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sexta-feira, 20 de junho de 2025

A beleza inútil da Arte: regeneração humana em tempos de exaustão

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Somos seres que necessitam da beleza tanto quanto do alimento e do abrigo. A arte, em suas inúmeras manifestações, está presente em todas as sociedades humanas desde os tempos mais remotos. Pinturas rupestres, danças tribais, cantos ritualísticos, esculturas, narrativas orais — todas essas expressões revelam uma verdade fundamental: o impulso estético é constitutivo da experiência humana. Há, segundo Fischer (1973), uma necessidade de complementarmos nossas experiências, pois, ao sabermos que não somos únicos, temos o desejo de complemento no/a outro/a. Não vivemos apenas para sobreviver; somos seres desejantes, vivemos para sentir, sonhar e compartilhar significados — e é justamente isso que a arte nos proporciona, aí estaria uma de suas funções: a capacidade de vivermos uma experiência pela via estética.

Diferentemente dos objetos criados para fins práticos, a arte carrega em si um traço essencial: a não utilitariedade. Mesmo quando inserida em mercados que transformam criações em mercadorias altamente lucrativas, a essência da arte não está no lucro. Sua função não é funcionar, mas emocionar, inquietar, interrogar e, sobretudo, provocar. Essa ausência de finalidade prática é o que a torna tão poderosa. Vilém Flusser (2015), apresenta um outro aspecto da arte, que dialoga com que estamos defendendo: a capacidade de moldar as nossas experiências. O autor cita que no medievo tardio o Romance da Rosa passou a ser um modelo de amor romântico, adotado pela classe social nascente, a burguesia, a experiência foi depois universalizada, aos poucos, ao longo dos séculos e disseminados até hoje pela TV e pelos filmes estadunidenses, mas não só. Nas suas palavras: “O exemplo também mostra do que se trata na arte. Trata-se da elaboração e da comunicação de modelos para nossas experiências concretas do mundo. Toda experiência é modelada, programada pela arte. Todos os nossos prazeres e tristezas, todas as experiências das cores, dos sons, das formas, das tessituras, dos perfumes que nós temos, todo sentimento de amor e de raiva têm um modelo artístico. Nosso mundo é estruturado não somente pela nossa informação genética, mas também por nossa informação estética. Onde não há modelo estético, estamos ‘anestesiados’ = nós não temos experiência nenhuma. Nós dependemos da arte para poder perceber o mundo” (Flusser, 2015, p. 43). Mas, na lógica capitalista, tudo precisa servir para algo, gerar capital ou ao menos justificar seu uso com eficiência. Nesse sentido, os aspectos da arte aqui levantados, aparecem como gestos subversivos nesse sistema: uma oferenda ao sensível, ao gratuito, ao que escapa da lógica da reprodução incessante.

Davi Kopenawa (2015), xamã Yanomami e uma das grandes vozes indígenas do Brasil contemporâneo, tem razão ao nomear os não indígenas como o “povo da mercadoria”. Essa expressão, ao mesmo tempo poética e crítica, aponta para uma doença civilizatória: a transformação de tudo em objeto de troca. Na sanha de acumular e explorar, o povo da mercadoria destrói florestas, rios, montanhas e saberes ancestrais. Envenena o solo e a si mesmo. Corta árvores para plantar soja, seca nascentes para extrair ouro, devasta ecossistemas para produzir mais mercadorias, porém, perdem a capacidade de sonhar, e nisso vão se desumanizando e perdendo sua conexão mais profunda com a mãe terra.

A destruição ambiental não é apenas física; é também simbólica. O adoecimento do planeta está profundamente ligado ao nosso adoecimento psíquico. A ansiedade, o esgotamento mental, a sensação de vazio e a depressão que assolam milhões de pessoas – que Byun-Chul Han (2017) chama de sociedade do cansaço –, são, em grande parte, sintomas de um modo de vida que nos desliga da beleza, da contemplação, do tempo lento e da partilha sensível — valores fundamentais da experiência artística.

É por isso que precisamos da arte. Mais do que nunca, de todas as artes. Das que cantam, dançam, dramatizam, esculpem, bordam, esculpem o barro, improvisam com o corpo, das que narram o mundo visível e das que criam outros mundos. Elas nos espelham, refletem e refratam nossa realidade, ampliam a percepção e desorganizam as certezas. A arte não apenas embeleza a vida — ela nos oferece outros modos de habitá-la, inclusive outras maneiras de resistir, especialmente as artes que, de modo crítico, estão comprometidas com um mundo mais justo e igualitário.

Paradoxalmente, é justamente naquilo que o capitalismo considera “inútil” que reside a força mais profunda da arte. Uma cerâmica moldada à mão, um instrumento feito de madeira ancestral, uma peça de teatro encenada na praça, uma poesia que ressoa no corpo — essas experiências não têm finalidade prática imediata, e é por isso que nos tocam tão fundo. Elas não servem a um propósito utilitário, mas a um propósito humano. Tais características, num mundo regido pela lógica da eficiência e do lucro, é revolucionário.

A arte, em sua suposta “inutilidade”, é medicina. Não é chavão afirmar que a arte cura. Ela nos lembra que somos mais do que engrenagens de produção, que nosso valor não se mede pela produtividade, por isso nos regenera. Ela nos reconecta com o espanto, com a memória, com a possibilidade do afeto e da comunhão. Em tempos de colapso ambiental e psíquico, a arte é imprescindível — e pode nos salvar de nós mesmos ou de até onde nos levou o atual modo de produção. Evidente, que uma saída radical não se faz individualmente, mas é preciso nos reconectarmos socialmente, para tanto, mais uma vez precisamos de arte.

Assim, honremos sua “inutilidade”. Porque é nela que reside sua potência. Porque é dela que, ao revelar nosso aspecto mais humano, mais precisamos. Como afirma Michèle Petit, “O utilitário nunca basta. Talvez sejamos, antes de tudo, animais poéticos, pois os humanos criam obras de arte há mais de quarenta mil anos, bem antes de inventar a moeda ou a agricultura” (2024, p. 7).

Referências

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 4ª ed. Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

FLUSSER, Vilém. A arte: o belo e o agradável. In: IANINI, Gilson; GARCIA, Douglas; FREITAS, Romero (Orgs.). Artefilosofia: antologia de textos estéticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 42-46.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Trad.: Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. Trad.: Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cia das Letras, 2015.

PETIT, Michèle. Somos animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise. Trad.: Raquel Camargo. São Paulo: 34, 2024.



