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domingo, 11 de outubro de 2009

Duas Críticas de Jussara Trindade

BOLEBA – VAI PRA RUA, MENINO (Grupo Te Conto Umas - RJ)

Por Jussara Trindade – doutoranda UNIRIO

O espetáculo foi apresentado na Lona do Campeche durante o 16º Floripa Teatro. O presságio de mau tempo iminente não impediu, contudo, que a Lona ficasse lotada: muitas crianças, algumas com familiares e a maioria trazida por escolas ou creches do bairro, chegavam e disciplinadamente tomavam seu lugar na platéia, que quase circundava um espaço cênico frontalizado. O espetáculo iniciou pontualmente às 15h; cinco atores deram início à narrativa totalmente sonorizada de Boleba: vai pra rua, menino! conduzindo o imaginário do espectador a um espaço-tempo em que a rua ainda não era sinônimo de perigo ou marginalidade, onde meninos e meninas construíam suas próprias estratégias de ocupação desse espaço "de todos" e "de ninguém", com disputas acirradas e descobertas instigantes.

Num momento em que o discurso predominante no campo das políticas públicas é o de "tirar a criança da rua", o grupo resolveu brincar com a inversão desse mote já instalado no senso comum do cidadão e trazer uma possibilidade de reflexão sobre o conceito de "rua" como um espaço de liberdade que foi sendo gradativamente subtraído da criança nos centros urbanos, sem que nada de verdadeiramente satisfatório tenha sido colocado em seu lugar. Sob esse ponto de vista, contudo, o espetáculo permanece no terreno mais confortável do saudosismo. Talvez, por esse motivo, as brincadeiras e jogos infantis são abordados de modo exageradamente idealizado, apresentados como artefatos arqueológicos de um passado remoto e irremediavelmente perdido. Uma concepção menos "bem-comportada" e mais aberta ao risco poderia, talvez, trazer ao espetáculo a dose de contradição necessária à reflexão sobre o amplo sentido do termo "rua" na contemporaneidade.

A ausência de uma proposta teatral mais incisiva nesse sentido não afasta do espetáculo, porém, a magia da infância. As brincadeiras apresentadas em cena são as "de antigamente", disputadas preferencialmente nas ruas: amarelinha, pipa, jogo do par-e-ímpar. A súbita revelação do "inimigo" como possibilidade de prazer, no beijo roubado durante a briga/brincadeira. Tudo isso, narrado musicalmente. Bateria, pandeiro, alfaia, flauta transversa e guitarra elétrica, além de objetos sonoros, deram o tom da sonoplastia e dos temas musicais, executados e cantados pelos próprios atores-músicos que alternaram entre si também a narração, de "fora" ou "dentro" da cena.

Mas não só estímulos sonoro-musicais dão vida à Boleba... gostaria de ressaltar também o cuidado com os signos visuais do espetáculo: adereços elaborados com pouquíssimos recursos materiais e grande imaginação, tais como a "saia" da menina e a "calça" do menino, feitas de bambolês articulados com fitas de tecido, os imensos laços femininos de cabelo, a tiara de bobies de cabelo para a mãe, os grandes tecidos como pipas, as máscaras de pai e de tio, a bolsa para a vizinha assustadora. A predominância das cores vermelha e branca, presente também nos instrumentos musicais, reafirmou a preocupação do coletivo com uma, talvez, demasiada "correção" do espetáculo.

O ritmo ágil da encenação musicalizada mantinha os pequenos espectadores atentos e "ligados" na apresentação, que também incluía momentos de participação ativa. Em várias ocasiões, crianças entraram em cena conduzidas pelos atores e participaram das brincadeiras. Um momento de pura poesia foi a da conhecida parlenda "Tangolomango", em que as "irmãs" que moram numa casa vão sumindo uma a uma, em contagem regressiva.

Assim, adotando uma dinâmica compatível com a sensibilidade e psicologia da criança, o Te Conto Umas construiu um espetáculo acessível ao público infantil, com grande competência técnico-artística, particularmente no âmbito da narrativa musical. Para mim, reside provavelmente aí o mérito maior do espetáculo: longe das fórmulas de entretenimento infantil por meio de uma "metodologia" televisiva e equivocada, que imbeciliza as crianças com estímulos verbais do tipo "Vamos lá, criançaaaaaaada!!!" ou se dirige a elas como se apresentassem algum déficit auditivo (coisa que já vi ocorrer em muitos espetáculos teatrais de rua para crianças, diga-se de passagem), Boleba: vai pra rua, menino! investe na inteligência musical da criança, deixando evidente a enorme responsabilidade que significa assumir qualquer projeto artístico voltado para o público infantil.

Florianópolis, 17 de agosto de 2009

ARANDE GRÓVORE (Galpão Cine Horto, MG)

Pergunto-me: em que cidade encontra-se, ainda, uma árvore capaz de representar essa poderosa e arquetípica Grande Árvore sob a qual pode-se encenar o drama da existência? Mesmo na Praça do Porto, onde o espetáculo foi apresentado durante o XIV Encontro Nacional de Teatro de Rua de Angra dos Reis e que parecia ser o melhor espaço, as árvores, embora lindas e antigas como a imagem do título exigia, estavam todas confinadas em diminutos espaços de terra à sua volta, cercadas pelo calçamento de pedras portuguesas que domina todo o chão da praça. Essa súbita consciência acerca da precariedade de nossa arquitetura urbana é, talvez, a primeira de várias reflexões que Arande Gróvore é capaz de estimular. Mas há outras, ainda mais sutis.

