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quinta-feira, 3 de maio de 2018

Circulando, improvisando e gerando muitas risadas: o divertido e importante trabalho da Cia. Nêga Fulô



Alexandre Falcão de Araújo[1]

Entre os dias 26 e 27 de abril passados, tive a oportunidade de acompanhar o projeto “Circuito Alagoano de Teatro”, realizado pela cia. Nêga Fulô, de Maceió, com recursos do prêmio Mestre Cicinho, do Governo do Estado de Alagoas.
                Foi uma oportunidade muito especial de conhecer um pouco da cena alagoana de teatro de rua e o contexto da produção e circulação artística para além da capital do estado. Como explica Régis de Souza, um dos fundadores e integrante do grupo, o projeto foi proposto para popularizar e promover a circulação dos espetáculos de rua da cia., mas também são convidados outros grupos do estado que atuam na rua. Assim, o circuito, que se encerrará no próximo dia 12/05, contemplará ao total 16 apresentações, em 09 cidades do estado, com oito espetáculos diferentes, dos grupos: Nêga Fulô, La Casa, Clowns de Quinta, Coletivo Volante, Turma do Biribinha e Associação Teatral das Alagoas -ATA. Por meio do projeto, o grupo proponente, juntamente com as prefeituras e grupos parceiros, consegue promover muitas (e importantes) ações com poucos recursos.
Cena do espetáculo Torturas de um coração, em cena Regis de Souza (Benedito)
e Diva Gonçalves (Marieta). Praça Nossa Senhora das Candeias, Japaratinga.
Foto: Alexandre Falcão
                Na etapa que pude acompanhar, as apresentações aconteceram na pequena de Japaratinga, com população estimada em pouco mais de 8.000 habitantes, no litoral norte de Alagoas. Na quinta-feira à noite na miúda praça Nossa Senhora das Candeias, a principal da cidade, em frente à prefeitura e ao lado da singela igreja colonial, inicia-se a montagem do espaço de encenação. As crianças são as primeiras a se aproximar. Converso com o jovem Caio, morador da comunidade e estudante do quinto ano do Ensino Fundamental. Pergunto se ele já viu teatro na cidade alguma vez, ele conta que viu, ali na mesma praça, mas há muito tempo atrás, quando ainda era bem pequeno, “como aquela criança ali”, e aponta outra criança menor, de cerca de cinco anos, que estava do outro lado da roda. Posteriormente tal informação é confirmada pela dedicada secretária de Cultura da cidade, Cida de Oliveira, que também lembra que a última vez que a cidade recebeu teatro foi há vários anos atrás.
                Como na maioria das cidades do país (IBGE, 2014), Japaratinga não possui equipamento específico para apresentação de teatro em espaço fechado, não tem um edifício teatral ou mesmo outro espaço adequado para uma apresentação teatral. Tal fato, por si só, já dá indicativos do valor do teatro de rua para a difusão e acesso à cultura em nosso imenso e desigual Brasil. Além da dimensão fundamental de acessibilidade geográfica e econômica, o teatro de rua, na maior parte dos casos, promove também o acesso temático (MATE, 2011), compartilhando criações artísticas com formatos diversos, mas que sempre buscam uma troca efetiva com o público, sem hermetismos formais.
                Esse foi o caso de ambos os espetáculos que pude assistir em Japaratinga: “Torturas de um coração”, com a cia. Nêga Fulô, e “A mulher braba”, com a cia. La Casa. Ambas as companhias, oriundas da capital alagoana, trabalham com o chamado teatro popular, característica marcante da cena de rua regional. Apresento a seguir uma leitura do espetáculo “Torturas de um coração”, de Ariano Suassuna, originalmente escrito para funcionar como um entremez para teatro de mamulengos, mas adaptado para teatro de rua na montagem da Cia. Nêga Fulô, sob direção de Glauber Teixeira.
                No elenco, a atriz Diva Gonçalves e os atores Alderir Souza, Daniel Dabasi, Moab de Oliveira e Regis de Souza, todos experientes e com aguçado jogo de improvisação com o público. Já no cortejo inicial, cantando e dançando, vindo pela rua em direção à praça, o elenco brinca com os passantes. O grande (em estatura e presença cômica em cena) Regis de Souza, caracterizado como Benedito, senta à mesa de um boteco na esquina da praça, junto às pessoas desavisadas que lá estavam, come da comida e bebe a cerveja que estava na mesa, o que gera gargalhadas de quem assistia do entorno e dos próprios “parceiros” da mesa de boteco.
                A estrutura da encenação, além de favorecer o jogo com o público, que acontece o tempo todo, se vale também de diversas músicas do cancioneiro popular nordestino - cantadas ao vivo com acompanhamento percussivo - como “Pisa na Fulô” (de João do Vale) e “Procurando Tu” (de Antônio Barros) que imediatamente são reconhecidas pelos espectadores.
                Logo no início da obra, são apresentadas as personagens: Benedito (o malandro popular, cuja figura pode ser comparada à de Mateus, do cavalo-marinho e de diversos folguedos como o boi, ou ainda ao Brighella, da Commedia dell´Arte[2]), os valentões (mas, nem tanto) Cabo Setenta e Vicentão, o belo e afeminado (ou suspeitoso, nas palavras de Suassuna) Afonso Gostoso e a ingênua (mas também, nem tanto) Marieta. No enredo simples e funcional, todos as figuras masculinas disputam o amor de Marieta, mas são vencidas por Benedito que, apesar de ser o mais pobre e sofrer preconceito por ser negro é o mais astuto e passa a perna nos demais.