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp; graduado em História pela Universidade Cruzeiros do Sul; integrante do Teatro Ruante; autor dos livros Circo Teatro Palombar: somos periferia; potência criativa (Fala, 2024), Teatro de rua: identidade, território (Giostri, 2020); um dos fundadores e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

domingo, 18 de maio de 2025

As instituições não conseguem acompanhar o tempo das redes

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Vivemos imersos na videopolítica — ou videosfera, como denominou Beatriz Sarlo (1997) —, em que a imagem, o espetáculo e a instantaneidade moldam a forma como a política é percebida, praticada e consumida. As novas mídias digitais, impulsionadas pelas transformações tecnológicas, passaram a ocupar o espaço simbólico da vida pública. Nesse cenário, os acontecimentos políticos são apresentados como eventos espontâneos, desprovidos de mediações institucionais, criando a ilusão de que tudo se dá em tempo real, à vista de todos e sem filtros.

No entanto, essa aparente transparência carrega um paradoxo: quanto mais imediata e acessível a política parece, mais ela se afasta da complexidade real das instituições democráticas. Para alcançar visibilidade nas redes, os temas precisam ser convertidos em escândalos, fragmentados em cortes curtos, viralizáveis, emocionalmente carregados. É nesse ponto que a midiosfera — especialmente as redes sociais — se impõe como um espaço onde o não-mediado ganha status de verdade. A política, então, passa a operar por meio de efeitos e sensações, em detrimento da análise e da deliberação.

Imagem retirada da internet, disponível em: 
https://encr.pw/0finC. Acesso em: 18 maio 2025.

O discurso político se transforma, adotando um estilo coloquial, informal e performático. No Brasil, esse novo estilo não apenas invadiu o marketing eleitoral, mas contaminou também os parlamentos, dos níveis municipais ao Congresso Nacional. A videopolítica dessacraliza a política: desfaz suas formalidades, suas liturgias e seus rituais institucionais. Com isso, o político passa a se apresentar como uma figura comum, alguém "como qualquer um", que compartilha dos sentimentos e angústias do cidadão médio. Essa estratégia, contudo, é uma construção cênica: a máscara da simplicidade esconde o cálculo de performance.

Essa suposta proximidade entre representante e representado, ao invés de fortalecer a democracia, tende a substituí-la por um simulacro. A figura pública se torna um entertainer, e o espaço político se converte em palco de um reality show permanente. Importa menos a capacidade de articular políticas públicas do que a habilidade de engajar, emocionar e viralizar. O político eficaz, hoje, é aquele que domina as lógicas do star system, muito mais do que os trâmites do regimento interno de uma casa legislativa.

Nesse ambiente, prevalece um discurso simplificado, maniqueísta e emocional. A política, transformada em espetáculo, passa a operar com base na lógica do “causa e efeito imediato”. O tempo da reflexão e do debate é suprimido pelo tempo do hype. A efemeridade das redes impõe uma lógica de presente contínuo que esvazia o passado — fundamental para o aprendizado democrático — e inviabiliza a construção de futuros coletivos. Vive-se à mercê do algoritmo, na urgência do agora, numa sucessão de "acontecimentos sem qualidades".

A consequência desse processo é dupla: por um lado, a institucionalidade é desacreditada, vista como lenta, burocrática e ineficaz; por outro, se naturaliza a ideia de que a política eficiente deve seguir o modelo das redes — rápida, direta, emocional. É a despolitização da política travestida de engajamento. Já não basta registrar os fatos, é preciso fabricá-los para que sejam registrados. O que importa não é a política como processo, mas como performance. A frase de impacto, o corte perfeito, o vídeo de 30 segundos — tudo precisa caber no tempo de um reel.

Essa lógica transforma a democracia em uma arena de opiniões em que se diluem as fronteiras entre especialização e achismo. A ilusão da igualdade plena entre todos os emissores produz uma “democracia de opinião” na qual um jogador de futebol e um chanceler são tratados como equivalentes ao comentar temas complexos de política internacional. A desierarquização simbólica da política e da intelectualidade convive com uma reierarquização baseada em carisma digital, número de seguidores e capacidade de viralização.

As instituições, baseadas em processos longos, contraditórios e, muitas vezes, pouco visíveis, não conseguem competir com a velocidade da rede. Seus ritos e protocolos parecem antiquados diante da fluidez da comunicação digital. Mas é justamente essa lentidão que garante a segurança jurídica, o contraditório, a proteção das minorias e o respeito aos direitos. A crise de legitimidade das instituições, agravada pelo ambiente digital, põe em risco as bases da democracia representativa.

Ao revisitarmos os alertas de Beatriz Sarlo, percebemos que o que estava em jogo em 1997 — a escolha entre a política do show business ou a reconfiguração crítica da representação democrática — tornou-se ainda mais urgente. Hoje, a televisão cedeu lugar ao celular, mas a lógica do espetáculo se aprofundou. A praça pública foi substituída pelo feed de notícias. A política, muitas vezes, se resume a uma sucessão de "lacrações" e indignações fugazes.

A pergunta que resta é: ainda é possível fazer política fora da lógica da midiosfera? Para além da exceção de alguns parlamentares comprometidos com o debate qualificado, existe horizonte fora da política-espetáculo? É preciso recolocar em cena uma política que reconheça a importância da escuta, da divergência, da construção coletiva — e que aceite que nem tudo cabe em 15 segundos. A política que vale a pena não é a que gera cliques, mas a que transforma realidades.

 

Referências

SARLO, Beatriz. Sete hipóteses sobre a videopolítica. In: SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias. São Paulo: EdUSP, 1997.



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista; graduado em História pela Universidade Cruzeiro do Sul.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Idibal de Almeida Pivetta/César Vieira: um homem comprometido com sua gente e seu tempo histórico*

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

 

As chamadas práticas de liberdade de que falam tantos artistas, intelectuais, políticos, materializam-se tão organicamente na vida de Idibal Pivetta/César Vieira que não é possível separar um sujeito do outro e é impossível concebê-los dissociados do ético alimentando a existência humana, jurídica, estética.

Alexandre mate

 

          O advogado Idibal de Almeida Pivetta, nascido na cidade de Jundiaí em 1931, tornou-se desde muito cedo um apaixonado por samba e futebol; chegou, inclusive, a integrar o time do Paulista em sua cidade e quando passou a escrever peças teatrais, por meio do pseudônimo de César Vieira – devido à censura e repressão que imperava no Brasil –, ambas as manifestações estavam sempre presentes em sua dramaturgia. Tais gostos, é certo, levou-o a interessar-se por outras expressões populares, por isso gostava de afirmar que em seus espetáculos sempre havia alguma coisa de futebol, samba e religião.

