Alexandre Falcão de Araújo[1]
Caro
amigo branco, branco como eu, talvez descendente de negros, como eu,
Caras
amigas e amigos, negras e negros,
CarXs
amigXs,
Recentemente
fui assistir ao corajoso e belo espetáculo “Todo camburão tem um pouco de navio
negreiro”, do grupo Nóis de Teatro, vindo diretamente das “quebradas” de
Fortaleza para a Caixa Cultural, na Sé, no centro de São Paulo, no contexto do
mês e do dia da Consciência Negra.
Foto Luiz Alves |
Naquele
dia, a metade do público era negra, homens e mulheres, jovens e velhos. Para
eles, transparecia nos olhares e nas reações o reconhecimento das histórias que
ali estavam sendo encenadas. A trajetória de um alegórico, mas também muito
concreto, menino negro de favela, Natanael, que, nascido em meio à miséria,
busca formas de sobreviver a toda ordem de violência (fome, desemprego,
agressões). Esse anti-herói, após muitas agruras, encontra no trabalho como
policial militar, um caminho
profissional para galgar alguns poucos degraus na escala social.
Nos
olhares dos não-negros, brancos, orientais, um misto de admiração, incômodo,
não-entendimento, transparecia. Sim, estávamos diante de um elenco negro que,
de forma muito inteligente, se vale de uma miríade de referências do campo
teatral, da cultura afro-brasileira e da cultura negra pop internacional, para
nos mostrar (alguém aí ainda não percebeu?) a perversa desigualdade
étnico-racial estruturante de nossa sociedade.
Sim, nós conhecemos essa história, mas geralmente ela foi contada pela
branquitude. Agora, a perspectiva é outra. Como negar o racismo e a violência contra a população negra se
quem nos esfrega isso na cara é justamente a juventude negra que sente isso na
pele, no bairro, no cotidiano, em suas trajetórias de vida?
Aqui vale um parêntese de cunho
político-religioso: pra quem é de terreiro e ainda não compreendeu o que a
diáspora africana e o racismo estrutural tem a ver com sua expressão religiosa,
por amor de Oxalá, assista ao Nóis de Teatro e busque dialogar com o importante
referencial que eles nos trazem. Indo de Castro Alves a Marcelo Yuka
(compositor da canção homônima ao espetáculo), o grupo nos mostra a violência
do embranquecimento, a que foram acometidos, por exemplo, Michael Jackson e até
Iemanjá (essa última, em sua representação, obviamente).
A encenação passeia por distintas formas
teatrais, entre o registro interpretativo dramático que, por vezes, levou ao
choro homens e mulheres negros do público; passando por elementos de teatro
ritual (na relação com as, pelo grupo chamadas, mitologias
africanas dos Orixás); teatro de animação (ou de bonecos); e um muito bem
executado teatro narrativo (ou teatro épico), ora mais afeito à agitação
política (chamada de agit-prop, no contexto artístico), ora mais próximo às
peças de aprendizagem do mestre alemão Bertolt Brecht.
Utilizando-se de diversas ferramentas, a trupe
cearense levanta questões, emociona e provoca reflexões em torno de temas
complexos como o extermínio da juventude negra, a criminalização das drogas, a
militarização da polícia e a brutal desigualdade social, com recorte racial,
que é característica de nosso país e, em grande medida, origina os problemas
anteriormente referidos. Remetendo-se explicitamente ao mestre alemão, o grupo
alerta: “não tomemos essa realidade como natural!”. E, mais ainda,
pede que tomemos posição, pois,
como disse a filósofa e militante, Angela
Davis, “numa sociedade racista não
basta não ser racista. É necessário ser antirracista”.
Foto Luiz Alves |
Entre vários dos belos momentos do espetáculo,
destacarei dois: Nossa Senhora cantando “Redemption Song”, de Bob Marley, e o
jogo do elenco com os dois seguranças da Caixa Cultural, ambos negros, que
acompanhavam a apresentação. Os artistas conseguem conquistar uma leve risada
de um deles, muito sóbrio, e arrancam gargalhadas do outro, extremamente
envolvido com a experiência teatral.
Em termos técnicos, o dramaturgismo do
espetáculo – sistematizado por Altemar Di Monteiro – é muito bem construído. A
direção musical de Maurício Rodrigues também saltou aos meus olhos e ouvidos,
pois as canções e trilha do espetáculo encantam, denunciam e, às vezes, também
nos distanciam do senso comum, entremeadas pelo que chamamos no teatro como
quebra épica.
Parcela do figurino e dos elementos cenográficos,
poderiam ser fruto de novas pesquisas, para buscar soluções mais inventivas,
porém, outra parte, como os bonecos, sintetiza em
seus traços a dor e a beleza da narrativa apresentada pelo grupo. Na temporada
na Caixa Cultural, foi preciso adaptar o espaço de encenação, uma vez que o
espetáculo originalmente é apresentado na rua, mas, por questões burocráticas,
em São Paulo foi feito em espaço alternativo fechado. Isso talvez tenha levado
o elenco, em alguns momentos, a registros interpretativos mais intimistas e
dramáticos, que nem sempre estiveram condizentes com a força da encenação. Por
outro lado, atores como Henrique Gonzaga e Kelly Enne Saldanha, no ato final,
destacam-se ao explorar o registro cômico, se divertem em cena e geram muitas
risadas (mesmo que o riso seja, muitas vezes, incômodo, dada a natureza do que
estava sendo representado), durante a encenação do Julgamento.
Enfim, “cantando pra subir”, entre “tiro,
porrada e bomba”, “axé, defumação e gira”, o Nóis de Teatro apresenta uma bela
e necessária obra, que me instigou a tecer esse texto, híbrido de leitura
crítica e crônica-manifesto. Por isso, aos brancos e às brancas proponho: para
combater o racismo, precisamos também deliberadamente buscar conhecer a cultura
afro-brasileira em seu sentido mais amplo, pra entender nosso lugar de
privilégio e não silenciar/negar/desmerecer a luta do povo negro. Às irmãs
negras e aos irmãos negros, quem
ainda não conhece, vale muito a pena conhecer o trabalho dessa galera de
Fortaleza e ampliar as referências de resistência cultural negra no campo
teatral, junto ao Coletivo Negro, Os Crespos, Filhos da Dita, Clariô, Bando de
Teatro Olodum, Nata, ao legado de Abdias do Nascimento e junto a tantos outros
grupos e coletivos que trazem a negritude no cerne de sua criação artística e
no horizonte de suas lutas políticas.
[1]
Ator, arte-educador e pesquisador teatral. Professor do Curso de Licenciatura
em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), coordenador do grupo de
trabalho Artes Cênicas na Rua, da Associação Brasileira de Pesquisa e
Pós-graduação em Artes Cênicas (ABRACE) e articulador da Rede Brasileira de
Teatro de Rua (RBTR).
Nenhum comentário:
Postar um comentário