Identidade e Território Como Norte do Processo de Criação Teatral de Rua: Buraco d`Oráculo e Pombas Urbanas nos limites da zona leste de São Paulo[1]
Adailtom Alves Teixeira – adailton_alves@terra.com.br
Programa de Pós-Graduação em Artes – Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – UNESP
Mestrando – Artes Cênicas: Teoria, Prática, História e Ensino
Orientador: Prof. Dr. Alexandre Luiz Mate
Atuação Profissional: Diretor e ator do Buraco d`Oráculo
Resumo: A pesquisa tem por objetivo identificar nas criações feitas para a rua por dois coletivos paulistanos, Buraco d`Oráculo e Pombas Urbanas, como a identidade (sentimento de pertencimento a um grupo ou lugar) e o território (o espaço transformado em lugar) influenciam ou adentram seus espetáculos. Ambos os grupos estão sediados na parte leste da cidade de São Paulo, local habitado, sobretudo, por trabalhadores migrantes ou descendentes destes. Uma característica comum a ambos os grupos é criarem seus espetáculos partindo da observação da realidade na qual estão inseridos. Trataremos de dois espetáculos, Mingau de Concreto (Pombas Urbanas) e O Cuscuz Fedegoso (Buraco d`Oráculo), de forma a tornar claro a relação já aludida.
Palavras chave: Identidade e território; teatro de rua; Buraco d`Oráculo e Pombas Urbanas
Território e identidade
A constituição da identidade ocorre historicamente e dentro de limites territoriais e culturais. Se essa construção é cultural e histórica, o que seria a identidade hoje? Para Stuart Hall, não há mais identidade, e sim identificações. A contemporaneidade nos leva a assumirmos ou sermos ora uma coisa, ora outra. Michel Maffesoli também entende que passamos da identidade para a identificação, existindo uma preocupação apenas por "estar-junto" (1999, p. 301-2). Mas se a identidade modificou-se, o sentimento de pertencimento que forma o indivíduo identitariamente nunca foi tão fundamental como na contemporaneidade.
Quanto ao território, seu conceito se modificou ao longo da história, mas sempre esteve ligado a limites e ao terror (HAESBAERT, 2006), isto é, diz respeito aos limites de um Estado e a coarção imposta pelo mesmo para manter seu território. Com o tempo pode-se falar de território de maneira mais simbólica. Assim uma dada região, um lugar, um bairro, uma comunidade, são também territórios.
O território que nos interessa nesse trabalho está situado dentro da cidade de São Paulo, trata-se da zona leste, segunda maior região em extensão e maior em população, mais de quatro milhões de habitantes. É lá que são desenvolvidos os trabalhos artísticos dos grupos Buraco d`Oráculo e Pombas Urbanas. Ambos escolheram a rua como palco, tomando o homem comum como protagonista de seus espetáculos, optando por apresentar-se aos moradores da região, tomando como referência de criação o território que habitam e as situações que vivenciam ou presenciam, daí entendermos que seu pertencimento identitário diz respeito a classe trabalhadora, seu principal público.
O Mingau de Concreto elaborado por Pombas Urbanas[2]
O Pombas Urbanas surgiu em 1989, em São Miguel Paulista, dentro do projeto Semear Asas, na Oficina Cultural Luiz Gonzaga, coordenado por Lino Rojas. O projeto foi cancelado, mas Lino Rojas ficou com os jovens, dando sequência ao trabalho e permanecendo com os mesmos por quinze anos. Em 2010 o Grupo fez vinte e um anos de existência.
O Grupo, desde o inicio, realizou experimentações no espaço aberto, revisitando suas origens nordestinas, Os pássaros chorões que chegaram da Bahia, por exemplo, abordava a chegada dos migrantes a São Paulo, realidade de seus pais.
Em 1994 decidiram levar situações do cotidiano às ruas de São Miguel Paulista e denominaram esse projeto de Cagadas Urbanas, depois levaram a experiência para outros lugares da cidade. Cagadas Urbanas consistia em pequenas cenas, algumas já apresentadas anteriormente, outras, como "Buchudas", foram criadas para esse experimento. Muitas das cenas foram reelaboradas e levadas para o espetáculo Mingau de Concreto, dois anos depois.
Nesse período, o Grupo passou a residir no centro de São Paulo, observaram as situações e as "personagens" daquele lugar e foi daí que surgiu Perfume Francês, Kelly Cratera, Lady Dá, Ciclete de Onça, Evita Peido-Fino, Quitéria das Dores, Efigência, Lucinha Pureza e Chin Chon, vivido por Lino Rojas, uma espécie de mestre de cerimônia que apresentava as personagens, ao mesmo tempo em que cuidava do ambiente, protegendo os atores. As personagens pertencem a um mundo negado. Assim, via-se em cena: putas, travestis, negociantes de crianças, machões, entre outros. Apesar de independentes, as cenas compunham um todo harmônico desse universo popular urbano.
Uma das características da rua é a não hierarquia entre atores e público, assim não era novidade que a prostituta da cena fosse assistida por prostitutas reais, que lhes ensinava como realizar a cena. Essas personagens eram um grito daqueles cidadãos que acompanhavam na roda, cidadãos negados pelas políticas institucionais e pelo preconceito. Mas na cena carnavalizada pelo Grupo, o humano aparecia no riso festivo, impondo um rebaixamento do mundo "superior", que rejeitava aquelas pessoas e situações, mostrando que não há seres acabados, superiores. Dessa forma, remetiam ao utópico, a "um mundo em plena evolução no qual estão incluídos os que riem" (BAKHTIN, 1987, p. 11). Não há negação na cultura popular, ela é sempre inclusiva e foi o que ocorreu nas centenas de vezes que a peça foi apresentada.
