Alexandre
Falcão de Araújo[1]
Entre os dias
26 e 27 de abril passados, tive a oportunidade de acompanhar o projeto
“Circuito Alagoano de Teatro”, realizado pela cia. Nêga Fulô, de Maceió, com
recursos do prêmio Mestre Cicinho, do Governo do Estado de Alagoas.
Foi
uma oportunidade muito especial de conhecer um pouco da cena alagoana de teatro
de rua e o contexto da produção e circulação artística para além da capital do
estado. Como explica Régis de Souza, um dos fundadores e integrante do grupo, o
projeto foi proposto para popularizar e promover a circulação dos espetáculos de
rua da cia., mas também são convidados outros grupos do estado que atuam na
rua. Assim, o circuito, que se encerrará no próximo dia 12/05, contemplará ao
total 16 apresentações, em 09 cidades do estado, com oito espetáculos
diferentes, dos grupos: Nêga Fulô, La Casa, Clowns de Quinta, Coletivo Volante,
Turma do Biribinha e Associação Teatral das Alagoas -ATA. Por meio do projeto,
o grupo proponente, juntamente com as prefeituras e grupos parceiros, consegue
promover muitas (e importantes) ações com poucos recursos.
Cena do espetáculo Torturas de um coração, em cena Regis de Souza (Benedito) e Diva Gonçalves (Marieta). Praça Nossa Senhora das Candeias, Japaratinga. Foto: Alexandre Falcão |
Na
etapa que pude acompanhar, as apresentações aconteceram na pequena de
Japaratinga, com população estimada em pouco mais de 8.000 habitantes, no
litoral norte de Alagoas. Na quinta-feira à noite na miúda praça Nossa Senhora
das Candeias, a principal da cidade, em frente à prefeitura e ao lado da singela igreja colonial, inicia-se a montagem do espaço de
encenação. As crianças são as primeiras a se aproximar. Converso com o jovem
Caio, morador da comunidade e estudante do quinto ano do Ensino Fundamental. Pergunto
se ele já viu teatro na cidade alguma vez, ele conta que viu, ali na mesma
praça, mas há muito tempo atrás, quando ainda era bem pequeno, “como aquela
criança ali”, e aponta outra criança menor, de cerca de cinco anos, que estava
do outro lado da roda. Posteriormente tal informação é confirmada pela dedicada
secretária de Cultura da cidade, Cida de Oliveira, que também lembra que a
última vez que a cidade recebeu teatro foi há vários anos atrás.
Como
na maioria das cidades do país (IBGE, 2014), Japaratinga não possui equipamento
específico para apresentação de teatro em espaço fechado, não tem um edifício
teatral ou mesmo outro espaço adequado para uma apresentação teatral. Tal fato,
por si só, já dá indicativos do valor do teatro de rua para a difusão e acesso
à cultura em nosso imenso e desigual Brasil. Além da dimensão fundamental de
acessibilidade geográfica e econômica, o teatro de rua, na maior parte dos
casos, promove também o acesso temático (MATE, 2011), compartilhando criações
artísticas com formatos diversos, mas que sempre buscam uma troca efetiva com o
público, sem hermetismos formais.
Esse
foi o caso de ambos os espetáculos que pude assistir em Japaratinga: “Torturas
de um coração”, com a cia. Nêga Fulô, e “A mulher braba”, com a cia. La Casa.
Ambas as companhias, oriundas da capital alagoana, trabalham com o chamado teatro
popular, característica marcante da cena de rua regional. Apresento a seguir uma
leitura do espetáculo “Torturas de um coração”, de Ariano Suassuna, originalmente
escrito para funcionar como um entremez para teatro de mamulengos, mas adaptado
para teatro de rua na montagem da Cia. Nêga Fulô, sob direção de Glauber
Teixeira.
No
elenco, a atriz Diva Gonçalves e os atores Alderir Souza, Daniel Dabasi, Moab
de Oliveira e Regis de Souza, todos experientes e com aguçado jogo de
improvisação com o público. Já no cortejo inicial, cantando e dançando, vindo
pela rua em direção à praça, o elenco brinca com os passantes. O grande (em
estatura e presença cômica em cena) Regis de Souza, caracterizado como
Benedito, senta à mesa de um boteco na esquina da praça, junto às pessoas
desavisadas que lá estavam, come da comida e bebe a cerveja que estava na mesa,
o que gera gargalhadas de quem assistia do entorno e dos próprios “parceiros”
da mesa de boteco.
A
estrutura da encenação, além de favorecer o jogo com o público, que acontece o
tempo todo, se vale também de diversas músicas do cancioneiro popular
nordestino - cantadas ao vivo com acompanhamento percussivo - como “Pisa na
Fulô” (de João do Vale) e “Procurando Tu” (de Antônio Barros) que imediatamente
são reconhecidas pelos espectadores.
Logo
no início da obra, são apresentadas as personagens: Benedito (o malandro
popular, cuja figura pode ser comparada à de Mateus, do cavalo-marinho e de
diversos folguedos como o boi, ou ainda ao Brighella, da Commedia dell´Arte[2]),
os valentões (mas, nem tanto) Cabo Setenta e Vicentão, o belo e afeminado (ou
suspeitoso, nas palavras de Suassuna) Afonso Gostoso e a ingênua (mas também,
nem tanto) Marieta. No enredo simples e funcional, todos as figuras masculinas
disputam o amor de Marieta, mas são vencidas por Benedito que, apesar de ser o
mais pobre e sofrer preconceito por ser negro é o mais astuto e passa a perna
nos demais.
