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sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Caro povo branco, não deixe de ver teatro negro!


Alexandre Falcão de Araújo[1]

           Caro amigo branco, branco como eu, talvez descendente de negros, como eu,
           Caras amigas e amigos, negras e negros,
           CarXs amigXs,

       Recentemente fui assistir ao corajoso e belo espetáculo “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, do grupo Nóis de Teatro, vindo diretamente das “quebradas” de Fortaleza para a Caixa Cultural, na Sé, no centro de São Paulo, no contexto do mês e do dia da Consciência Negra.
Foto Luiz Alves
         Naquele dia, a metade do público era negra, homens e mulheres, jovens e velhos. Para eles, transparecia nos olhares e nas reações o reconhecimento das histórias que ali estavam sendo encenadas. A trajetória de um alegórico, mas também muito concreto, menino negro de favela, Natanael, que, nascido em meio à miséria, busca formas de sobreviver a toda ordem de violência (fome, desemprego, agressões). Esse anti-herói, após muitas agruras, encontra no trabalho como policial militar, um caminho profissional para galgar alguns poucos degraus na escala social.
          Nos olhares dos não-negros, brancos, orientais, um misto de admiração, incômodo, não-entendimento, transparecia. Sim, estávamos diante de um elenco negro que, de forma muito inteligente, se vale de uma miríade de referências do campo teatral, da cultura afro-brasileira e da cultura negra pop internacional, para nos mostrar (alguém aí ainda não percebeu?) a perversa desigualdade étnico-racial estruturante de nossa sociedade.  Sim, nós conhecemos essa história, mas geralmente ela foi contada pela branquitude. Agora, a perspectiva é outra. Como negar o racismo e a violência contra a população negra se quem nos esfrega isso na cara é justamente a juventude negra que sente isso na pele, no bairro, no cotidiano, em suas trajetórias de vida?

Aqui vale um parêntese de cunho político-religioso: pra quem é de terreiro e ainda não compreendeu o que a diáspora africana e o racismo estrutural tem a ver com sua expressão religiosa, por amor de Oxalá, assista ao Nóis de Teatro e busque dialogar com o importante referencial que eles nos trazem. Indo de Castro Alves a Marcelo Yuka (compositor da canção homônima ao espetáculo), o grupo nos mostra a violência do embranquecimento, a que foram acometidos, por exemplo, Michael Jackson e até Iemanjá (essa última, em sua representação, obviamente).
                A encenação passeia por distintas formas teatrais, entre o registro interpretativo dramático que, por vezes, levou ao choro homens e mulheres negros do público; passando por elementos de teatro ritual (na relação com as, pelo grupo chamadas, mitologias africanas dos Orixás); teatro de animação (ou de bonecos); e um muito bem executado teatro narrativo (ou teatro épico), ora mais afeito à agitação política (chamada de agit-prop, no contexto artístico), ora mais próximo às peças de aprendizagem do mestre alemão Bertolt Brecht.
                Utilizando-se de diversas ferramentas, a trupe cearense levanta questões, emociona e provoca reflexões em torno de temas complexos como o extermínio da juventude negra, a criminalização das drogas, a militarização da polícia e a brutal desigualdade social, com recorte racial, que é característica de nosso país e, em grande medida, origina os problemas anteriormente referidos. Remetendo-se explicitamente ao mestre alemão, o grupo alerta: “não tomemos essa realidade como natural!”. E, mais ainda, pede que tomemos posição, pois, como disse a filósofa e militante, Angela Davis, “numa sociedade racista não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”.
Foto Luiz Alves
                Entre vários dos belos momentos do espetáculo, destacarei dois: Nossa Senhora cantando “Redemption Song”, de Bob Marley, e o jogo do elenco com os dois seguranças da Caixa Cultural, ambos negros, que acompanhavam a apresentação. Os artistas conseguem conquistar uma leve risada de um deles, muito sóbrio, e arrancam gargalhadas do outro, extremamente envolvido com a experiência teatral.
                Em termos técnicos, o dramaturgismo do espetáculo – sistematizado por Altemar Di Monteiro – é muito bem construído. A direção musical de Maurício Rodrigues também saltou aos meus olhos e ouvidos, pois as canções e trilha do espetáculo encantam, denunciam e, às vezes, também nos distanciam do senso comum, entremeadas pelo que chamamos no teatro como quebra épica.
                Parcela do figurino e dos elementos cenográficos, poderiam ser fruto de novas pesquisas, para buscar soluções mais inventivas, porém, outra parte, como os bonecos, sintetiza em seus traços a dor e a beleza da narrativa apresentada pelo grupo. Na temporada na Caixa Cultural, foi preciso adaptar o espaço de encenação, uma vez que o espetáculo originalmente é apresentado na rua, mas, por questões burocráticas, em São Paulo foi feito em espaço alternativo fechado. Isso talvez tenha levado o elenco, em alguns momentos, a registros interpretativos mais intimistas e dramáticos, que nem sempre estiveram condizentes com a força da encenação. Por outro lado, atores como Henrique Gonzaga e Kelly Enne Saldanha, no ato final, destacam-se ao explorar o registro cômico, se divertem em cena e geram muitas risadas (mesmo que o riso seja, muitas vezes, incômodo, dada a natureza do que estava sendo representado), durante a encenação do Julgamento.
                Enfim, “cantando pra subir”, entre “tiro, porrada e bomba”, “axé, defumação e gira”, o Nóis de Teatro apresenta uma bela e necessária obra, que me instigou a tecer esse texto, híbrido de leitura crítica e crônica-manifesto. Por isso, aos brancos e às brancas proponho: para combater o racismo, precisamos também deliberadamente buscar conhecer a cultura afro-brasileira em seu sentido mais amplo, pra entender nosso lugar de privilégio e não silenciar/negar/desmerecer a luta do povo negro. Às irmãs negras e aos irmãos negros, quem ainda não conhece, vale muito a pena conhecer o trabalho dessa galera de Fortaleza e ampliar as referências de resistência cultural negra no campo teatral, junto ao Coletivo Negro, Os Crespos, Filhos da Dita, Clariô, Bando de Teatro Olodum, Nata, ao legado de Abdias do Nascimento e junto a tantos outros grupos e coletivos que trazem a negritude no cerne de sua criação artística e no horizonte de suas lutas políticas.


[1] Ator, arte-educador e pesquisador teatral. Professor do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), coordenador do grupo de trabalho Artes Cênicas na Rua, da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas (ABRACE) e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR).

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