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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A Cena é Pública

Por Jussara Trindade - Doutoranda da UNIRIO

Caros amigos da RBTR,

Com a aproximação da V Reunião Científica da ABRACE – Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas – importante evento acadêmico que reunirá pesquisadores teatrais de todo o país (em novembro, na USP), vejo a necessidade de retomar algumas das questões teóricas que vêm ocupando cada vez mais espaço entre os estudos acadêmicos sobre o teatro de rua. Aproveitarei, então, para comentar dois espetáculos (Circo negro – Experiência Subterrânea, SC e A cena é pública – Teatro de Operações, RJ) apresentados respectivamente no XIV Encontro Nacional de Teatro de Rua de Angra dos Reis e no II Encontro Matraca de Teatro de Rua do Maranhão, tendo como base a noção de teatro de invasão, proposta pelo pesquisador André Carreira (UDESC). Além de diretor do grupo Experiência Subterrânea, de Florianópolis, Carreira é também um dos mais importantes teóricos do teatro de rua em nosso país, autor de textos que abordam questões fundamentais do nosso campo de estudos. As reflexões aqui colocadas estão contidas em seu artigo Procedimentos de um teatro de invasão, publicado na Cavalo Louco - Revista de Teatro da Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz, nº 5, em dezembro de 2008.

Como premissa básica, o pesquisador propõe ir além da noção de "teatro de rua" como simples transposição geográfica do teatro de sala – tido tradicionalmente como o teatro - para se admitir o espetáculo no espaço urbano como um outro teatro que se constrói sobre outra ordem e outros princípios, totalmente diversos daquele. É a proposição de um teatro que, operando pela intensificação do jogo teatral, propõe ao público a descoberta de um novo ordenamento da cidade e um outro modo de decifração do espetáculo.

CIRCO NEGRO - Experiência Subterrânea, SC

Até então, eu não sabia qual o local exato da apresentação. Somente naquela manhã é que o grupo Experiência Subterrânea saíra pela cidade, fazendo as suas escolhas. Mas imaginava que a ação decorreria melhor nas ruas do centro da cidade, onde a grande movimentação de pessoas e veículos, as marquises de edifícios e outros elementos urbanos, bem como o horário da apresentação, poderiam oferecer aos atores muitas possibilidades dramatúrgicas para a montagem de Circo Negro em Angra dos Reis. Questão básica, no teatro de invasão, é compreender a cidade não apenas como cenografia, mas como dramaturgia. Assim vista, a cidade é um tecido relacional cuja trama se constitui de elementos estáticos (projeto de urbanismo e paisagismo, plano viário, arquitetura das edificações, monumentos, etc) e dinâmicos (trânsito de carros e de pessoas, ciclos de trabalho diurno e noturno, mudanças de luminosidade e sonoridade etc). A cidade e seus fluxos são, nesta proposta, os elementos básicos para a criação. Penetrar no ambiente da cidade é, portanto, condição primordial para a elaboração de um projeto cênico, e por isso fora absolutamente necessário aquele reconhecimento prévio do espaço por parte do grupo.

Avistei uma movimentação de pessoas na esquina da Casa de Cultura de Angra dos Reis, que estava totalmente iluminada. Após alguns minutos, atores começaram a sair do prédio, em fila indiana. Cada um estava caracterizado diferentemente. Colocaram-se numa fileira, lado a lado, ocupando uma grande área da rua e impedindo a passagem de carros e ônibus em pleno horário de rush. Eram 19:00h. Algumas buzinas começaram a soar, motoristas impacientes a praguejar, e a partir daí comecei a pensar nas reflexões teóricas do diretor André Carreira. Uma palavra surgiu em minha mente: fluxo. Interromper, interferir no fluxo. Se as ruas são as veias e artérias por onde circula o fluxo energético do sistema urbano, então o que se passava ali era exatamente isso: o grupo iniciara sua apresentação interferindo explicitamente na cidade, interrompendo propositalmente o fluxo de automóveis e coletivos em seu trânsito corriqueiro. Penetrar o espaço da cidade é redefinir e re-significar esse espaço, deslocando as regras do cotidiano urbano para instaurar ali, temporariamente, uma outra ordem social. O sentido político maior desse teatro é, por isso, o de resistência: resistir à lógica de consumo que tende a fazer, da cidade, apenas um espaço onde predominam as regras da mercadoria.

