Adailtom Alves Teixeira[1]
Não
há dúvida que uma das maiores especificidades do teatro de rua é o próprio
espaço em que ele se coloca: a rua. Rua
aqui significa todo local apto a receber espetáculos, como praças, parques,
assentamentos, comunidades ribeirinhas e ruas propriamente ditas. Por isso mesmo,
estes locais devem influenciar na estética dos grupos, seja de maneira
plástica, cenográfica, sonora etc., levando-os a inseri-los ou recusá-los nos
espetáculos de forma consciente. É fundamental levar em consideração a geografia
espacial urbana. A cidade, com tudo que há nela, prédios, monumentos,
esculturas, fachadas, entre outros, pode vir a ser, dentro de um espetáculo,
cenário, personagem, elemento cênico e não apenas o local da representação.
Como nos lembra o geógrafo Milton Santos, “os objetos, força inanimada, não são
outra coisa que o veículo das relações entre os homens” (2000, p. 51). Assim, a
cidade com seus elementos, podem oferecer-se como objetos estéticos e
mediadores das relações humanas, no qual o teatro de rua é um dos
facilitadores.
Não
podemos esquecer que quando um grupo se coloca no espaço público aberto ele
está rompendo com algo, está transgredindo-o, já que a rua foi pensada para
passagem de carros e pedestres, não para a fruição das artes. E mesmo as praças
têm abandonado seu conceito de convivência humana, com seus corredores por onde
as pessoas devem transitar, não sendo reservado nenhum espaço que possa abrigar
uma manifestação artística, com exceção de uma ou outra praça, retirando de
cidadãos e cidadãs, o que Milton Santos chamou de “direito ao entorno” no seu
livro O espaço do cidadão (2000).
Colocar-se
no espaço público aberto é transgredir e ressignificar, tornando-os locais de
fruição de arte, fazendo com que o espectador deixe de ser um passante e adquira
a condição de espectador. Por isso mesmo o teatro de rua se conflita com as
instituições reguladoras, já que estas devem “zelar” e fiscalizar para que seu
uso venha ser “adequado”: escoadouro do capital.
Não
podemos esquecer que cada época teve e tem seu espaço de representação em acordo
com a sociedade dominante. Portanto, a rua não é, do ponto de vista artístico, o
espaço da classe dominante, daí a transgressão do teatro de rua, seu conflito
com as instituições e a sua condição de marginalidade.
Podemos afirmar também que o
conflito com as instituições se dar pela valorização do privado em detrimento
do que é público na sociedade contemporânea. Nessa sociedade individualista, que
nos dita a todo momento a não confiarmos em ninguém e assim vamos tornando cada
vez mais deficitárias as relações humanas, os espaços públicos vão perdendo sua
importância de convívio, perdemos, assim, a relação com o/a outro/a.
Não
esqueçamos, ainda, que dentro de uma mesma cidade os espaços têm valores
diferenciados, ou seja, os bairros e seus moradores não têm a mesma igualdade
social, e que, portanto, o teatro não pode ignorar essa realidade. E o grupo,
ao escolher determinado lugar, território ou pedaço para desenvolver seus
trabalhos não pode esquecer que o mesmo recebe influências econômicas e
culturais. Ou seja, o espaço tem significado, portanto pode ser lido e nem
sempre o seu significado condiz com a imagem que nos é vendida. Por isso a
criação de um espetáculo tendo como foco o lugar, ou o desenvolvimento de um
projeto mais amplo em uma dada região, devem ser considerados pelo grupo
teatral. E mais uma vez, cabe lembrar, isso pode levar o coletivo a um maior enfretamento
com as instituições que “zelam” pelo espaço, realçando sua condição marginal.
Foi esse enfrentamento e essa marginalização, além do engajamento político por
parte de diversos grupos teatrais de rua, que levou John Downing (2004) a
colocá-lo como mídia radical alternativa, fazendo do teatro de rua uma forma
privilegiada de luta contra as estruturas de poder.
Por
tudo isso, fica claro a importância dos fazedores em conhecerem e compreenderem
sua cidade, sua geografia e sua estrutura urbana, pois a paisagem, os monumentos
e os lugares devem adentrar os espetáculos, mas todos eles têm significados
específicos. A fachada de uma instituição financeira, uma igreja ou um conjunto
de prédios populares têm significados históricos, sociais, econômicos e
culturais.
A
grandiosidade do teatro de rua está nessas imensas possibilidades criativas no
uso do espaço da cidade, pois “a condição espacial é a essência do próprio
teatro de rua” (BRITO, 2004, p. 17). Um espetáculo na rua pode oferecer ao
espectador diversas formas de ver e de se relacionar com sua cidade. Sendo a
rua é polimorfa, cria possibilidades cênicas também polimorfas.
O
teatro de rua possibilita uma relação mais aberta entre atores e espectadores,
já que não há diferença de níveis entre os mesmos, todos estão no mesmo patamar.
E é este fator que faz com que o espetáculo na rua receba tanta interferência,
mas, ele próprio, não esqueçamos, é uma interferência no espaço. Penso que no
processo de retomada desses espaços, no período pós-pandêmico, essa modalidade
teatral será fundamental na reconstrução dos afetos de cidadãos e cidadãs, podendo
levar o passante a sonhar e a refletir sobre sua condição de sujeito histórico dentro
da cidade, pois diferentemente da mercadoria de rápido consumo, a arte precisa
de “um tempo de ressonância” (CAIAFA, 2000, p.23), isto é, o teatro não se
esgota no momento da apresentação, demanda um tempo de reflexão para ser
digerido. E ao refletir ou recontar o vivido frente a um espetáculo, é o
cidadão que passa a ser o criador, pois sua recriação não é mais o mesmo
espetáculo presenciado, já é uma “mutação subjetiva”, a “pós-vida” da arte,
impressa por uma marca singular, que irá “engajar outras singularidades” (CAIAFA,
2000, p. 68).
Bibliografia
BRITO,
Rubéns José Souza. Teatro de Rua.
Princípios, Elementos e Procedimentos: a contribuição do Grupo de Teatro
Mambembe (SP). 2004. 226 f. Dissertação (Livre Docente) – Universidade
Estadual de Campinas, Campinas-SP.
CAIAFA,
Janice. Nosso Século XXI: notas sobre
arte, técnica e poderes. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
DOWNING,
John D. H. Mídia Radical: rebeldia nas
comunicações e movimentos sociais. Trad.: Silvana Vieira. 2ª ed. São Paulo:
SENAC, 2004.
SANTOS,
Milton. O Espaço do Cidadão. 5ª ed.
São Paulo: Studio Nobel, 2000.
[1]
Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia;
doutorando em Artes pelo instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista
(Unesp), mestre em Artes pela mesma instituição, articulador e um dos
fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua, ator, diretor e integrante do
Teatro Ruante. Autor do livro Teatro de
Rua: identidade, território pela Giostri Editora (2020).
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