Idibal Piveta/Cesár Vieira. Foto disponível em: 
https://memorialdaresistenciasp.org.br/pessoas/idibal-matto-pivetta/

A política também entrou cedo em sua vida, pois seu pai foi prefeito da cidade, porém, o administrador foi cassado pela ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945), período conhecido como Estado Novo. Desde cedo escutava as conversas em sua casa, quando outros políticos se reunia com seu pai. Depois, na juventude, militou no movimento estudantil, foi presidente de Centro Acadêmico e também da União Nacional dos Estudantes (UNE); mais tarde, formado em direito, se viu advogando para presos políticos no tempo da ditadura civil-militar (1964-1985). Como advogado conseguiu liberdade, dentre outros, para Augusto Boal, isso fez com que o criador do teatro do oprimido conseguisse sair do Brasil e pudesse se exilar na Argentina. O próprio César Vieira também chegou a ser preso em 1973, auge da repressão no Brasil, passando por alguns presídios ao longo de três meses.

Por este rápido preâmbulo, nota-se como a vida conduziu Idibal Pivetta à uma aproximação com as manifestações da gente brasileira e suas agruras; nele foi cultivado o gosto pela liberdade e pelo entendimento político. Por isso mesmo, tornou-se um dramaturgo que buscou realizar uma arte que se aproximasse da consigna benjaminiana de uma história a contrapelo; seu teatro calcado em estruturas populares e absolutamente comprometido com as lutas da gente brasileira. Sua arte sempre foi um meio, não um fim. Apesar de ter iniciado pela escrita de novelas, é como dramaturgo e diretor teatral que realizou uma produção absolutamente significativa. E César Vieira como sempre foi um sujeito do bando, foi ao lado dos parceiros do Teatro Popular União e Olho Vivo (TUOV) – criado em 1966 no Centro Acadêmico 11 de Agosto da Faculdade de Direito do Largo São Francisco/USP – que pôde expressar sua poética épico-popular.

O TUOV iniciou o processo de produção e criação artística, como César Vieira sempre lembrava em suas falas, com “elementos dos extratos médios”, a turma do 11 de Agosto, mas a mistura com os integrantes do Teatro Casarão, ainda nos idos dos anos 1960, o predestinou a uma popularização, radicalizada a partir da década de 1970, quando foi ao encontro do público nas periferias, pois tinham ciência de que o artista deve ir aonde o povo está, como canta Milton Nascimento. Ou seja, à medida que foi se aproximando das comunidades, sempre era procurado por algumas pessoas que se interessavam em fazer teatro e assim, o coletivo que já carregava uma bandeira popular, passou a ter integrantes também vindos dos bairros periféricos. De acordo com Alexandre Mate (2008), popular para o coletivo concerne tanto ao direito de acesso à arte, como à produção de bens simbólicos.

O teatro praticado pelo TUOV escarafunchou a história brasileira, fugindo dos lugares comuns e devolvendo à sua gente a história de importantes lideranças. Para manterem sua isenção crítica, o coletivo fez uma opção radical pelo “amadorismo”, no sentido daquele que ama seu ofício e não vive dele profissionalmente, já que todos/as os/as integrantes tinham (têm) outras profissões, retirando seu sustento de outros trabalhos para não dependerem economicamente de sua arte e, desse modo, não fazerem concessões em suas criações. Além disso, em seu percurso histórico, adotaram o que chamam de tática Robin Hood, isto é, vendem seus espetáculos para determinado público e/ou instituições que podem pagar, para poderem levar os espetáculos às comunidades que não dispõem de recursos de modo gratuito. Para César Vieira, a citada tática

[...] permitia, com a venda de um número limitado de espetáculos, para a classe média, prosseguir na experiência e cobrir as despesas que eram muitas: condução para ir aos bairros; manutenção do material de cena; aquisição de gravadores, fitas, filmes; gastos com a sede etc.

A subvenção oficial foi motivo de infindáveis discussões e afinal resolveu-se aceitá-la desde que não houvesse qualquer cerceamento às nossas atividades. Subvenção é uma forma de aplicação de imposto, imposto é pago pelo povo, e o nosso trabalho fazia com que esse imposto revertesse ao próprio povo (2007, p. 109).

 

À medida que dois coletivos se fundiram ainda nos idos dos anos 1960 para originar um terceiro, o TUOV, isto é, quando a turma do 11 de Agosto – que havia montado O evangelho segundo Zebedeu – e o Teatro Casarão – que havia montado Corinthians, meu amor – após muitas discussões resolveram se juntar, tinham em mente continuar a produzir novos espetáculos, um teatro popular que chegasse às camadas menos favorecidas. Para tanto, precisavam ir até eles e precisavam de estruturas que dialogassem com tal público. Deixemos que o próprio César Vieira narre este processo:

Duas coisas estavam bastante claras para eles: a certeza de que um espetáculo só chegaria a um público verdadeiramente popular se fosse apresentado nas proximidades da residência ou do local de trabalho dessa plateia e a crença de que o preço de ingresso deveria estar ao alcance do poder aquisitivo dessa faixa de população. Firmara-se também a convicção de que só um desvinculamento dos padrões estéticos convencionais, ditados pelo lucro e pelas técnicas estrangeiras, delinearia um caminho para uma nova criatividade, longe dos cânones da moda teatral, mas certamente mais perto do povo (2007, p. 91).

 

Desse modo, estrutura-se o coletivo em novos rumos à busca de um teatro verdadeiramente popular, bem como o terceiro espetáculo do TUOV, Rei Momo, que “[...] deveria conter obrigatoriamente: samba, carnaval, futebol, televisão e história do Brasil. Tudo isso a serviço de um motivo central: a luta pela liberdade” (VIEIRA, 2007, p. 92), afinal vivia-se sob o signo da ditadura civil-militar. Tal processo verticalizou também a dinâmica de organização, de pesquisa e a poética, dentro de uma metodologia rigorosamente coletiva, que vigora até os dias de hoje.

[...] o uso obrigatório da palavra por todos os integrantes acerca de todos os assuntos que digam respeito à vida do Grupo. Nessa prática, todos têm de fazer uso da palavra e de se posicionar quanto àqueles assuntos, necessidades e propostas em pauta. Nessa perspectiva, as deliberações que organizam a convivência estético-social do Grupo, de modo bastante diferenciado de outras formas e agrupamentos, busca o consenso, isto é, a unanimidade. Assim, o poder de decisão é responsabilidade absoluta do coletivo (MATE, 2008, p. 205).

