. Cartografia do teatro de grupo do Nordeste.
Natal (RN): Clowns de Shakespeare, 2012.
[1]
Ator,
arte-educador e pesquisador teatral. Professor do Curso de Licenciatura em
Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e articulador da Rede
Brasileira de Teatro de Rua (RBTR).
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