É no meio da praça, é no meio da rua: os ensaios abertos do espetáculo O mão de vaca do grupo teatral Palhaços Trovadores[1]
Suani Trindade Corrêa
Programa de Pós-Graduação em Letras - UFPA
Mestranda – Estudos Literários – Or. Prof.ª Dr.ª Lilia Silvestre Chaves
Bolsa CAPES
Atriz (Grupo Palhaços Trovadores)
Resumo: O presente trabalho apresentará um relato do período dos ensaios abertos do espetáculo O mão de vaca do grupo teatral Palhaços Trovadores, de Belém do Pará, que se incumbiu de montar uma adaptação de O avarento, peça escrita pelo dramaturgo francês Molière, durante o ano de 2009. A proposta de realização da montagem era de compartilhar todo o processo, dividir colaborativamente entre artistas criadores e público. Ou seja, a busca por uma criação coletiva. Lançando-se neste desafio de trazer o público para dentro do processo de montagem, o grupo, depois de alguns meses de trabalho em sala fechada, se propôs a fazer ensaios abertos, que aconteceram no anfiteatro da Praça da República, de setembro a dezembro, todas as terças e quintas-feiras, das 20h às 22h30. Com esse relato, pretende-se apontar alguns questionamentos: Qual a atitude dos atores ao ensaiarem na rua? E o público foi colaborativo, realmente, na montagem do espetáculo? Como se estabeleceu tal colaboração?
Palavras-chave: O mão de vaca. Palhaços Trovadores. Criação coletiva. Ensaio aberto. Teatro de Rua
Palhaços Trovadores e o espetáculo O mão de vaca
No ano de 2009, o grupo Palhaços Trovadores[2] decidiu montar a peça O avarento[3](1668) do dramaturgo francês Molière. A proposta desta nova montagem se fundamentou nos princípios do processo colaborativo, tipo de processo que "surge da necessidade de um novo contrato entre os criadores na busca da horizontalidade nas relações criativas" (PAVIS, 2007, p. 253). Assim, a montagem do grupo deveria seguir de uma forma aberta, em um processo amplo de colaboração de todos os envolvidos: diretor, atores e cenógrafo. Tal colaboração também deveria se estender ao público, configurando, portanto, uma criação pública, coletiva.
Os ensaios abertos
Depois de um alguns meses de trabalho em sala fechada, Marton Maués, diretor do grupo, propôs aos atores que os ensaios de O mão de vaca acontecessem em um espaço aberto. Tal proposta causou certo desconforto e algumas incertezas para alguns integrantes do grupo, pois aquela seria a primeira experiência de ensaio e de exposição de um processo de montagem do grupo na rua. Além do mais, segundo Carreira (2008, p.72), "a cidade não está disponível para as seqüências de ensaios que todo ator e diretor desejam. Assim, se coloca um desafio para o processo criador".
Contudo, os atores aceitaram a proposta do diretor, percebendo a importância de tal ação, pois convidariam "os transeuntes-cidadãos a disponibilizarem sua mítica pessoal" (SCHAPIRA, 2010, p.43). Assim, os ensaios aconteceram, de setembro a dezembro, no anfiteatro da Praça da República, às terças e quintas-feiras, sempre a partir das 20h.
Uma das dificuldades que o grupo encontrou diz respeito à ocupação do espaço. Um grupo de torcedores de futebol se reunia na praça, no mesmo horário do ensaio. Na terceira noite, os palhaços decidiram "brigar" por aquele espaço, pois os ensaios começavam sempre atrasados. Eles chegavam à praça e iam dispondo o cenário pelo anfiteatro, que eram bancos velhos. Além dos bancos, espalhavam os instrumentos musicais e outros elementos de cena, o que fez com que o grupo de torcedores "entendesse" a apropriação espacial e começasse a se reunir em outro espaço da Praça da República.