 

Do ponto de vista da organização e criação dos espetáculos dentro da metodologia coletiva, César Vieira em seu livro Em busca do teatro popular (2007, p. 118) apresenta um organograma no qual é possível identificar o processo a partir de quatro comissões: a artística, a administrativa, a de espetáculos e a cultural. Por sua vez, cada comissão se subdivide em outras comissões. Acerca da criação de espetáculos, que nos interessa mais diretamente, o processo é composto de dez etapas e que já resumi em outro momento do seguinte modo:

1)     É eleito um tema; 2) escolhe-se a estrutura popular para a montagem (bumba-meu-boi, marujada etc.); 3) pesquisa do tema e da estrutura; 4) com base nos dados coletados, organizam as fichas dramáticas com sugestões de conflitos e de personagens; 5) criação do quadro dramático ou do roteiro geral, que será entregue à comissão de dramaturgia; 6) criação do texto-base; 7) submissão do texto-base ao coletivo que, após os debates, realizarão cortes, proporão modificações e aprovarão o texto a ser montado; 8) produção do espetáculo; 9) apresentação do espetáculo ao público, seguido de debate com vistas a possíveis propostas de mudanças; 10) mudanças apontadas pelo público são acrescentadas. Dessa forma, o TUOV chega ao espetáculo final, criado coletivamente (TEIXEIRA, 2020, p. 98).

 

Acerca das estruturas populares nos espetáculos, cabe mencionar algumas peças, seus textos estão quase todos publicados. Assim, em O evangelho segundo Zebedeu, escrita em 1970 (após a decretação do Ato Institucional nº 5, chamado golpe dentro do golpe, devido ao recrudescimento da repressão e outras arbitrariedades), a história de Canudos é revisitada, porém a partir do olhar de um artista de circo mambembe; outra característica popular presente é a religiosidade. Logo, o coletivo se valeu da história de uma comunidade do século XIX, que foi esmagada pelo Estado, na recém-nascida República, para dialogar com o seu tempo histórico, no qual viviam sufocados pela repressão do Estado brasileiro.

Quando estava se organizando o chamado novo trabalhismo no Brasil, em 1978, foi escrito Bumba, meu queixada, que pelo título já se percebe a estrutura popular utilizada e que aborda os processos grevistas que vinham ocorrendo, em especial em Osasco e na região chamada ABCD paulista. Mais uma vez, sem medo, o TUOV enfrentava o arbítrio por meio do espetáculo (e César Vieira, além da arte, por meio de sua prática jurídica).

Em Barbosinha Futebó Crubi, uma das paixões de César Vieira ganha corpo: o futebol, mas não só, posto que a dramaturgia é composta com muitos sambas. Com estrutura e ritmo do teatro de revista, o espetáculo homenageia o paulista Adoniran Barbosa. No repertório musical, dentre outros, consta músicas de Geraldo Filme, Adoniran Barbosa e do próprio César Vieira.

Na virada do milênio o TUOV revisitou com seus espetáculos dois momentos históricos importantes e pouco conhecido dos/as brasileiros/as, trata-se da Revolta da Chibata ocorrida em 1910 no Rio de Janeiro (uma insurreição de marinheiros)  e a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na segunda guerra mundial. O primeiro foi abordado em João Cândido do Brasil: a revolta da chibata, utilizando a estrutura popular da marujada, narra a história dos marinheiros que enfrentaram os maus-tratos que sofriam e que eram vigentes desde a escravidão e que não foram abolidos nem mesmo com a proclamação da República, afinal suas infrações eram “pagas” com chicotadas. A segunda temática está em A cobra vai fumar, que se valendo fortemente do carnaval, apresenta os pracinhas brasileiros que foram lutar pela democracia em solo europeu, enquanto no Brasil vigia a ditadura do Estado Novo. Contradições da história brasileira, via de regra escondida pela versão “oficial” e aqui escovada a contrapelo, para questionar o sentido de nossa formação.

A Cobra Vai Fumar - Apresentação no Festival Nacional de Teatro,
Vitória/ES.  Foto disponível em: 
https://www.flickr.com/photos/tatianapzzn/10945985784/in/photostream/

Sem dúvida o cidadão, o advogado e o artista IdibalPivetta/César Vieira, foram e são inseparáveis, sendo uma daquelas pessoas a quem Brecht chamou de imprescindíveis, posto ter lutado a vida inteira.  Acerca de seu trabalho e de sua luta por todas as maneiras já aludidas aqui na construção de um mundo mais justo e melhor para a maioria, bem como na compreensão de que o seu teatro não é um fim, mas meio, o próprio César Vieira em entrevista a Alexandre Mate, afirma sobre si e sua práxis:

Se eu tivesse buscando uma gratificação seria quando se vai ao bairro e apresenta-se um espetáculo. Apresenta-se uma, duas, três vezes o mesmo espetáculo. Realiza-se um debate. Na semana seguinte, quando se está encostando o material de luz, som e figurino, ouve-se as crianças, que assistiram ao espetáculo, cantando uma música apresentada nele. Muitas vezes, elas mudam a letra e apresentam uma solução estética nova, colocam uma nova letra. O que a gente mostrou, elas transformaram, mostrando suas verdades, suas criações. Não se trata da mesma música, não se trata da mesma letra, mas de algo novo. De algo estimulado pelo nosso trabalho. Algo que foi significativo para elas. Algo que as marcará (VIEIRA apud MATE, 2008, p. 216-7).

 

          A reflexão do artista, mas que gratificação aponta em muitas direções, como a própria criação coletiva que continua a se desdobrar no público; do ponto de vista temático, é possível fazer com que os populares tomem conhecimento de sua própria história para poderem recriar; mas também aponta para o inacabado  de todo/a sujeito/a na arte e na vida; por fim, para a continuidade de nossa existência no/a outro/a. É certo que César Vieira continua e continuará em muitos/as de nós, pois sua permanência por aqui foi repleta de sonhos, afetos e lutas que merecem ser continuados (e é certo que serão).

Evoé!

 

Referências

MATE, Alexandre L. A produção teatral paulistana dos anos 80 – R(ab)iscando com faca o chão da história: tempo de contar os (pré)juízos em percursos de andança. 340f (vol. I). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

TEIXEIRA, Adailtom Alves. Teatro de rua: identidade, território. São Paulo: Giostri, 2020.

