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domingo, 29 de agosto de 2021

Teatro de rua: rompimento e ressignificação*

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

 

            Não há dúvida que uma das maiores especificidades do teatro de rua é o próprio espaço em que ele se coloca: a rua. Rua aqui significa todo local apto a receber espetáculos, como praças, parques, assentamentos, comunidades ribeirinhas e ruas propriamente ditas. Por isso mesmo, estes locais devem influenciar na estética dos grupos, seja de maneira plástica, cenográfica, sonora etc., levando-os a inseri-los ou recusá-los nos espetáculos de forma consciente. É fundamental levar em consideração a geografia espacial urbana. A cidade, com tudo que há nela, prédios, monumentos, esculturas, fachadas, entre outros, pode vir a ser, dentro de um espetáculo, cenário, personagem, elemento cênico e não apenas o local da representação. Como nos lembra o geógrafo Milton Santos, “os objetos, força inanimada, não são outra coisa que o veículo das relações entre os homens” (2000, p. 51). Assim, a cidade com seus elementos, podem oferecer-se como objetos estéticos e mediadores das relações humanas, no qual o teatro de rua é um dos facilitadores.

            Não podemos esquecer que quando um grupo se coloca no espaço público aberto ele está rompendo com algo, está transgredindo-o, já que a rua foi pensada para passagem de carros e pedestres, não para a fruição das artes. E mesmo as praças têm abandonado seu conceito de convivência humana, com seus corredores por onde as pessoas devem transitar, não sendo reservado nenhum espaço que possa abrigar uma manifestação artística, com exceção de uma ou outra praça, retirando de cidadãos e cidadãs, o que Milton Santos chamou de “direito ao entorno” no seu livro O espaço do cidadão (2000).

            Colocar-se no espaço público aberto é transgredir e ressignificar, tornando-os locais de fruição de arte, fazendo com que o espectador deixe de ser um passante e adquira a condição de espectador. Por isso mesmo o teatro de rua se conflita com as instituições reguladoras, já que estas devem “zelar” e fiscalizar para que seu uso venha ser “adequado”: escoadouro do capital.

            Não podemos esquecer que cada época teve e tem seu espaço de representação em acordo com a sociedade dominante. Portanto, a rua não é, do ponto de vista artístico, o espaço da classe dominante, daí a transgressão do teatro de rua, seu conflito com as instituições e a sua condição de marginalidade.

Podemos afirmar também que o conflito com as instituições se dar pela valorização do privado em detrimento do que é público na sociedade contemporânea. Nessa sociedade individualista, que nos dita a todo momento a não confiarmos em ninguém e assim vamos tornando cada vez mais deficitárias as relações humanas, os espaços públicos vão perdendo sua importância de convívio, perdemos, assim, a relação com o/a outro/a.

            Não esqueçamos, ainda, que dentro de uma mesma cidade os espaços têm valores diferenciados, ou seja, os bairros e seus moradores não têm a mesma igualdade social, e que, portanto, o teatro não pode ignorar essa realidade. E o grupo, ao escolher determinado lugar, território ou pedaço para desenvolver seus trabalhos não pode esquecer que o mesmo recebe influências econômicas e culturais. Ou seja, o espaço tem significado, portanto pode ser lido e nem sempre o seu significado condiz com a imagem que nos é vendida. Por isso a criação de um espetáculo tendo como foco o lugar, ou o desenvolvimento de um projeto mais amplo em uma dada região, devem ser considerados pelo grupo teatral. E mais uma vez, cabe lembrar, isso pode levar o coletivo a um maior enfretamento com as instituições que “zelam” pelo espaço, realçando sua condição marginal. Foi esse enfrentamento e essa marginalização, além do engajamento político por parte de diversos grupos teatrais de rua, que levou John Downing (2004) a colocá-lo como mídia radical alternativa, fazendo do teatro de rua uma forma privilegiada de luta contra as estruturas de poder.

            Por tudo isso, fica claro a importância dos fazedores em conhecerem e compreenderem sua cidade, sua geografia e sua estrutura urbana, pois a paisagem, os monumentos e os lugares devem adentrar os espetáculos, mas todos eles têm significados específicos. A fachada de uma instituição financeira, uma igreja ou um conjunto de prédios populares têm significados históricos, sociais, econômicos e culturais.

            A grandiosidade do teatro de rua está nessas imensas possibilidades criativas no uso do espaço da cidade, pois “a condição espacial é a essência do próprio teatro de rua” (BRITO, 2004, p. 17). Um espetáculo na rua pode oferecer ao espectador diversas formas de ver e de se relacionar com sua cidade. Sendo a rua é polimorfa, cria possibilidades cênicas também polimorfas.

            O teatro de rua possibilita uma relação mais aberta entre atores e espectadores, já que não há diferença de níveis entre os mesmos, todos estão no mesmo patamar. E é este fator que faz com que o espetáculo na rua receba tanta interferência, mas, ele próprio, não esqueçamos, é uma interferência no espaço. Penso que no processo de retomada desses espaços, no período pós-pandêmico, essa modalidade teatral será fundamental na reconstrução dos afetos de cidadãos e cidadãs, podendo levar o passante a sonhar e a refletir sobre sua condição de sujeito histórico dentro da cidade, pois diferentemente da mercadoria de rápido consumo, a arte precisa de “um tempo de ressonância” (CAIAFA, 2000, p.23), isto é, o teatro não se esgota no momento da apresentação, demanda um tempo de reflexão para ser digerido. E ao refletir ou recontar o vivido frente a um espetáculo, é o cidadão que passa a ser o criador, pois sua recriação não é mais o mesmo espetáculo presenciado, já é uma “mutação subjetiva”, a “pós-vida” da arte, impressa por uma marca singular, que irá “engajar outras singularidades” (CAIAFA, 2000, p. 68).

 

Bibliografia

BRITO, Rubéns José Souza. Teatro de Rua. Princípios, Elementos e Procedimentos: a contribuição do Grupo de Teatro Mambembe (SP). 2004. 226 f. Dissertação (Livre Docente) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP.

CAIAFA, Janice. Nosso Século XXI: notas sobre arte, técnica e poderes. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

DOWNING, John D. H. Mídia Radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. Trad.: Silvana Vieira. 2ª ed. São Paulo: SENAC, 2004.

SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. 5ª ed. São Paulo: Studio Nobel, 2000.


*Texto originalmente publicado na Revista Confradinho nº 2, junho/2021, uma publicação da Confraria da Paixão.

[1] Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; doutorando em Artes pelo instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Artes pela mesma instituição, articulador e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua, ator, diretor e integrante do Teatro Ruante. Autor do livro Teatro de Rua: identidade, território pela Giostri Editora (2020).

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