                A bufonaria é a marca do texto e a da atuação da cia. Nêga Fulô, porém vale ressaltar que esta bufonaria quase o tempo todo é horizontal: o jogo se dá de igual para igual. As personagens fazem “zoada” (como se diz popularmente em Alagoas) com o público e vice-versa, além de fazerem piadas com si próprios, como atores e personagens. Em Japaratinga, onde secretários municipais e um vereador também assistiam e se divertiam com a apresentação, sobrou até para um secretário municipal entrar em cena e ser caçoado pelo Cabo Setenta. Mas, logo na sequência, Cabo Setenta, que é interpretado por Moab de Oliveira, também é “zoado” por suas características físicas.  Ainda no início do espetáculo, o mesmo Cabo Setenta pergunta ao público: “O que vocês estão fazendo aqui uma hora dessas? Deveriam estar em casa!”. De forma irônica, a piada induz à reflexão quanto a necessidade de ocupação cultural dos espaços públicos.
                Em relação à comicidade, o texto, como é característico do teatro popular, propõe muitas piadas que hoje podem ser consideradas preconceituosas, no tocante ao machismo, racismo e homofobia. Na montagem, a cia. Nêga Fulô abdica de muitas das piadas do texto original, mas mantém parte delas, principalmente as gozações com o Nego Benedito, feitas pelas outras personagens. Alguns integrantes do grupo contam que, durante uma apresentação no centro de Maceió, um senhor negro de idade avançada se manifestou no meio de uma das cenas, denunciando que eles tinham dito uma piada racista. Algumas zombarias as quais sofre Benedito fora da encenação podem ser consideradas racismo, porém é preciso compreender o contexto e o sentido em que elas são utilizadas na montagem, se como denúncia de uma realidade ainda muito presente em nosso cotidiano ou como legitimação dos preconceitos. Enfim, são muitas as leituras possíveis, a partir dos distintos lugares de onde se vê e talvez o espetáculo permita, no mínimo, as duas leituras anteriormente mencionadas.
                Vale ressaltar que na obra encenada, assim como no texto original, o personagem negro cria empatia no público e, apesar dos preconceitos sofridos, com a astúcia características dos tipos universais populares, “vence” todos os demais, usando, no entanto, também sua força física, o que pode denotar o reforço de certo estereótipo da negritude. Penso que o elenco (que é, em sua maioria, negro) está atento à essas questões e às possíveis leituras de sua obra e pode seguir adaptando-a de acordo com as transformações contemporâneas das consciências de raça, etnia, gênero e sexualidade. 
                A marca cômica e improvisacional da montagem permite, por exemplo, que Régis de Souza insira, em meio a uma cena como Benedito, uma crítica à Jair Bolsonaro, crítica esta que, aparentemente, gera um incômodo em parte do público. Em outro momento o mesmo Benedito induz o público a responder positivamente a uma pergunta, em relação a uma situação que a encenação mostrava que era mentirosa. O público adere ao pedido da personagem e então Benedito responde e provoca: “Assim começa a corrupção!”, lançando mais um aspecto de crítica política por meio de um humor leve e relacional. O elenco insere ainda, gags clássicas, como um trocadilho com a palavra “cutuvelo” (pronunciada com a primeira sílaba destacada das demais), o que gera muitas gargalhadas nos espectadores. De forma geral, o público de Japaratinga mostrou-se muito participativo, comentando as cenas, respondendo às piadas, provocando as personagens e, pelo que pude observar, divertiu-se enormemente com a apresentação.
Como já ressaltado, o elenco destaca-se pela capacidade de improviso e relação com o público, no entanto, provavelmente pela dificuldade em manter uma rotina intensa de ensaios (já que todos os integrantes tiram seu sustento de outros trabalhos) e apresentações (pela escassez de apoios), deslizam em alguns momentos, com esquecimentos de texto e de acompanhamento na sonoplastia. Mas, devido à intimidade do grupo em cena e às suas habilidades, parte dos erros são bem contornados e geram mais piadas, a partir do improviso. As partituras corporais do elenco também deixam um pouco a desejar, já que eles se apoiam muito em suas habilidades discursivas. Por vezes, tive vontade também de ouvir um acompanhamento de instrumento harmônico às músicas utilizadas no espetáculo, mas compreendo que nem sempre é possível contar com músicos acompanhando a trupe.
Por fim, é importante lembrar como é difícil manter a continuidade de trabalhos como esse, e como é necessária a existência de mais políticas públicas para manutenção e circulação destas obras, o que geraria também um crescimento estético das encenações, uma vez que com mais oportunidades de apresentação, o trabalho tende a se desenvolver. Assim, sigo na torcida para que os poderes públicos ampliem sua sensibilidade e atuação nas políticas culturais e que o grupo tenha longa vida e possa levar seu trabalho para diversas localidades, muitas das quais só têm acesso ao teatro graças a trabalhos como o realizado pela Cia. Nêga Fulô.

Referências
IBGE. Coordenação de População e Indicadores Sociais. Perfil dos estados e dos municípios brasileiros: cultura: 2014. Rio de Janeiro: IBGE, 2015. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95013.pdf Acesso em 02 de maio de  2018.

MATE, Alexandre. Apontamentos acerca do conceito de acessibilidade. In: MATE, Alexandre. O teatro adulto na cidade de São Paulo na década de 1980. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
SANTOS, Ivanildo Lubarino Piccoli dos Santos. O dueto cômico: da Commedia Dell´Arte ao cavalo marinho. Tese (doutorado). Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista (Unesp), São Paulo, 2015.


[1] Ator, arte-educador e pesquisador teatral. Professor do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR).
[2] SANTOS (2015).

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