VIEIRA, César. A cobra vai fumar. São Paulo: s.e., 2014.

_______. Barbosinha Futebó Crubi; Us Juãos i os Magalis. Guarulhos, SP: Secretaria de Cultura, 2008.

_______. Bumba, meu queixada; Morte aos brancos. Guarulhos, SP: Secretaria de Cultura, 2008.

_______. Corinthians, meu amor; Rei Momo. Guarulhos, SP: Secretaria de Cultura, 2008.

_______. Em busca de um teatro popular. 4ª ed. Rio de Janeiro: Funarte, 2007.

_______. João Cândido do Brasil. Guarulhos, SP: Secretaria de Cultura, 2008.

_______. O evangelho segundo Zebedeu. Guarulhos, SP: Secretaria de Cultura, 2008.



O texto foi escrito a pedido de uma escola de teatro de São Paulo e publicado no Caderno de Registro MACU, edição 24 - I semestre de 2024.

[1] Professor Adjunto do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Doutor em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista; mestre em Artes pela mesma instituição; graduado em História pela Unicsul; integrante do Teatro Ruante; articulador e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua; autor do livro Teatro de Rua – Identidade, Território (Giostri, 2020) e co-organizador de Paky`Op: experiências, travessias, práxis cênica e docência em teatro (Edufro, 2022).

domingo, 17 de novembro de 2024

Coletivo Inflamável faz circulação de espetáculo movi trabalho no Grande Bom Jardim

Provocados por uma matéria jornalística dos anos 1990, que falava sobre a desnutrição e a fome no nordeste, o Coletivo Inflamável, grupo de artistas do bairro Bom Jardim em Fortaleza, criou a peça Homem-Guabiru, termo atribuído às pessoas marginalizadas e expulsas dos manguezais pela gentrificação e que se proliferaram pelas cidades.

Foto divulgação

A comparação metafórica do homem com um rato vem de Josué de Castro, sanitarista e escritor pernambucano. E foi muito abraçada pelo movimento manguebeat.

O Coletivo foi criado por ex-estudantes de teatro e tem por finalidade fazer teatro de rua, para que possa levar os espetáculos para as regiões periféricas, onde não existem palcos tradicionais.

O espetáculo HOMEM-GUABIRU narra a rotina de indivíduos que subsistem à margem da sociedade. São homens e mulheres que, expulsos pela gentrificação, resistem teimosamente à precarização da vida e à concentração de riquezas. São miseravelmente invisibilizados, sem nome e sobrenome, se equilibrando no fino fio que divide a fé e a descrença. O que resta para as pessoas que nada lhes restam?


Foto divulgação

FICHA TÉCNICA:

DIREÇÃO E COORDENAÇÃO: Kelly Enne Saldanha

ELENCO: Aurianderson Amaro, Brena Canto, Luana Barbosa, Kárita Gardem e Kelly Enne Saldanha

CENOGRAFIA: Coletivo Inflamável

PRODUÇÃO: Ítalo Leite Saldanha

ASSISTÊNCIA DE PRODUÇÃO: Lindete Ferreira

DRAMATURGIA: Ítalo Leite Saldanha

PREPARAÇÃO CORPORAL: Aurianderson Amaro

CONCEPÇÃO DE FIGURINO: Kelly Enne Saldanha

CONFECÇÃO DE FIGURINO: Lindete Ferreira, Brena Canto e Aurianderson Amaro

DESIGN GRÁFICO: Silvelena Gomes



Fonte: Ítalo Leite Saldanha. Contato (13) 9 8226-4865 italosaldescrita@gmail.com

inflamavelcoletivo@gmail.com

domingo, 10 de novembro de 2024

A cultura de um tempo fluido

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Se como seres humanos somos o resultado cultural de onde fomos socializados (Laraia, 2005), em um mundo globalizado, integrado por um único modo de produção que regula nossas vidas, somos todos/as afetados e formados (postos na forma) por esse tempo e sistema do qual não temos como nos desvincularmos. Mesmo a crítica ou oposição, é feita a partir de um ponto de vista de dentro. Como alerta Terry Eagleton: “Cultura é uma dessas raras ideias que têm sido tão essenciais para a esquerda política quantos são vitais para a direita [...]” (2005, p. 11). Mas nosso ponto aqui será as mudanças profundas realizadas pelo capitalismo tardio.    

Tanto Zygmunt Bauman em Vidas Desperdiçadas (2005), como Richard Sennett em A Cultura do Novo Capitalismo (2006), apresentam uma crítica contundente à forma como a sociedade contemporânea foi moldada pelo capitalismo tardio. Ao abordar a fluidez e a volatilidade que caracterizam a modernidade atual, eles destacam como as mudanças no trabalho, no chamado “talento” e no consumo afetaram profundamente a vida humana. Essa transformação cultural, segundo ambos os autores, não trouxe a tão prometida e propagandeada liberdade, mas, ao contrário, aprisionou os indivíduos em novas formas de insegurança, precariedade e alienação.

Sennett descreve como a aceleração do tempo se tornou uma característica central da vida moderna. Na cultura capitalista contemporânea, o tempo não é apenas um recurso, mas um campo de batalha onde todos lutam para não ficarem para trás. A lógica de mercado demanda que os trabalhadores migrem constantemente de uma tarefa para outra, de um emprego para outro, de um lugar para outro. O "ideal do artesanato", que valorizava a dedicação e o aprofundamento em uma habilidade específica, foi relegado ao passado. Para Bauman, esse deslocamento contínuo reflete a liquidez da modernidade, pois nesse nosso tempo tudo é transitório e descartável, inclusive as pessoas.

O tempo, que antes oferecia um senso de continuidade e planejamento (como nas carreiras lineares do passado), tornou-se uma série de momentos fragmentados, em que a acumulação de experiência ou conhecimento a longo prazo é desvalorizada. O trabalhador deve ser flexível, capaz de se adaptar rapidamente a novas demandas. Nesse cenário, a estabilidade e a profundidade dão lugar à superficialidade e ao imediatismo.

A Crise do Artesanal

Para Sennett, o novo capitalismo destrói o ideal do trabalho artesanal. Fazer algo bem feito, simplesmente pelo prazer de fazê-lo, perdeu sentido em um contexto onde o que importa é a capacidade de executar múltiplas tarefas, muitas vezes desconectadas entre si. “A especialização profunda é substituída pela "portabilidade de habilidades”, valorizando-se profissionais que podem ser deslocados para diferentes funções sem muita preparação.