É pertinente salientar que o grupo, de certa forma, cristalizou tal desenho dos bancos-cenários. Telles (2006, p.4) diz que "atuar com as inúmeras interferências que a cidade pode propiciar, significa acionar um campo técnico-expressivo e aproveitar as possibilidades oferecidas pelo espaço". Neste sentido, acredito que o grupo não se apropriou do espaço, da arquitetura que ele oferece. E se fez, foi de maneira bem tímida.
Ao longo dos ensaios abertos, outras interferências aconteceram. Em um ensaio ocorrido em dezembro, surgiu um morador de rua, que adentrou o anfiteatro com um tronco de mangueira e o baixou ruidosamente no chão. Susto e tensão se instauraram no elenco. "A rua é deles", disse Alessandra Nogueira[4], atriz do grupo.
Em outro ensaio, outro morador de rua adentrou o anfiteatro e resolveu sentar num banco, entre o elenco. Esta "invasão" foi bem interessante para o grupo, pois possibilitou um jogo entre eles e aquele morador de rua. Porém, a interferência dele foi um tanto agressiva, pois ele quase acertou, com as baquetas do bumbo, o nariz de Andréa Flores, atriz convidada. Ela havia tentado convencê-lo a devolvê-las, fazendo com que ele sentasse ao seu lado, em cena. Ela ficou com medo e acabou respondendo, de forma áspera: "Violência não!". O resto do grupo reagiu, pedindo que ele se retirasse. Logo em seguida, a Guarda Municipal, apareceu e o "louco" saiu correndo, gritando: "Deixa pra lá, deixa pra lá!".
O interessante de tudo isso é entender que a praça, que a rua é um espaço de negociações. Perceber que a todo instante estamos sofrendo múltiplas interferências e interferindo também no espaço. E o palhaço deve está sempre atento ao que acontece à sua volta.
As atitudes dos atores
No geral, o elenco se mostrou bem à vontade durante os ensaios abertos, apesar do receio inicial quando a proposta foi lançada. O fato de ter tido pessoas observando os ensaios, foi algo motivador, pois o grupo mediu as reações no momento exato da criação, principalmente com relação ao trabalho do palhaço. Outro fator salutar foi a possibilidade, ao estar em um lugar amplo, do trabalho com a voz, de sua projeção, além de um ganho na corporeidade, já que tudo deveria ser mais expandido.
O elenco, por vezes, teve a impressão que estava em dia de apresentação, logo o corpo não relaxava; os palhaços estavam inteiros e buscavam ter presença para incorporar o público, ali presente, ao universo da peça. Para Pavis (apud TELLES, 2006, p. 2), ter presença é "saber cativar a atenção do público e impor-se; é, também, ser dotado de um 'quê' que provoca imediatamente a identificação do espectador, dando-lhe a impressão de viver em outro lugar, num eterno presente".
Outro detalhe importante é sobre o fator erro e orgulho do ator. Isac Oliveira diz que durante os ensaios abertos, não teve medo de errar diante do público, pois "afinal errar é quase uma marca do Xuxo, meu palhaço", mas percebeu que, de modo geral, o elenco ficou tenso e preocupado em não errar, como no caso do ator Marcos Vinícius que não entendia muito bem o porquê de se ensaiar na praça: "Fiquei pensando, se conseguiria entender sobre as opiniões do público, e se isso de alguma maneira viria me ferir (orgulho)! se seria humilde e paciente a ponto de aceitar qualquer comentário".
Tal preocupação em errar, fez com que o trabalho com o texto fosse, durante certo período, um dos entraves existentes durante o processo de montagem. Alguns atores não se soltavam para brincar com o texto, mesmo que errassem. Alguns ensaios foram muito desgastantes, a ponto de fazer com que o jogo do palhaço sumisse e fizesse com que algumas cenas não se desenvolvessem, pois o problema com o texto persistia. Contudo, mesmo sabendo que "as características do teatro de rua, uma modalidade dramática essencialmente de encenação, utiliza mais o espaço que as regras de elaboração do texto dramático" (TELLES, 2006, p.1), houve uma preocupação do elenco em decorar o texto, dar sentido a ele, à peça, e isto graças aos ensaios na praça, talvez pela presença das pessoas que se faziam presentes durante os ensaios abertos. Isto foi apontado por Salette Darwich, irmã de uma das atrizes do elenco, que frequentou várias vezes os ensaios abertos:
Aí então os ensaios passaram a ser na praça e abertos ao público e quem quisesse, podia ir à praça assistir. Isso foi muito interessante, pois todos podiam opinar e sugerir, ao final de cada ensaio. Não tenho certeza, mas acho que isso deu uma forçada para que o grupo se esforçasse mais para encontrar sua personagem e decorar o texto pois, assim como eu, a platéia ficava meio decepcionada quando víamos alguém com o papel nas mãos.