O Cuscuz Fedegoso feito pelo Buraco d`Oráculo
O Buraco d`Oráculo surgiu dentro de um projeto coordenado por João Carlos Andreazza em 1998, na Oficina Cultural Amácio Mazzaropi. Os atores tiveram aulas de interpretação, preparação corporal, canto, percussão e técnicas circenses, todos voltados para rua. Foi produzido o espetáculo A Guerra Santa, que discutia a fé no fim do milênio. No espetáculo havia trinta e um atores, mas ao findar o projeto, ficaram apenas alguns que resolveram tocar adiante.[3]
Em 2010 o Buraco d´Oráculo fez doze anos de existência e desde o inicio do Grupo três elementos nortearam suas criações: a rua, o popular e o cômico. A rua como espaço cênico, o popular como universo de inspiração e o cômico como elemento provocativo e reflexivo. O grotesco tornou-se fundamental nesses três elementos, já que na rua não há hierarquia entre atores e público, todos estão no mesmo patamar, apontando para uma carnavalização durante o espetáculo; o popular aponta para o não acabado em nós; e o cômico é inerente ao próprio grotesco.
O público para o qual se apresentam são fundamentalmente moradores da periferia leste de São Paulo, desde 2002 desenvolvem seus projetos nessa região, sobretudo em São Miguel Paulista. Os integrantes do Grupo entendem que é esse seu público, pois eles também são moradores dessa mesma região, daí seu universo de inspiração, daí a rua, local democratizante por definição.
Tomando a realidade que presenciavam, o Grupo criou o espetáculo O Cuscuz Fedegoso, escrita por Edson Paulo, ator do coletivo. Em cena, quatro personagens, dois deles com claros vínculos nordestinos: uma quituteira e uma raizeira (vendedora de ervas). Os demais personagens são um policial e um mendigo, representavam, respectivamente, o poder e aqueles que estão na parte inferior da pirâmide social. Ao mendigo restava apenas a astúcia para sobreviver, os demais, na luta diária, "empurravam" suas mercadorias em todo possível cliente. A autoridade, além de manter a ordem com muita violência, era extremamente corrupta.
Essa luta travada diariamente pela sobrevivência, tendo que enfrentar as dificuldades e tendo que corromper para poder ter "direito" a ganhar o pão, era o retrato e ainda é de muitos cidadãos paulistanos. O espetáculo, por causa de sua longa permanência em repertório, atravessou dois escândalos que diz respeito ao universo tratado: em São Paulo, o desdobramento da máfia dos fiscais que cobravam propina dos camelôs para que estes pudessem trabalhar, que vinha desde 1998; no Brasil veio o escândalo do mensalão – compra de votos dos parlamentares (2005-2006). O espetáculo tornava claro como a corrupção está em todas as instâncias e como é difícil a sobrevivência frente a tudo isso, sobrando aos populares a astúcia para manterem-se vivos.
Por meio desse espetáculo o Grupo aproximou-se ainda mais de seu público, os moradores daquela região, que, festivamente, os recebia e continuam a recebê-los, pois como bem afirma Alexandre Mate:
"A manifestação teatral que se aproxima de seu público (sua comunidade), sem restrições de quarta parede e de fossos de orquestra; impedimentos econômicos como a cobrança de ingressos; sem subestimar ou superestimar o público; sem exigir e impor silêncio sepulcral e contrição absolutos com relação à obra e tantas outras exigências, efetivamente separatistas podem repropor o espetáculo como festa e como encontro" (2009, p. 30).
O encontro com os seus, é o que propõe o Buraco d`Oráculo, por isso das oitentas apresentações do espetáculo, sessenta e sete foram realizadas na zona leste da cidade de São Paulo, região onde moram e atuam.
Conclusão
As semelhanças entre os grupos são grandes, seja pela origem popular, para quem começaram apresentando seus trabalhos e continuam a apresentar, seja pelos caminhos e lugares que percorreram. Ambos os grupos descobriram a força do teatro de rua como veículo de comunicação e de discussão dos problemas que os cercam, tendo como laços identitários a classe trabalhadora, populares que habitam a região leste da cidade de São Paulo.
Na última década os dois grupos têm fincado ainda mais suas raízes na zona leste da cidade de São Paulo, por meio de seus projetos de circulação e de suas sedes. A região vive uma realidade de muita exclusão, realidade que sempre adentra os espetáculos de ambos os grupos, daí a aceitação por parte de seu público, pois estes se veem em cena. A maior prova de aceitação de suas obras está na longevidade desses coletivos e em nunca terem encontrado dificuldades com público, sempre numeroso em suas apresentações.
Bibliografia
BAKHTIN, Mikhail M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987.
BOGO, Ademar. Identidade e Luta de Classes. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
HAESBAERT, Rogério. O Mito da Desterritorialização: do "fim dos territórios" à multiterritorialidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
MAFFESOLI, Michel. No Fundo das Aparências. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
MATE, Alexandre. Buraco d`Oráculo: uma trupe paulistana de jogatores desfraldando espetáculos pelos espaços públicos da cidade. São Paulo: RWC, 2009.
TELLES, Narciso; CARNEIRO, Ana (Orgs.). Teatro de Rua: olhares e perspectivas. Rio de Janeiro: E-Papers, 2005.
[1]Texto escrito para VI Congresso de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (Abrace) 2010, publicado originalmente em HTTP://portalabrace.org/memoria.
[2]O grupo Pombas Urbanas tem hoje nove integrantes: Adriano Mauriz, Diego Rojas, José Solón, Juliana Flory, Marcelo Palmares, Marcos Khaju, Natali Conceição, Paulo Carvalho e Ricardo Big.
[3]Hoje faz parte do Grupo: Adailton Alves, Edson Paulo, Lu Coelho, Johnny John e Selma Pavanelli.
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