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domingo, 24 de abril de 2011

Teatro de Rua e a Cidade


"(...) vivemos num mundo que ainda não aprendemos a olhar.
Temos que reaprender a pensar o espaço."
Marc Augé – Não-Lugares

No dia 31 de agosto de 2010, realizou-se na Oficina Cultural Amácio Mazzaropi, dentro da programação de seus vinte anos, o seminário "Teatro de Rua e a Cidade", na mesa o professor Alexandre Mate, os grupos Buraco d`Oráculo e Núcleo Pavanelli, na plateia estavam presentes outros grupos que tinham interesse na discussão, como Cia do Miolo, Mamulengo da Folia, Clã Studio, Arruacirco, Cia do Outro Eu, Populacho, entre outros. Na abertura, tomando uma ideia de Roland Barthes, propus que pensássemos a cidade como texto, como algo que pode ser lida, mas que também pode ser escrita.
Tomando o historiador José D`Assunção Barros e seu livro Cidade e História, apresentei um pequeno histórico de como a cidade vem sendo estudada ao longo dos tempos. As reflexões modernas sobre a cidade deu-se no século XIX. São desse período também as novas lutas sociais no meio urbano, aceleração do crescimento industrial, das utopias, das revoluções e do nascimento de muitas ciências sociais, como a sociologia, a história, a psicologia e a psicanálise. Nesse século, o XIX, foi gestado as ideias positivistas e marxistas. Como afirma Barros, "Apareceram notadamente as preocupações com a função econômica, com o modo de vida do citadino, com a forma urbana e sua organização social, com a representação e com o imaginário da cidade, com as relações entre o público e o privado" (2007: 17). Portanto, um período rico para compreendermos as metrópoles de hoje.
De lá para cá a cidade foi vista de várias formas, de artefato a obra de arte, de ecossistema a uma máquina, e como já dito, como texto. Este último é o que quero abordar um pouco mais especificamente. A cidade vista como um texto nos apresenta um discurso que lemos ao percorrê-la, mas, ao mesmo tempo, ao habitá-la e fazer nossa arte, estamos imprimindo um novo texto que enriquece o imaginário da mesma.
Mas como se lê a cidade? Barros esclarece:
uma cidade fala eloquentemente dos critérios de segregação presentes em sua sociedade através dos múltiplos compartimentos em que se divide, dos seus acessos e interditos, da materialização do preconceito e da hierarquia social no espaço. Sua paisagem fala de sua tecnologia, de sua produção material; seus monumentos e seus pontos simbólicos falam da vida mental dos que nela habitam e daqueles que a visitam: seus caminhos e seu trânsito falam das mais diversas atividades que no seu interior se produzem; seus mendigos falam da distribuição de sua riqueza ao estender a mão em busca de esmolas. Cada um  destes índices remete às letras de um alfabeto que pode ser pacientemente decifrado pelos sociólogos, pelos historiadores, pelos urbanistas [acrescento, pelos artistas]" (2007: 40-1).
A citação é longa, mas importante para compreendermos o processo de leitura no espaço urbano. Por outro lado, a cidade é reescrita o tempo todo, lugares que tinham determinado valor, hoje tem outro, áreas que eram símbolos de riqueza, hoje estão degradas. Em São Paulo, por exemplo, existe uma disputa territorial, por parte das elites, o que cria as "centralidades". Atualmente a disputa se dá em três regiões: o centro histórico, a Paulista e a região da Berrine/marginal Pinheiros. Nesse processo de disputas há muito dinheiro envolvido, altos investimentos. Assim, a realidade dessas centralidades, costuma ser "vendida" como se fosse toda a cidade, vende-se a parte pelo todo, ou seja, vende-se um discurso, um texto irreal, daí a ideia atual de São Paulo como cidade global. Então, saber lê a cidade, faz com que tenhamos ferramentas para desvelar esse texto irreal e rebatermos em nossos trabalhos teatrais, que devem ser um contradiscurso simbólico.
Como fazedores de teatro de rua, relacionamo-nos com a cidade e com os cidadãos que a habitam e, por meio de nossos espetáculos, podemos gerar afetividade com os lugares, bem como possibilidades de olharmos a cidade de forma crítica. Dessa forma, não estamos apenas levando arte para o espaço público aberto, estamos também reescrevendo a cidade. Temos a capacidade de ressignificarmos os lugares, pois a medida que ocupamos determinada praça ou região de forma constante, modifica-se a relação das pessoas com aqueles espaços. Daí a importância de sabermos que cidade nós habitamos e qual cidade nós queremos, pois se o discurso oficial, juntamente com a mídia criam um determinado imaginário da cidade, nós podemos ser a contraparte, recriando nossa cidade por meio de nossa arte. Para tanto, faz-se necessário irmos para a rua de forma consciente, sabendo de onde falamos, para quem falamos e o que falamos. Como afirma Barros, "se a cidade constitui uma "ordem espacial" que pode ser comparada à língua – por outro lado os pedestres que caminham através desta ordem espacial atualizam e reinventam esta língua" (2007: 43). Desse modo, não podemos perder de vista que nós somos contra-hegemônicos, nos contrapomos ao imaginário das centralidades.
Guy Debord, certa vez anunciou, mais ou menos nesses termos, que a cidade é portadora da tirania e da liberdade e o enfrentamento da tirania organizacional estruturante da cidade é libertário. Penso que aí está nosso papel: no enfrentamento de sua estrutura oficial e oficializante. Não podemos perder de vista que somos marginais e "numa sociedade ideal as encenações marginais é que deveriam ser oficiais", já havia dito o cenógrafo Christian Dupavillon.

Adailtom Alves – ator e diretor teatral

Publicado originalmente em A Gargalhada n. 20, fev/março de 2011.

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