E ato de errar, de mostrar as fraquezas ao público é tido como um ganho para o trabalho de palhaço, como aponta Andréa Flores:
'O avarento' no papel e na sala de ensaio é bem diferente daquele diante dos olhos dos outros. Só então eu pude sentir a energia do espetáculo que estamos nos propondo a fazer, através de expressões de tédio, diversão, curiosidade, entre outras, que os olhares me emprestam. Eles são meu espelho e, assim me vendo de perto, eu me sinto mais a vontade para ajustar meu corpo, minha movimentação e ser, de fato, o personagem, sem reservas, já que estão expostas as minhas fraquezas.
Entretanto, tinha-se em mente que a rua era "o espaço inóspito que se opõe ao conforto e à segurança dos espaços íntimos" (CARREIRA, 2008, p. 74). Por isso, que alguns atores, como no caso do Marcos Vinícius, se sentiram mais à vontade em trabalhar na sala fechada, sem os olhares externos do público da praça, pois os erros que cometiam seriam somente deles, do elenco e do diretor.
Talvez isso deva ter feito com que o diretor e o grupo como um todo, tenha decidido suspender os ensaios abertos em meados de dezembro, pois, além das chuvas que começaram a se fazer presentes em algumas noites, os ensaios deveriam ficar mais concentrados, sem muitas interferências externas, para que avançassem mais o processo de montagem.
O público e as suas possíveis colaborações
O público da Praça da República foi cativo, risonho, e algumas pessoas se tornaram frequentadoras assíduas dos ensaios. Andréa Flores diz que cada vez que o palhaço dela encarava o público na rua, sentia uma pulsação mais imediata, misturada de asfalto, miséria e descompromisso, que a obrigava a estar presente para ele, sem distinção. Ou seja, "na rua não existe a quarta parede, como costumamos dizer em relação ao teatro fechado. Está tudo ali e é tudo muito cru, muito olho no olho, muito na cara. O espaço, os afetos, as reações..." (VEIGA apud VIANNA, 2010, p.53)
E por ser tudo muito imediato, a resposta do público imprimia o tom, a segurança de que o processo caminhava num rumo certo, ou melhor, justo. Ou não. Porém, a participação do público se deu de forma um tanto tímida; vez ou outra as pessoas davam suas sugestões ao final dos ensaios, principalmente quando o diretor as induzia a isso. Não sei se elas entenderam que poderiam intervir no ensaio, pará-lo e sugerir algo. Mas isto possa ter sido um descuido do grupo, por não explicitarem claramente tal possibilidade de intervenção.
Mas houve contribuições, como a de um rapaz, que estava de passagem por Belém. Ele havia notado que a cada cena os personagens mudavam a moeda (libra, franco, cruzado, real) quando se referiam a dinheiro. Perguntou se tal proposta era intencional. O diretor respondeu que sim, que cada personagem, a cada cena, usava uma moeda diferente. Ele sugeriu que radicalizassem isso: a cada fala, de qualquer personagem, que mudassem a moeda. Depois de experimentação, ocorreu a incorporação de tal sugestão ao espetáculo.