O grupo permaneceu ali um tempo que me pareceu bastante longo; em seguida deu início à primeira cena, no meio da rua. Um jovem ator, caracterizado como policial "motoqueiro" e utilizando um walktalk, narrava para o público a cena bizarra de esfaqueamento de uma mulher, para em seguida efetuar o desmascaramento do drama, deixando à mostra a teatralidade do acontecido: "Vejam, senhoras e senhores: NÃO HÁ SANGUE!!!" Nessa altura, já havia uma verdadeira multidão presente; curiosas, as pessoas começaram a "apertar" o espaço cênico. Mas não houve tempo para pensar sobre essa dificuldade ou qualquer outra, pois de repente o "motoqueiro" partiu, deslocando-se rapidamente por entre os espectadores em direção à esquina mais próxima.

A cena seguinte aconteceu numa travessa próxima; parecia tratar-se de um assalto, realizado por uma jovem atriz caracterizada de cowgirl. Infelizmente não pude compreender o que se passou; na verdade nem pude ver bem ou ouvir os atores. A quantidade surpreendente de espectadores à minha frente praticamente criou uma barreira entre mim e a cena. Praticamente impedida de acompanhar o espetáculo, minha atenção voltou-se para elementos adjacentes. Percebi, por exemplo, a presença de vários casais com seus filhos, tentando participar ativamente da proposta, correndo pela rua e rindo, passando aos trancos com carrinhos de bebê pelos buracos da calçada; alguns pais colocaram seus pimpolhos nos ombros para que estes pudessem assistir do alto (embora não se tratasse, evidentemente, de um espetáculo "para crianças"). Também percebi que a cena foi iluminada a partir de um ponto do outro lado da rua, por um potente refletor empunhado pelo próprio diretor do grupo que, do alto de uma plataforma móvel, cumpria nesse momento a função de iluminador.

A cena seguinte, realizada alguns metros à frente e ainda na mesma rua, não foi muito diferente para mim. Consegui assistir parte de uma discussão de casal, encenada diante da porta de uma loja fechada. A jovem atriz lançou-se destemidamente na interpretação de uma personagem absolutamente histérica e obteve uma resposta de fato afetiva do público, no sentido de ser afetado. Num dado momento, quando o público reagiu com espanto sincero perante a sonora bofetada que a jovem desferiu no rosto do parceiro, mais uma vez ecoou em minha mente a idéia de um teatro que tem como proposta sensibilizar o espectador da rua através de uma ruptura do cotidiano que é dada não pela lógica do entretenimento popular, mas pela instauração de uma lógica ficcional em que um simples diálogo torna-se embate de vida ou morte.

Em seguida, presenciei a cena de uma bailarina com seu partner, que a carregava nos ombros. A leveza da rósea figura contrastava, porém, com a expressão fixa de um terror "inexplicável" que deformava o seu rosto; o par estava totalmente visível para todos, atuando no centro de uma grande roda no adro da Praça da Matriz. Curiosamente, as pessoas pareciam não querer soltar as mãos, aguardando "alguma coisa" que, entretanto, não aconteceu. Repentinamente, os atores "desmancharam" a cena e saíram da praça em disparada, desta vez em direção a uma travessa muito estreita. Desta vez, infelizmente, não vi praticamente nada.

No contexto do teatro de invasão o cidadão é, ao mesmo tempo, público e um componente do espetáculo. Ainda que involuntário a princípio, ele aceita o acontecimento (e passa a fazer parte, transformando-se ele mesmo num elemento de observação por parte do próprio público) ou simplesmente se afasta. A concepção do teatro de invasão acerca do público é oposta à lógica teatral em que este é colocado no foco do processo criativo. Segundo Carreira, o espetáculo que tem o público como objetivo acaba por colocá-lo fora do processo, porque estando na condição de espectador, no sentido convencional, ele não tem meios eficazes de interferir na encenação ou de operar a reorganização daquele cotidiano. Por isso, o teatro de invasão não tem uma preocupação a priori com a visibilidade da cena ou o conforto do público, como ocorre nos espetáculos em que se colocam cadeiras, por exemplo. Ao contrário, ele é convidado a deslocar continuamente seu ponto de observação sobre a encenação para descobrir, nesse deslocamento, novas possibilidades de relacionamento com aquele espaço social e urbano.

No final da apresentação, mantive uma distância muito grande, já desacreditando da possibilidade de ouvir qualquer coisa. Pude perceber que grande parte do público já partira; mesmo assim, os atores mantiveram a mesma atitude corajosa e, de olhos vendados, deram início a uma jornada às cegas pelo espaço desconhecido de Angra. Depois, sumiram na escuridão!