Já no título, o espetáculo do Galpão Cine Horto anuncia que, embora indicado para "crianças de todas as idades", trata-se de uma verdadeira jornada arquetípica, isto é, conta a história de todos nós em busca de plenitude como seres humanos, tal qual os contos de fada o fizeram durante séculos em todas as culturas. Abordando alegoricamente conteúdos psíquicos nada "infantis" – o despertar da sexualidade, a perda do lar, a solidão, a morte e renascimento, a busca do amor – essas histórias se passam sempre no tempo e lugar do ...Era uma vez, onde acontecimentos fantásticos irão mudar, definitivamente, a vida do(a) protagonista.

Na famosa obra A psicanálise dos contos de fada, Bruno Bettelheim comenta:

O que sucede aos heróis e heroínas nos contos de fada é semelhante e comparável aos ritos de iniciação nos quais o noviço entra ingênuo e desinformado, e sai no final num nível de existência aprimorado com que não sonhava no início da viagem sagrada, pela qual consegue a recompensa ou a salvação. Tornando-se verdadeiramente ele mesmo, o herói ou a heroína torna-se digno de ser amado[1].

O Galpão Cine Horto criou uma saborosa miscelânea de elementos arquetípicos presentes também em fontes remotas, como no mito cristão do Jardim do Éden. Ao comerem o fruto proibido da Árvore do Conhecimento, Adão e Eva perdem a inocência e vêem que estão nus. Expulsos do paraíso, dão início a uma vida adulta. No espetáculo, quatro irmãs encontram um fruto mágico que nasce da Arande Gróvore. Contrariando as recomendações da mãe, as três mais velhas o devoram, não deixando nada para a caçula. Mas são punidas com um estranho e cômico efeito "digestivo": seus rostos são deformados pela bizarra aparição de olhos anormais. Parodiando de forma bem-humorada o mito cristão, as irmãs desobedientes também passam a "ver" o mundo de outro modo; contudo, trata-se de uma visão distorcida, que está mais a serviço da maledicência do que da sabedoria. Depois, quando a irmã mais nova é aprisionada pelo verdadeiro dono do fruto - um tenebroso personagem, misto de homem e ogro – que vem exigir sua "paga" pela infração cometida, estamos diante do chamado "ciclo do noivo-animal", com todo o seu conteúdo simbólico da iniciação sexual da mulher. Dos contos de fada que abordam o tema, A Bela e a Fera é certamente o mais conhecido hoje, devido à versão adocicada dos Estúdios Disney. Mas, então, entra em cena o mito pré-cristão de Eros e Psiquê: a "irmãzinha", agora já apaixonada por esse estranho que lhe concede graças incomensuráveis (em troca de uma vida de reclusão), é subitamente "expulsa" de seu ninho de amor quando permite que a mãe e as irmãs invejosas descubram a verdadeira identidade do seu carcereiro. No mito grego, Eros é incumbido pela deusa Afrodite de levar a bela princesa Psiquê para ser sacrificada. Mas o deus, apaixonado, rapta a jovem e a leva para sua morada "nas nuvens", para onde retorna todas as noites. Exige, entretanto, que ela nunca tente vê-lo. Quando isso acontece, o deus a expulsa pela traição e Psiquê passa por incríveis provações, incluindo-se uma viagem aos Infernos! No espetáculo, é nessa viagem iniciática pelo mundo que a "pequenina" encontra seus poderes mais profundos, representados por personagens mágicos como um duende, uma menina e sua boneca, um palhaço chorão, um ser de sabedoria com três cabeças, um pássaro mágico e a Morte em pessoa, que nossa heroína engana com o som de uma viola encantada. Finalmente, a jovem heroína encontra outro fruto mágico e o leva para o ogro, que está morrendo de tristeza. Ele o come, desfazendo assim o feitiço que o transformara em monstro. Final feliz!

Vale a pena mencionar, ainda, outros importantes elementos do espetáculo: esta emocionante história é contada e cantada em gromelô, uma língua criada especialmente para as falas das personagens e que não tem absolutamente nada de aleatório. É surpreendente o nível de detalhamento pelo qual passou esse processo de construção lingüístico, com abundantes trocas de fonemas entre palavras (tal como no próprio título, ou no nome da "mãe", Querãe Mamida, entre outros), o uso de prefixos ou diminutivos que evocam conotações específicas, como os nomes das irmãs (Mador, Magir, Mamar, Massur) e as ligam implacavelmente à mãe, como um cordão umbilical sonoro; ou o termo "nininha" para referir-se à irmã caçula. Irresistivelmente musical, essa fala carrega em sua construção a deliciosa dislalia pela qual toda criança passa quando está aprendendo a construir palavras, e que a faz dizer "a máquina da Môquina (Mônica) enguiçou!", por exemplo, mostrando ser um recurso poderoso para captar a atenção dos pequenos.

É preciso, ainda, fazer justiça à inventividade das maravilhosas engenhocas "rodantes" que levam o elenco para dentro do espaço de atuação. Elas foram construídas com peças de bicicletas velhas doadas ao Projeto Pé na Rua, coordenado por Laura Bastos, Inês Peixoto e Paulo André em 2008; isto mostra inclusive a preocupação do grupo em realizar um processo de criação conectado a uma prática social relevante para a comunidade da capital mineira onde se situa o Galpão Cine Horto. Finalmente, gostaria de ressaltar a criatividade do espetáculo também no âmbito da musicalidade; o grupo foi muito feliz ao "mixar" o canto dos temas musicais ao vivo com bases instrumentais gravadas previamente. É uma solução inteligente para o difícil problema de colocar atores cantando em cena sem um apoio instrumental.

Enfim, um belo espetáculo que conquista, realmente, "todas as idades".

Angra dos Reis, 10 de maio de 2009



[1]BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

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