Outra sugestão foi de uma espectadora, que sugeriu uma movimentação dos bancos, na cena em que Cleanto, Elisa, Mariana e Frosina pensam em como resolver o conflito dos casamentos. Ela propôs que os atores andassem por entre os bancos, num zig-zag. Sugestão aceita.O ensaio contou ainda com a presença de Décio Gusmán, professor do departamento de História da UFPA. Ele foi bem participativo, fazendo comentários pertinentes. Destacou também o problema que ainda enfrentavam com o texto, mas que conseguiu ver ali, na montagem, a marca dos Palhaços Trovadores, o jeito de ser e de fazer teatro e palhaçaria.
Considerações finais
A experiência de fazer os ensaios abertos de um espetáculo foi muito instigante para o grupo, que interferiram na paisagem daquele anfiteatro. Mas tal interferência foi de via dupla, pois o espaço, a rua, os "espectadores-transeuntes" os interferiram também, transformando o olhar e o nariz vermelho. O palhaço sempre se joga em um abismo. E estar na rua, naquela praça, foi se lançar em um abismo. Para o grupo e pra todos que foram plateia nos ensaios, a sensação foi de compartilhamento, troca, comunhão tanto pela oportunidade de ver algo nascendo, crescendo e se criando. Como afirmou a espectadora Salette Darwich: "acho que isso nos envolveu de alguma forma que, muito mais do que platéia apenas, passamos a torcer muito pelo espetáculo, tanto que nunca havia me empenhado tanto em convidar pessoas para assistir a montagem".
Muitas vezes este público foi estimulado, instigado para que falassem, para que colaborassem e "soltassem a língua". E mesmo, em alguns ensaios, não havendo muitas contribuições, foi possível aferir que as pessoas estavam indo, vendo, gostando e voltando para assistir os ensaios abertos. E que o espetáculo, os ensaios, começaram a aguçar o interesse delas pelo teatro. Algumas disseram nunca ter visto antes o ensaio de uma peça, uma trupe de atores/palhaços trabalhando ali, na frente de todos.
Referências
CARREIRA, André. Teatro de invasão: redefinindo a ordem da cidade. In: LIMA, E.F.W. Espaço e Teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. p. 67-78.
FLORES, Andréa. Bilazinha da mamãe. Disponível em: <http://bilazinhadamamae.arteblog.com.br>. Acesso em: set. 2010.
MAUÉS, Marton. Unha-de-fome. Disponível em: <http://unha-de-fome.spaceblog.com.br>. Acesso em: set. 2010.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.
SCHAPIRA, Claudia. Teatro de rua, teatro na rua, teatro da rua, teatro para a rua, teatro com a rua?. In: TRINDADE, Jussara; TURLE, Licko. Teatro de Rua no Brasil: a primeira década do terceiro milênio. Rio de Jneiro: E-papers, 2010. p.43-44.
TELLES, Narciso. Notas acerca da atuação em espetáculo teatral de rua. In: _ Revista ouvirOUver, Uberlândia: UFU, n. 2. 2006.
VIANNA, Valéria. A arte de levar arte às ruas. In: TRINDADE, Jussara; TURLE, Licko. Teatro de Rua no Brasil: a primeira década do terceiro milênio. Rio de Janeiro: E-papers, 2010. p. 53-54.
[1]Texto criado para ser apresentado no VI Congresso da Abrace.
[2] Criado em novembro de 1998, quando Marton Maués foi convidado a ministrar uma oficina nos meses de agosto e setembro, para um grupo de alunos e ex-alunos da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará - ETDUFPA. Como resultado da oficina, foi criado o espetáculo Sem peçonha eu não trepo neste açaizeiro, utilizando trovas e canções populares. Trata-se de um espetáculo sobre o universo de lendas e mitos da Amazônia (uirapuru, boiúna, boto, iara), cujas cenas são repletas de humor e lirismo.
[3]A peça apresenta a história de Harpagon, um velho avarento que deseja casar os seus filhos Elisa e Cleanto, com pessoas mais velhas e ricas, com o intuito de obter mais riqueza para si.
[4] Os relatos de alguns atores aqui expostos foram extraídos do blog do diretor Marton Maués, ou do blog da atriz convidada Andréa Flores. Outros fazem parte de minhas próprias lembranças do período dos ensaios abertos.
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