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domingo, 19 de outubro de 2014

MEMÓRIA PRESENTE V


DIA 01 DE SETEMBRO
SEGUNDA  
Primeiro dia do Ocupa Nise 2014. O primeiro dia não é fácil, pessoas chegando, dando nomes, sendo hospedadas, se localizando. O grupo de acolhimento passava informações enquanto os nomes eram conferidos na listagem: “Meu nome tem que estar na lista... Fui confirmado... Em qual andar eu fico?”. Movimentação normal, pois era apenas o inicio do encontro. No quarto andar do Hotel da Loucura, um café reforçado para os participantes e também para os que tinham chegado um dia antes. Mais foram chegando, com mochilas e colchonetes, ocupando os quartos e os que trouxeram instrumentos, pegaram seus violões, tambores, pandeiros, sanfonas e a celebração teve inicio, com muito canto e dança, e como não poderia deixar de ser, estando no Rio de janeiro, espaço para o samba e para as marchinhas de carnaval. A dramaturgia começa a ser escrita neste momento.
  
O primeiro movimento estava se manifestando, a concentração para o cortejo de abertura. Houve o almoço, mas não houve pausa, a ansiedade para a abertura era imensa. Começamos a nos preparar dentro do espaço fechado do hotel. Máscaras, cores, fantasias e instrumentos. Ali o ritual deu seu corpo, com os participantes se conhecendo e se reencontrando, preparando o espírito e o sentimento. Os internos do Nise riam e dançavam conosco, uma energia boa... Podíamos sentir isso através dos internos, pois eles acabam por serem canais naturais, se tivesse uma energia ruim, não estriam pulando e cantando com o povo. E assim, levantando as bandeiras e os estandartes, começamos a caminhar em direção ao local onde se daria a abertura. Descemos as escadas no balanço do cortejo. Saímos do hotel da loucura e nos dirigimos para a Praça Nei Matogrosso, praça está adotada pelo cantor que esteve presente no Ocupa Nise 2013, compartilhando sua arte e sua inteligência. Um amigo que se pode contar e um admirador com conhecimento da história da doutora Nise da Silveira. E foi cortejando o Instituto e os seus integrantes e clientes que entramos na pequena, mas aconchegante Praça Nei Matogrosso.

  
Evento de arte Pública em um lugar de saúde pública
Chegando a praça, nos preparamos para o primeiro diálogo do evento. Presentes para dialogar com os participantes: Amir Haddad, Vitor Pordeus, Heloisa Buarque de Hollanda e Professor Francisco Gregório Filho. Após muita música e intervenções poéticas, sentamos para escutar os convidados, pois como foi dito, é bom tocar os tambores, mas é bom sentar para dialogar, avaliar, entender o que está acontecendo. Nem muito um lado, nem muito o outro, equilíbrio, pois se não tiver caímos a loucura. Loucura é falta de equilíbrio, mental, carnal, emocional e espiritual. A arte é um instrumento poderoso de cura e de prevenção de doença. É saúde.

Numa cidade como o Rio de Janeiro, como exemplo, que utiliza a força para manter o que seria a ordem, vem a arte para desestabilizar essa ordem e mostrar uma possibilidade de pensamento e de uma forma de organização que ajuda a sanear a cidade com os melhores sentimentos. “A arte é a desordem que ajuda a reorganizar o mundo, não pode ser diferente... – Amir Haddad”. Realizar um encontro que fale de arte pública dentro de uma instituição de saúde pública, ainda mais um hospício, estando hospedados juntos como os internos, tendo contato com eles, nos força a entrar em contato e ter relação com esse espaço e ver que existe uma outra forma de proceder e contribuiu para reorganizar esse  mundo, mostrando um outro pensamento em contraponto com o pensamento vigente, permeado de camisas de força e remédios, como se só isso fosse possibilidade.

A cidade do Rio, como outras, estão doentes. As pessoas se encontram enlouquecidas, vítimas deste cotidiano imposto, não conquistado. Não precisamos estar no estágio em que se encontram os internos do Instituto Nise da Silveira para entendermos a loucura em que vivemos, ainda mais no período “de plena decadência em que vivemos - Amir Haddad”.