Angra dos Reis, 09 de maio de 2009

A CENA É PÚBLICA - Teatro de Operações, RJ

Fechando a programação do II Encontro Matraca de Teatro de Rua, o Teatro de Operações apresentou-se às 18h na Praça Nauro Machado, em pleno Centro Histórico de São Luís (MA), causando grande alvoroço! A proposta do grupo foi radicalmente diferente da maior parte das outras apresentações do evento, mais voltadas para estéticas de cunho popular ou circense, com abundância de elementos da cultura tradicional nordestina (caracterização de personagens típicos, temáticas e músicas regionais, espaço cênico em arena etc). Com A cena é pública o coletivo carioca apresentou um teatro de rua eminentemente contemporâneo, cosmopolita, espacialmente indefinido e profundamente político, em sua proposta de ruptura dos condicionamentos cotidianos daquele ambiente urbano e social. Além disso, ao propor uma linguagem contemporânea para o teatro de rua, utilizando o potencial arquitetônico e humano da cidade como a própria dramaturgia do espetáculo, o coletivo aproximou-se das formulações de André Carreira sobre o teatro de invasão.

Qualquer comentário, entretanto, não pode prescindir de uma descrição prévia do espaço onde o espetáculo foi realizado, uma vez que a concepção final se deu a partir do mesmo. A Praça Nauro Machado localiza-se na esquina das ruas da Alfândega e da Estrela, bem ao lado do Teatro João do Vale – antigo galpão adaptado que homenageia o grande compositor e cantor maranhense. É uma imensa arena circular, cercada por árvores e bancos de praça antigos; ao fundo há um belo jardim em cuja área central costumam se apresentar, eventualmente, grupos de Capoeira e de Tambor de Crioula - dança trazida pelos escravos africanos à região no período colonial. Entre a grande arena e uma parede lateral do Teatro, há outra área pública que liga a Rua da Estrela a uma paralela, por meio de uma imponente escadaria que, de tão alta, foi construída com dois lances para permitir um breve descanso para quem transita. No alto, um portal formado por três arcos dá, finalmente, passagem para uma pracinha na R. do Giz. Detalhe importante dessa escolha é o fato de a esquina da Praça Nauro Machado ser ponto de confluência entre vários bares e restaurantes do Centro Histórico, fazendo deste um lugar marcado pela presença de artistas famosos e anônimos, intelectuais e turistas.

Dentro da perspectiva de um teatro de invasão, a cidade não é apenas um elemento externo de referência. A cena tanto invade, quanto é invadida pela própria "fala" da cidade, num ato de penetração mútua onde o elemento de mediação é o ator. Aqui, a percepção da cidade como dramaturgia está no centro do processo de criação. Isto implica em descobrir aquilo que a cidade pode oferecer para a construção de um projeto cênico. Segundo Carreira, é esta a diferença fundamental entre os procedimentos cênicos de invasão e outros, mais tradicionais. O projeto de montagem nesse teatro nasce da experiência concreta do ator com a cidade e apóia-se nessa relação. É digno de nota, nesse sentido, que durante os dois dias que antecederam o espetáculo, os atores investigaram minuciosamente o ambiente – concreto e social – daquele setor da cidade, percorrendo dia e noite as ruas secundárias, conhecendo os pontos comerciais, fazendo contato com artistas, observando a população, reorganizando o próprio roteiro do espetáculo e definindo o material cenográfico a partir dessas ações locais. Assim, ao adotar uma postura de aceitação profunda desse ambiente físico e cultural para a apresentação de A cena é pública, o grupo já demonstra o desejo de dialogar intensamente com a cidade, de ouvir a sua "fala".

Na noite do espetáculo, o Teatro de Operações fez uso de todo o espaço físico. Iniciando com a entrada da trupe em fila indiana e carregando cadeiras ao som de um samba-de-breque de Bezerra da Silva – famoso pela ética da "malandragem" e humor irônico – os atores entram na arena central caracterizados como "políticos", trajando terno completo, gravata, sapato social e máscaras de látex, dessas que são sucesso absoluto no carnaval por representarem figuras reais da política nacional. Entre estas, uma se destaca: é a máscara de um burro. A atriz que a usa é também a única do grupo que não veste terno, e sim calça simples e camiseta.