Bauman complementa essa análise ao mostrar que, em um mundo governado pela lógica do consumo, o valor do trabalho está atrelado à sua utilidade imediata e descartabilidade. Se no passado havia um vínculo entre a identidade do trabalhador e o seu ofício, hoje, essa relação é fragmentada. Os trabalhadores tornaram-se meras engrenagens, peças substituíveis, sempre à mercê das demandas do mercado.

Daí a chamada modernidade líquida de Bauman, enfatizar o conceito de "vidas desperdiçadas" ou refugos humanos. A aceleração do tempo e a superficialidade no trabalho levam a um aumento no número de indivíduos considerados descartáveis, ou como chamou Fernando Henrique Cardoso, "inimpregáveis" – pessoas que, devido à sua idade, falta de qualificação ou até mesmo obsolescência tecnológica, são descartadas pelo sistema. Sennett reforça essa ideia ao observar que a lógica do capital privilegia o jovem, flexível e barato, enquanto os mais velhos, com suas habilidades que se tornam obsoletas rapidamente, são deixados de lado.

O medo de se tornar supérfluo, redundante, isto é, refugo humano, assombra os trabalhadores, que precisam constantemente requalificar-se para se manterem relevantes. A incerteza e o medo se tornam os novos motores de uma economia que demanda eficiência e lucratividade instantâneas. Desse modo, a criação de espantalhos é outro aspecto desse problema, isto é, o outro, sobretudo o imigrante para as economias desenvolvidas, passa a ser o inimigo de plantão.

Uma política para ser consumida

Sennett também explora como o consumo permeia não apenas o mercado, mas todas as esferas da vida, incluindo a política. Os cidadãos são tratados como consumidores, cuja insatisfação é capitalizada para gerar lucros e manipular o mercado político. Bauman identifica esse fenômeno como uma alienação extrema, onde até mesmo os desejos e as aspirações das pessoas são moldados por uma lógica consumista. A política torna-se um produto, com plataformas que mais se assemelham a estratégias de marketing do que a ideais de transformação social. Conforme salienta Sennett, cinco aspectos afastam o consumidor-espectador-cidadão da política progressista: ele é

[...] (1) convidado a aprovar plataformas políticas que mais parecem plataformas de produtos e (2) diferenças laminadas a ouro; (3) convidado a esquecer a “retorcida madeira humana” (como se referia a nós Immanuel Kant) e (4) dar crédito a políticas de mais fácil utilização; (5) aceitar constantemente novos produtos políticos em oferta (2006, p. 148).

 

Nesse contexto, o engajamento político autêntico é corroído, pois os cidadãos-consumidores tornam-se passivos, movidos mais pelo desejo de satisfação imediata do que pela reflexão crítica. A democracia, assim, é simplificada e diluída, transformando-se em um espetáculo onde a participação se resume a um "comprar" simbólico de ideias políticas, muitas vezes já mastigadas e pré-formatadas para fácil digestão.

Uma falsa liberdade para consumo

Os defensores do novo capitalismo argumentam que ele oferece maior liberdade, mas tanto Bauman quanto Sennett discordam. A liberdade prometida é ilusória: em vez de promover uma autonomia real, ela aprisiona os indivíduos em um ciclo constante de consumo e atualização. A liberdade de escolha, evidentemente, é superficial, pois, na prática, as opções são limitadas às mercadorias e às experiências oferecidas pelo mercado, seja ele de um novo governo, seja de um novo mundo.

A "paixão consumptiva", como Sennett descreve, reflete a necessidade constante de buscar algo novo, mesmo que esse algo não satisfaça plenamente. No entanto, essa busca constante é, paradoxalmente, uma fonte de alienação e solidão. A frustração gerada pela insaciabilidade do consumo é frequentemente canalizada para o campo político, criando um ambiente onde o populismo e as respostas simplistas ganham força.

Considerações finais

A reflexão sobre a cultura no capitalismo contemporâneo, a partir de Bauman e Sennett, revela um cenário sombrio: um mundo onde o tempo é acelerado, o talento é descartável, e o consumo se tornou o único paradigma válido. A promessa de liberdade e progresso se desfaz diante de uma realidade em que os indivíduos são constantemente substituídos, descartados e manipulados. Assim, o capitalismo tardio não trouxe a liberdade que prometia, mas sim uma sociedade mais fragmentada, onde as vidas são desperdiçadas em nome de um progresso que serve apenas a uma elite cada vez mais rica. Kohei Saito em O capital no antropoceno afirma que “[...] que os 26 capitalistas mais ricos do mundo controlam tanta riqueza quanto os 3,8 bilhões mais pobres (aproximadamente metade da população mundial)” (2024, p. 143).

Medo, por rumarmos ao desconhecido e por estarmos pressionados pelo iminente descarte, nos sobra a ânsia de mergulhar cada vez mais fundo no mundo das mercadorias, seja ela reais ou simbólicas:

Em suma, as mercadorias encarnam a derradeira falta de razão e a capacidade que as escolhas têm de serem revogáveis, assim como a extrema descartabilidade dos objetos escolhidos. Mais importante ainda, parecem colocar-nos no controle. Somos nós, os consumidores, que traçamos a linha divisória entre o útil e o refugo. Tendo por parceiras as mercadorias, podemos deixar de nos preocuparmos em terminar na lata de lixo (Bauman, 2005, p. 161).

 

Ao final, se temos todos/as nos tornado meros consumidores/as, resta-nos a pergunta: é possível resgatar um sentido de pertencimento e propósito em um mundo que valoriza mais o efêmero do que o duradouro? Teremos capacidade de realizarmos as mudanças necessárias? Fato é que é mais que necessário repensar radicalmente as estruturas que regem nossas vidas, antes que nos tornemos, todos, meros consumidores em um espetáculo sem fim.

 

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Trad.: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. Trad.: Sandra Castello Branco. São Paulo: EdUnesp, 2005.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 18ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

SAITO, Kohei. O capital no antropoceno. Trad.: Caroline M. Gomes. São Paulo: Boitempo, 2024.

SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Trad.: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2006.



[1] Professor adjunto da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Doutor e Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp); graduado em História; autor dos livros Circo Teatro Palombar: somos periferia; potência criativa (Fala, 2024), Teatro de rua: identidade, território (Giostri, 2020) e coorganizador de Paky`op: experiência, travessias, práxis cênica e docência em teatro (Edufro, 2022).

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Arte pública e direitos culturais

 

Adailtom Alves Teixeira

Arte é obra pública feita por particular, pressupõe a entrega do melhor de nós mesmos para consumo da coletividade. Só podemos fazer isso com nossos melhores sentimentos, mesmo que seja para falarmos dos piores sentimentos humanos e suas contradições.