Falar de arte Pública é falar de saúde pública, de ações que contribuem para que políticas públicas para a saúde, educação e para a arte sejam construídas e estabelecidas. Não tem mais como continuar com as políticas atuais que se dizem públicas nos rótulos, mas que são privadas em suas linhas.  Existe um clamor por uma nova organização social que tem romper com as “camisas de força”, romper com as “cercas”, transgredir a  ordem estabelecida para enveredar uma ordem pública pública.

E assim como começamos, terminamos este primeiro dia, tocando, cantando e dançando, agradecendo aos deuses e orixás pelo inicio do encontro, pela presença dos convidados, dos participantes e pela lua cheia que iluminou a noite deste primeiro dia.

Herculano Dias


Segue texto distribuído no Evento Ocupa Nise 2014

A cerca estimula a desordem
Ordem Pública – Desordem Pública
           Qual é a ordem das coisas? Está tudo em ordem segundo uma lógica milenar, ancestral e inevitável?  Qual a ordem da natureza? Qual é a ordem, por exemplo, da física quântica?
           A Ordem numa escola, pública ou privada, será a mesma ordem de uma penitenciária?   Os alunos que se perfilam em ordem  para entrar ou sair de suas células-salas, estão cumprindo a mesma ordem dos prisioneiros  entrando ou saindo de suas celas-isolamento para o pátio de recreação?  Não haverá nenhuma diferença? Qual a diferença? Um corredor de passagem ladeado por celas-isolamento não se parece com um corredor ladeado por células-salas de aula?
          A arquitetura estabelece a ordem ou é a ordem que define  seus espaços de acordo com os valores humanos, ideológicos que a produzem?
           Qual a diferença possível entre uma cidade do sec. XIX e uma do sec. XXI?  Conseguiremos algum dia abandonar o sec. XIX quando tudo se intensificou e nos organizamos de uma maneira diferente?  Procurar uma nova ordem?  Mas será possível se encontrar uma possível nova ordem, mais justa e mais humana, sem  passarmos por momentos muitas vezes dolorosos, de desordem?
Será possível uma nova ordem nascer da ordem vigente (dominante)? Ou somente a desordem  poderá abrir horizontes para uma nova ordem?
É possível uma nova ordem sem desordem?
          As manifestações públicas que abalaram o Brasil, faz pouco tempo, estabeleceram um nível variado de desordens. As reivindicações se faziam ouvir ou  notar.  Obviamente  se percebia nos movimentos uma insatisfação com a ordem vigente, e um anseio por uma nova ordem. Novas possibilidades de ordenação ou organização social.

           Aquela desordem aparente tinha em seu interior germes de novas ordens.  Que sem estas manifestações não poderiam ser vistas nem ouvidas. Era a desordem que dava à nova ordem desejada alguma visibilidade.
           Foram, porem, tratadas como desordem, simplesmente. Se levantou um clamor nacional pelo pronto estabelecimento da ordem. Ninguém suporta a desordem por muito tempo.  E as forças encarregadas da manutenção da ordem, da ordem pública, foram chamadas a cumprir seu papel de mantedoras do “Status quo”.  Tudo foi abafado. A ordem, finalmente, foi re estabelecida. E nenhuma das reivindicações manifestadas nas ruas foi até agora atendida. Nenhuma. Jaz sobre ela o império solene da ordem.  Que veio acompanhada de nenhum progresso.
Na  “desordem” nosso coração se expressa, manifesta. Desejos ocultos e reprimidos aparecem e nos tomam de assalto. Sem antes mesmo analisarmos sua natureza, nós os sufocamos e procuramos esquecê-los. Em nome de que?  Da ordem.  Da  ordem pública e até  mesmo da ordem pessoal, subjetiva. Todos nós sabemos, que  lidamos com o movimento e a transformação,  que confusão ou caos, ás vezes,  se instalam em nossas mentes e corações  sempre que uma nova idéia,  ordem, pensamento vai se manifestar.
Brecht lembrava: a lua nova é sempre precedida de uma noite escura. Abafar a desordem  sem ouvir seus anseios  é o pior tipo  de totalitarismo  a que  estamos sujeitos no mundo que escolhemos  e criamos para viver.
Mantida prisioneira da ordem nenhuma verdade nova se revela.