A atenção da cena passa, então, para o espaço da escadaria: dois atores (ou serão atrizes?) estão em diferentes posições, cada um(a) em frente a um televisor. De repente, avançam furiosamente para os aparelhos e os atacam. São destruídos sem piedade e rolam aos cacos escada abaixo, sob o espanto ou aprovação do público na praça. No pé da escada, é dado início a uma espécie de ritual de purificação pelo fogo – os objetos de sacrifício são, agora, uma mesa e uma cadeira, banhados por gasolina por um ator-oficiante. Pelo chão, espalham-se balões com água que acabam rolando para o mesmo lugar devido à inclinação da calçada e ficam sem função. Algumas crianças presentes demonstram um impulso de pegá-los, mas apenas uma chega a fazê-lo. Até esse momento, o público hesita em interagir com os atores.

Enquanto o fogo desaparece sob o olhar dos espectadores, agora excitados pela situação inesperada, surge uma nova cena na rua, onde o trânsito não é permitido: um ator-narrador, usando a máscara de Fernando Henrique Cardoso, anuncia ao microfone a realização de um grande debate entre dois políticos em plena campanha eleitoral, em que cada um irá apresentar publicamente o seu projeto de governo. Utilizando o linguajar característico e veloz dos locutores de futebol, ele explica que serão discutidos, nesse debate, os pontos fundamentais da vida social: educação, saúde, moradia, violência urbana etc. E o "moderador" (no caso, um árbitro esportivo) é justamente o "povo" – aquele personagem da máscara de burro! Um "comentarista político" é convidado pelo narrador a dividir com ele o microfone e elucidar para o eleitor os pontos obscuros da atuação de cada um dos candidatos durante o "debate". Paralelamente, estes começam a usar seus arsenais de truques sujos, antes mesmo de soar o gongo! Finalmente, são divulgadas as suas respectivas identidades: diante de uma platéia estarrecida, o narrador-locutor anuncia: "Senhoras e senhores: deste lado, o Sr. Josef Sarney! E deste outro, senhoras e senhores, o Sr. José Sarney!" Nesse momento, o espectador maranhense parece não acreditar no que está vendo e ouvindo. Olho à minha volta e vejo expressões de espanto, riso incontrolável, indignação e até medo, ou uma mistura de tudo isso, mas ninguém, ninguém está indiferente.

A luta se desenvolve com um repertório inacreditável de golpes baixos de ambos os lados que, entretanto, são narrados como se fossem as meras considerações sobre um debate televisionado em Rede Nacional. Por exemplo, no momento em que um dos dois "Sarney" golpeia com total deslealdade o outro pelas costas, o convidado comenta o fato com naturalidade, enfocando-o dentro de uma dinâmica que deveria, em princípio, ser apenas verbal: "Veja bem: o Sr. Josef Sarney adotou agora uma postura mais agressiva, demonstrando que veio decidido para o debate". Desta forma, a luta vai ficando cada vez mais bizarra e ganhando outros espaços, incluindo até mesmo um "despacho" para Exu na esquina seguinte, chaves-de-braço e pontapés, magistralmente coreografados pelos atores como num filme de ação. Percebe-se, pela agilidade da cena, que tanto a movimentação dos atores por diferentes espaços quanto a narração, executadas em sincronia e com aproveitamento das situações inusitadas que surgem no momento mesmo da ação, excluem qualquer possibilidade de uso de marcações ou de texto como referências fixas. No teatro de invasão, o ator tem uma exigência representacional de outra ordem. Como não há preparação prévia (do ponto de vista da técnica atorial) que dê conta das variáveis emergentes numa tal situação, a sua preparação deverá estar voltada para a construção de um instrumental que tenha na flexibilidade e adaptabilidade a sua principal marca, pois o ator tem que interagir com o espaço e não usá-lo, apenas. Desse modo, um trabalho possível para o ator, no teatro de invasão, se aproxima mais da estrutura do jogo do que das técnicas interpretativas convencionais do palco.

Voltando ao espetáculo: o público acompanha toda a intensa movimentação pelas ruas e calçadas adjacentes, reorganizando-se em cada novo lugar a fim de não perder nenhum dos lances – que são sistematicamente narrados e "comentados". No centro da Praça, o golpe final é de uma baixaria total: Josef Sarney vence a disputa ao "enfiar o dedo" no seu duplo, fazendo o público ir ao delírio! Em seguida, os atores sobem a escadaria para brindar a vitória – de quem?? - em taças de champagne sob uma chuva de fogos de artifício, enquanto são "servidas" aos espectadores bandejas vazias, numa festa para a qual não foram convidados e que só podem observar de baixo, em absoluta impotência! Nesse momento, explodem vaias: "Marmelada!" "Também quero!" "São os mesmos!" E o público consegue, finalmente, expressar abertamente a sua opinião, entre gargalhadas e gritos de indignação. A escadaria, até então apenas uma edificação urbana construída para facilitar o deslocamento dos transeuntes até a outra rua, torna-se nesse instante um símbolo da desigualdade social, por estabelecer entre dois grupos – políticos e cidadãos - uma hierarquia de espaços rigidamente marcados. Utilizada em seu potencial dramatúrgico e não apenas cenográfico, a escadaria é re-significada pelo público, que sinaliza claramente para a súbita conscientização de seu novo sentido.