Amir Haddad – Amir Haddad de todos os teatros

 

O texto que se segue decorre do roteiro de uma fala em um seminário dentro da programação do Festival Matias de Teatro de Rua, que ocorreu no dia 21 de setembro de 2024 no Cine Teatro Recreio, em Rio Branco/AC. O Festival é uma realização da Cia Visse & Versa de Ação Cênica com uma programação que se deu entre 18 e 24 de setembro de 2024, além de Rio Branco, se estendeu pelas cidades de Senador Guiomar, Bujari e Plácido de Castro. Apresentado o contexto passemos aos pontos apresentados em minha fala naquele encontro.

O primeiro ponto defendido é que foi Amir Haddad, ator, diretor e professor de teatro com mais de 60 anos de carreira, quem recuperou a ideia de arte pública para o teatro, especialmente na modalidade praticada na rua. Afinal, tal conceito era amplamente conhecido apenas no campo das artes visuais. Amir tem vasta experiências com vários teatros e são mais de quatro décadas dedicadas à prática do teatro de rua, com seu coletivo Tá na Rua. Tal “recuperação” da arte pública puxada por Haddad logo se difundiu por todo o Brasil por meio dos articuladores da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) – criada em 2007 e único coletivo teatral ativo nacionalmente, embora esteja fragilizado no pós pandemia.

Em recente livro Haddad define o que considera arte pública:

Uma arte que se faz e se produz para todos, sem distinção de classe ou nenhuma outra forma de discriminação, podendo ocupar todo e qualquer espaço, e com plena função social de organizar o mundo, ainda que por instantes, fazendo renascer na população a esperança (Haddad, 2022, p. 146-7).

 

Mais do que a esperança, eu diria que é preciso cada vez mais fazer (re)nascer a revolta, na medida em que vivemos tempos difíceis, no qual o capitalismo já mostrou todos os seus limites, e arte de maneira geral, precisa disputar subjetividades, especialmente dos mais pobres. O teatro de rua, por ser uma arte que não distingue seu público, cumpre papel significativo. Amir não deixa dúvida acerca do nosso papel, pois como afirma mais a frente, “[...] arte pública é a arte que não está submetida ao mercado, que é consumida por todos igualmente, em qualquer lugar; não precisa lugar certo, não precisa de uma plateia certa, e não depende da bilheteria” (Haddad, 2022, p. 159). Logo, é vista como direito e se é direito, deve ser atendida por políticas públicas.

Porém, é importante que se diga que, embora muito difundido entre os fazedores de teatro de rua e alguns espaços importantes de cultura, a batalha pelo conceito de arte pública não está ganha, ainda está em disputa, basta vermos a definição do verbete dado pela Enciclopédia Itaú Cultural, no qual se destaca uma concepção mais voltada às artes visuais:

Em sentido literal, seriam as obras que pertencem aos museus e acervos, ou os monumentos nas ruas e praças, que são de acesso livre. Nessa direção, é possível acompanhar a vocação pública da arte desde a Antigüidade, lembrando de obras integradas à cena cotidiana - por exemplo, O Pensador, de Auguste Rodin (1840-1917), instalado em frente do Panteão em Paris, 1906 - e de outras mais diretamente envolvidas com o debate político. O projeto de Vladimir Tatlin (1885-1953) para um monumento à Terceira Internacional (1920) e o Memorial de Constantin Brancusi (1876-1957), 1937-1938, dedicado aos civis romenos que enfrentaram o Exército alemão em 1916, são exemplos disso. O muralismo mexicano de Diego Rivera (1886-1957) e David Alfaro Siqueiros (1896-1974) pode ser considerado um dos precursores da arte pública em função de seu compromisso político e de seu apelo visual[1].

 

A disputa do conceito é importante, na medida em que no capitalismo tudo tende a virar mercadoria e ser apropriado por uma determinada classe, a burguesia, até mesmo as políticas públicas – na medida em que se trata de fundos públicos – tende a contemplar aquilo que é determinado pelo mercado. Desse modo, inserir o teatro de rua como arte pública significa também a disputa pelos recursos para os artistas. Nesse sentido, desde seu início a RBTR tem lutado por políticas públicas de cultura que de fato cheguem às bases da sociedade, ao mesmo tempo que em vários de seus documentos tem se colocado contra leis de renúncia fiscal, que são, quase sempre, apropriadas por pequenos grupos da sociedade. Desse modo, pode-se afirmar que Amir Haddad e os demais teatreiros de rua estão na disputa do conceito e dos fundos públicas para que sua arte sobreviva.

Um segundo ponto apresentado no seminário, em diálogo com o primeiro, foi o de teatro de rua e do direito à cidade, ressalvando as especificidades da região amazônica. Tal observação, isto é, ter um olhar diferenciado para essa parte do Brasil é importante por que o substantivo “rua” colocado ao lado da palavra teatro, portanto, adjetivado, pode levar a interpretações errôneas de que teatro de rua seja praticado apenas em centros urbanos. Porém, é importante frisar, o teatro de rua deve ser visto de modo amplo, como um teatro que chega a todos os lugares e, mais importante, sem perder os seus pressupostos poéticos e estéticos. Assim, embora tenham também grandes cidades na Amazônia, por aqui, as ruas são rios e só o teatro de rua pode chegar nos mais inusitados lugares. Talvez por isso mesmo, o teatro de rua carregue a condição de “marginal”, de uma arte à margem, mas é justamente por isso, na sua condição marginal, que reside a sua liberdade. Liberdade para dialogar com todos/as/es; liberdade para tratar de qualquer temática; liberdade criativa, na condição de obra em processo, nunca pronta e acabada. Nesse aspecto, os pressupostos fundantes dessa modalidade são acessibilidade (geográfica, temática, estética etc.) e porosidade (sempre incorporando as intervenções do público e dos espaços), daí nunca serem obras definitivas, “acabadas”. O teatro de rua, onde quer que ele chegue, onde quer que ele se coloque, ressignifica o lugar – que torna-se espaço de fruição – e transforma o transeunte em espectador. Por todos esses aspectos, e outros não abordados, o teatro de rua não consegue ser totalmente apropriado pelo capitalismo – ainda que não possa impedir que se apropriem de seus expedientes, mas como ouvi certa vez de um artista popular: “deixem que eles copiem, a gente cria mais” –, trata-se de uma arte artesanal em seu sentido mais profundo.