A Arte e a Ordem
          A arte é a possibilidade de manifestação da nossa desordem interior. É também, a forma mais profunda de re - organizar o nosso  mundo. Não é a ordem do mundo que organiza a arte, mas sim a desordem da arte que reorganiza o mundo.

É  a transgressão que possibilita a evolução, uma nova ordem para as coisas.   Assim, o conceito tradicional e repressivo de “ordem pública” não é o melhor valor social para lidar com as questões das  Artes Públicas, que se realizam nas ruas e nos espaços públicos ,   de uso liberado para a  população.
            Hoje sabemos perfeitamente que aquele  policial que ali está é um representante  da ordem pública  e está  ali para mantê-la. Assim como sabemos , também, que  aquele artista ou grupo que está se  apresentando em praça publica parece ser um foco permanente  de desordem e arruaça.    Tanto que os policias ficam logo atentos.  Isto quando não agridem, ameaçam,  espancam os desordeiros que atrapalham a ordem pública.  Para lidar com estes artistas públicos e respeitar o seu trabalho seria preciso reconsiderar o conceito vigente de ordem publica, e, entender que, estes artistas  ocupando estes espaços talvez possam fazer mais pela ordem publica que os agentes de  plantão espalhados pela cidade,  reprimindo todo e qualquer tipo de manifestação que poderia  vir a incomodar os donos do mundo ordenado desta maneira.

           Será preciso reconhecer que  existe  uma  forma superior de organização social que poderá modificar o conceito em uso de “ordem pública.   As “Artes Públicas” tem esta função desde a mais  remota ancestralidade do ser humano. Arte, medicina, religião, tudo junto ajudou nossos antepassados a avançarem.  Nas sociedades modernas, este papel e esta função das artes foram se modificando e desaparecendo por completo, ficando restritos  aos espaços fechados e aos que  a eles têm acesso.  Até chegarmos no impasse em que se encontra a produção cultural diante da  regulamentação do mercado.    E a arte que poderia organizar o mundo, como as festas, e celebrações, religiosas ou não, passa a ser substituída nos  grandes  aglomeramentos humanos pela policia. 
            Achamos que não podemos prescindir de policia nas ruas. E das artes nas ruas? Podemos? Não será possível pensar uma cidade onde o lúdico, prazeroso, a convivência urbana de qualidade, o humor, a criatividade, a poesia e a beleza dividissem com os “representantes” da ordem  a  organização e a reorganização permanente do mundo? 
Uma nova ordem pública para uma possível  Arte – Pública.
           São  muitos os artistas  que escolheram os espaços públicos para se manifestar, que  no entanto se encontram sufocados,  reprimidos  pela necessidade da manutenção da ordem  a qualquer custo. 
               Se não houver espaço para a  “desordem” que reorganiza o mundo constantemente, teremos muitas dificuldades em  pensarmos um modelo novo de cidade e convivência urbana que nos tire do sufoco em que  vivemos hoje em nossas cidades, grandes ou pequenas.
              Por isso, achamos que uma boa política Pública para as Artes públicas, deveria também colocar em questão a “Ordem pública” tal qual a entendemos até agora.
             Estimular as Artes Públicas, poderá  modificar nosso conceito do que é “Ordem Pública”.
             O diálogo com as Secretarias de Cultura e da Ordem Pública deveria  ser permanente, sem  predominância,  é obvio, do  pensamento policial.
“ Tudo está no seu lugar, graças a Deus, graças a Deus. Não devemos esquecer de dizer, graças a Deus, graças a Deus!”

AMIR HADDAD

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