Quando os atores passam pelo portal em arcos e desaparecem sem retornar para os costumeiros aplausos, muitas pessoas ficam por ali, expondo as mais diversas e intensas emoções. Medo: "se eu conheço o Sarney, esses caras nunca mais vão voltar aqui no Maranhão!", indignação: "Mas que cara-de-pau, vir do Rio de Janeiro até aqui só pra quebrar televisão desse jeito? O que é isso?", apoio: "Eu nunca vi ninguém falar do Sarney desse jeito, é muita coragem!" De repente, em meio aos comentários mais contraditórios, desce a escadaria um grupo de jovens punks, vestidos e maquiados de preto e carregando objetos cênicos (foices da Morte, tridentes, correntes, adereços usados em festas do Halloween). Todos pensamos ser, aquela, a continuação do espetáculo, como se fosse o The day after dos acontecimentos anteriores; afinal, o desfecho daquele debate político só poderia resultar numa sociedade depressiva e num luto coletivo... Foram muito aplaudidos. Mas, para minha surpresa, soube depois que nada havia sido combinado com aqueles jovens, freqüentadores habituais da praça, segundo os moradores da área. Apesar disso, era perceptível, na atitude performática daqueles jovens, um desejo de participar da movimentação que alcançara São Luís naqueles últimos dias, provavelmente em função das apresentações de rua promovidas pelo II Encontro Matraca. Particularmente, eu gosto de pensar que o teatro de rua foi capaz disso!

Uma coisa que merece também ser comentada em A cena é pública é que o espetáculo é tão "contemporâneo" em sua dramaturgia aberta que o coletivo de apenas quatro atores (os que puderam ir ao evento) pôde inserir, em seu reduzido elenco, e às vésperas da apresentação, outros cinco que estavam participando do Encontro (se não me engano, dois atores de São Luís, duas atrizes de Imperatriz e a atriz Vanéssia Gomes, de Fortaleza), conforme eles mesmos relataram num momento posterior. Este posicionamento "de risco" não trouxe, contudo, nenhum prejuízo para o espetáculo. Ao contrário, a disponibilidade total dos atores para os imprevistos que a situação indicava trouxe à proposta uma atualidade ímpar. Trabalhando a partir de um roteiro básico, o coletivo agiu realmente como um "comando de operações": analisou previamente as possibilidades de teatralidade daquele ambiente, cooptou simpatizantes no novo território, diluiu as possíveis hierarquias e lideranças óbvias, confundiu os gêneros, organizou uma estratégia de ocupação de espaço para tomá-lo de assalto e, depois de estabelecer um intenso diálogo com aquele lugar e seu público, finalmente "saiu de cena" sem deixar vestígios!

Profundamente político, tanto nos procedimentos de criação e construção do espetáculo quanto na temática abordada, o Teatro de Operações agigantou sua crítica através do deboche escancarado. Creio que esse tipo de experiência teatral, proposto inclusive por jovens estudantes de teatro, obriga-nos a repensar o suposto anacronismo de um teatro de rua de intenção claramente política, pois o que se pôde constatar, em A cena é pública, é que para se fazer uma crítica contundente não é preciso, necessariamente, abrir mão do humor e da comicidade, nem adotar uma estética retrô ou algum pseudo-didatismo do tipo "dedo-na-cara", equívocos estes que têm levado artistas de teatro a rejeitarem sistematicamente essa temática sob a alegação generalizadora de que "todo teatro é político em essência". Encerro, portanto, com uma definição do autor que elucida quaisquer dúvidas sobre o caráter fundamentalmente político do teatro de invasão:

"Invadir é construir uma fala cidadã-teatral – que dialogue com a cidade a partir da compreensão desta como um lugar sócio-cultural no qual todo cidadão pode propor novos ritmos, novos fluxos e novos sentidos" (André Carreira, 2008).

São Luís, 10 de outubro de 2009

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