A
bufonaria é a marca do texto e a da atuação da cia. Nêga Fulô, porém vale
ressaltar que esta bufonaria quase o tempo todo é horizontal: o jogo se dá de
igual para igual. As personagens fazem “zoada” (como se diz popularmente em
Alagoas) com o público e vice-versa, além de fazerem piadas com si próprios,
como atores e personagens. Em Japaratinga, onde secretários municipais e um
vereador também assistiam e se divertiam com a apresentação, sobrou até para um
secretário municipal entrar em cena e ser caçoado pelo Cabo Setenta. Mas, logo
na sequência, Cabo Setenta, que é interpretado por Moab de Oliveira, também é
“zoado” por suas características físicas.
Ainda no início do espetáculo, o mesmo Cabo Setenta pergunta ao público:
“O que vocês estão fazendo aqui uma hora dessas? Deveriam estar em casa!”. De
forma irônica, a piada induz à reflexão quanto a necessidade de ocupação cultural
dos espaços públicos.
Em
relação à comicidade, o texto, como é característico do teatro popular, propõe
muitas piadas que hoje podem ser consideradas preconceituosas, no tocante ao machismo,
racismo e homofobia. Na montagem, a cia. Nêga Fulô abdica de muitas das piadas
do texto original, mas mantém parte delas, principalmente as gozações com o Nego
Benedito, feitas pelas outras personagens. Alguns integrantes do grupo contam
que, durante uma apresentação no centro de Maceió, um senhor negro de idade
avançada se manifestou no meio de uma das cenas, denunciando que eles tinham
dito uma piada racista. Algumas zombarias as quais sofre Benedito fora da
encenação podem ser consideradas racismo, porém é preciso compreender o
contexto e o sentido em que elas são utilizadas na montagem, se como denúncia
de uma realidade ainda muito presente em nosso cotidiano ou como legitimação
dos preconceitos. Enfim, são muitas as leituras possíveis, a partir dos
distintos lugares de onde se vê e talvez o espetáculo permita, no mínimo, as
duas leituras anteriormente mencionadas.
Vale
ressaltar que na obra encenada, assim como no texto original, o personagem
negro cria empatia no público e, apesar dos preconceitos sofridos, com a
astúcia características dos tipos universais populares, “vence” todos os
demais, usando, no entanto, também sua força física, o que pode denotar o
reforço de certo estereótipo da negritude. Penso que o elenco (que é, em sua
maioria, negro) está atento à essas questões e às possíveis leituras de sua
obra e pode seguir adaptando-a de acordo com as transformações contemporâneas
das consciências de raça, etnia, gênero e sexualidade.
A marca cômica e improvisacional da
montagem permite, por exemplo, que Régis de Souza insira, em meio a uma cena
como Benedito, uma crítica à Jair Bolsonaro, crítica esta que, aparentemente,
gera um incômodo em parte do público. Em outro momento o mesmo Benedito induz o
público a responder positivamente a uma pergunta, em relação a uma situação que
a encenação mostrava que era mentirosa. O público adere ao pedido da personagem
e então Benedito responde e provoca: “Assim começa a corrupção!”, lançando mais
um aspecto de crítica política por meio de um humor leve e relacional. O elenco
insere ainda, gags clássicas, como um trocadilho com a palavra “cutuvelo”
(pronunciada com a primeira sílaba destacada das demais), o que gera muitas
gargalhadas nos espectadores. De forma geral, o público de Japaratinga
mostrou-se muito participativo, comentando as cenas, respondendo às piadas,
provocando as personagens e, pelo que pude observar, divertiu-se enormemente
com a apresentação.
Como já
ressaltado, o elenco destaca-se pela capacidade de improviso e relação com o
público, no entanto, provavelmente pela dificuldade em manter uma rotina
intensa de ensaios (já que todos os integrantes tiram seu sustento de outros
trabalhos) e apresentações (pela escassez de apoios), deslizam em alguns
momentos, com esquecimentos de texto e de acompanhamento na sonoplastia. Mas,
devido à intimidade do grupo em cena e às suas habilidades, parte dos erros são
bem contornados e geram mais piadas, a partir do improviso. As partituras
corporais do elenco também deixam um pouco a desejar, já que eles se apoiam
muito em suas habilidades discursivas. Por vezes, tive vontade também de ouvir
um acompanhamento de instrumento harmônico às músicas utilizadas no espetáculo,
mas compreendo que nem sempre é possível contar com músicos acompanhando a
trupe.
Por fim, é
importante lembrar como é difícil manter a continuidade de trabalhos como esse,
e como é necessária a existência de mais políticas públicas para manutenção e
circulação destas obras, o que geraria também um crescimento estético das
encenações, uma vez que com mais oportunidades de apresentação, o trabalho
tende a se desenvolver. Assim, sigo na torcida para que os poderes públicos
ampliem sua sensibilidade e atuação nas políticas culturais e que o grupo tenha
longa vida e possa levar seu trabalho para diversas localidades, muitas das
quais só têm acesso ao teatro graças a trabalhos como o realizado pela Cia. Nêga
Fulô.
Referências
IBGE. Coordenação de População e Indicadores Sociais. Perfil dos estados e dos municípios
brasileiros: cultura: 2014. Rio de Janeiro: IBGE, 2015. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95013.pdf Acesso em
02 de maio de 2018.
MATE,
Alexandre. Apontamentos acerca do conceito de acessibilidade. In: MATE,
Alexandre. O teatro adulto na cidade de
São Paulo na década de 1980. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
SANTOS,
Ivanildo Lubarino Piccoli dos Santos. O
dueto cômico: da Commedia Dell´Arte ao cavalo marinho. Tese (doutorado). Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista (Unesp), São Paulo,
2015.
[1] Ator,
arte-educador e pesquisador teatral. Professor do Curso de Licenciatura em
Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e articulador da Rede
Brasileira de Teatro de Rua (RBTR).
[2]
SANTOS (2015).
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