Mas apesar de, enquanto potência, poder chegar em todos os lugares, as cidades são um ponto importante para os praticantes de teatro de rua, não só porque a maioria da população brasileira resida nas cidades, mas porque o teatro que vai às ruas, está disputando também um modelo de cidade para cidadãos e cidadãs. O direito à cidade é o ponto zero dessa nossa disputa e na medida em que o teatro de rua desorganiza a ordem do capital, pode auxiliar na recuperação do tecido social desgastado, pode se tornar aquilo que Amir Haddad chama de “a utopia representada”. Ainda que não se chegue ao utópico propriamente, a busca é incessante, para lembrar um grande escritor uruguaio, nos faz caminhar.

Desse modo, ocupar as ruas com o teatro, no sentido que estamos dando, torna (ou cria-se) espaços de lazer e mobilização social, ainda que temporários. O neoliberalismo praticamente implodiu o sentimento de coletividade, o EU foi exacerbado a enésima potência, nesse sentido, o teatro de rua pode auxiliar na reconstituição/reconstrução dos afetos. Pois como nos ensinou Nego Bispo: “A arte é conversa das almas porque vai do indivíduo para o comunitarismo, pois ela é compartilhada” (Santos, 2023, p. 23).

Por isso mesmo, um outro autor, Henri Lefebvre, insiste que a cidade é um diagnóstico de nosso tempo. Portanto, uma ideia chave para a transformação radical da sociedade: “[...] a cidade é um pedaço do conjunto social; revela porque as contêm e incorpora na matéria sensível, as instituições, as ideologias” (Lefebvre, 2008, p. 66). O autor está fazendo uma crítica ao ideário da modernidade, isto é, às concepções de ordem e progresso, que implica, evidentemente, a concepção de desenvolvimento a qualquer custo e do qual até mesmo a esquerda tem dificuldades de se livrar. E quanto às cidades amazônicas? Ora a crítica é ainda mais pertinente, pois a “integração” dessa parte do Brasil ao restante do país deu-se por meio de projetos coordenados sobretudo por duas ditaduras, Vargas e a civil-militar – embebidos de positivismo e seu lema de ordem e progresso até a medula. E aonde tem nos levado tal ideal de progresso e desenvolvimento encampados por tais projetos? A uma destruição permanente das florestas, a implantação de uma monocultura e a continuidade do genocídio dos povos originários.

Aqui faz-se necessário uma pequena reflexão, pois pode parecer que estou apresentando o teatro de rua como elemento salvacionista e não é disso que se trata. O teatro – ou qualquer arte – não muda realidades, mas pode mudar pessoas e elas, se engajadas e organizadas, poderão mudar a realidade à sua volta. O teatro de rua, por não está calcando na troca mercantil, realiza a troca de experiência no sentido benjaminiano. Walter Benjamin (20120 trata de dois tipos de trocas, erfahrung (experiência) X erlebnis (vivência). No primeiro somos atravessados, afetados e isso pode nos modificar; já o segundo o que temos é uma mera vivência, sem profundidade. Ora, o nosso tempo vive o império da vivência, do particular, da ligeireza, do não aprofundamento. Ao mesmo tempo uma radicalização de todo o ideário da modernidade, mas para onde caminhamos? Nas palavras de Zygmunt Bauman (2005, p.13), a globalização se tornou uma “linha de produção de refugo humano ou de pessoas refugadas”. A história da modernidade nos trouxe até aqui. É tarefa dos artistas e das artes por eles praticadas, incluso o teatro de rua, uma disputa na mudança de rumos, isto é, um rompimento com o projeto da modernidade. Afinal, estamos no quadrante histórico no qual a espécie humana terá o grande desafio de qual mundo construirá para as futuras gerações ou se haverá um “mundo” para a nossa espécie. Disputar as subjetividades e ocupar as ruas, os rios, as comunidades em geral com uma arte que seja de diversão e mobilização, no sentido de uma mudança radical.

 

Referências

ARTE Pública. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2024. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo356/arte-publica. Acesso em: 30 de outubro de 2024. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras Escolhidas v. 1)

HADDAD, Amir. Amir Haddad de todos os teatros. Rio de Janeiro: Cobogó, 2022.

SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu, 2023.


[1] ARTE Pública. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2024. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo356/arte-publica. Acesso em: 30 de outubro de 2024. Verbete da Enciclopédia.

 

quinta-feira, 6 de junho de 2024

XV Festival Amazônia Encena na Rua

                                                                                                                           Adailtom Alves Teixeira




O XV Festival Amazônia Encena na Rua, um dos maiores festivais de teatro de rua do Brasil, ocorrerá nos dias 07, 08 e 09 de junho de 2024. No entanto, apesar de sua importância, enfrentou novamente desafios significativos para assegurar os recursos necessários para sua realização. Este festival é um significativo evento cultural que celebra a arte pública de rua e reúne diversos grupos teatrais, oferecendo ao público uma experiência única e envolvente.



Este ano, o festival será realizado na Arena do Complexo da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), retomando o local de edições anteriores, espaço que simboliza a rica história e o marco zero de Rondônia. O local, patrimônio histórico, é um símbolo também da região amazônica.



O XV Festival Amazônia Encena na Rua é uma celebração da resistência e da criatividade artística, mesmo enfrentando desafios financeiros para continuar trazendo cultura e entretenimento de qualidade para o público, mantém-se como um dos mais longevos do país nessa modalidade. Por isso, já que o poder público ainda não se deu conta de tal importância, a participação da comunidade e o apoio ao festival são fundamentais para a continuidade deste evento que já se consolidou como um dos mais importantes do calendário cultural brasileiro.


A programação totalmente gratuita reúne espetáculos teatrais e de dança bem diversificados e para todos os públicos e idades. Confira abaixo.



Programação:

Data: 07/06/2024 - a partir das 19h

Espetáculo: Leno Queria Nascer Flor

Grupo: Núcleo Ás de Paus (PR)



Espetáculo: Índigenas da Amazônia

Grupo: Cia Yaporanga (RO)



Data: 08/06/2024 - a partir das 18h

Espetáculo: Cabaré Ruante

Grupo: Teatro Ruante (RO)


Espetáculo: Encontro de Gigantes

Grupo: Núcleo Ás de Paus (PR)



Data: 09/06/2024 - a partir das 18h

Espetáculo: Que Palhaçada é Essa?

Grupo: O Imaginário (RO)



Espetáculo: Fagulha

Grupo: Núcleo Ás de Paus (PR)