Carta Aberta à Secretaria de Cultura do Município do Rio de Janeiro
Senhora Secretária
Gostaria de deixar aqui escrito uma tentativa de descrever os sentimentos que me ocorreram, e pensamentos que tive quando entrei em contato com o texto do Decreto.(?!?)
Talvez tenha de me demorar um pouco sobre este assunto, pois ele é de capital importância para o momento e para o mundo em que estamos vivendo e acredito que ninguém, muito menos eu e a Senhora Secretária, podemos ou devemos fugir dele. Espero não ser interrompido como fui no nosso breve encontro anterior,
Assim vamos lá.
Eu tinha ido para esta reunião com o artigo 5° da Constituição em minha mão, para declamá-lo diante de todos, pois para mim era esta a verdadeira razão daquele encontro. Liberdade de expressão.
Art. 5°, IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
Art. 5°, IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Art. 5°, XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardo do sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
Art. 220 - A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a. informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
Porem, ao ler o Decreto fui agradavelmente surpreendido e desarmado por ver seu artigo 1°, que citava justamente este artigo da Constituição. Respirei aliviado. Estamos no mesmo barco, pensei eu.
Mas nos artigos, incisos ou alíneas ou parágrafos seguintes, ou não sei bem o que é, o que estava escrito era uma seqüência de requisitos que eu deveria cumprir para que pudesse usufruir desta liberdade constitucional. Condições sem as quais eu não poderia exercer meu direito de cidadão livre.
Então eu estava livre, mas não estava muito. Eu era uma pessoa que estava presa e agora ia ser agraciado com a benesse da liberdade condicional. Estava ali me sendo oferecida a liberdade, sob determinadas condições que eu deveria cumprir e respeitar, sob pena de novamente voltar a prisão. O meu mal-estar cresceu quando compreendi que a discussão teria que ser mais profunda e inquietante do que eu imaginava. Não estava diante de pessoas que estavam pensando o mundo como eu. Embora a Senhora Secretária tivesse afirmado que, por ser comunista sabia já das coisa que eu estava começando a dizer, na prática esta teoria não se confirmava. Íamos ter que discutir mais do que pensávamos, e não havia tempo para isto. Havia mais coisas em jogo ali do que simplesmente nossas boas intenções, em relação ao bem-estar da cidade e de seus cidadãos. E de que maneira a boa gestão de políticas - públicas para a Cultura poderia contribuir para isto. A cidade não estava em jogo, nem o seu cidadão, e sim a necessidade de aprovar urgentemente, não sei porque motivo, aquele documento regulatório e contraditório das atividades em áreas públicas, que estava diante de mim. E eu, senhora Secretaria, sem voz e imobilizado, nada podia fazer, a não ser pedir um tempo para pensar e propor alguma reflexão e discussão, a respeito desta questão tão importante, já que, aparentemente, não estávamos ocupando posições semelhantes diante do problema.
E assim, a discussão com os interessados que deveria ter sido feita, antes até mesmo da elaboração do Decreto, e que iria ajudar nesta elaboração, teria que ser feita ali naquela hora, sob pressão política e de prazo. Companheiros da Rede de Teatro de Rua do Rio de Janeiro tinham várias vezes antes tentado contato, sem êxito, com esta Secretaria.
Nós não achávamos que uma questão tão importante podia ser discutida às pressas; e continuamos achando que não, dadas a sua importância e atualidade. É realmente uma questão de tempo, Senhora Secretária. E não podemos ser levianos e inconseqüentes a este respeito, pois o que for decidido aqui no Rio de Janeiro vai repercutir no Brasil inteiro, e nós estamos no momento de avançar em nossas conquistas de liberdade. Sempre que os governos não conseguem equacionar seus problemas sociais a liberdade é a primeira a ser sacrificada. Podemos estar "distraídos" diante disto tudo? O muro de Berlim resolveu o problema da liberdade? O dia da Consciência Negra resolveu o problema do apartheid social e racial da sociedade brasileira? É possível distrair, descansar?
Senhora Secretária, esta Secretaria acho que ainda tem um departamento de Patrimônio que foi criado na gestão do Antonio Pedro Borges, a frente da primeira Secretaria de Cultura, do Rio de Janeiro. Pois bem, Senhora, todos nós sabemos que Santa Teresa é uma APA- Área de Proteção Ambiental; e que todos nós, gestores públicos e cidadãos, devemos zelar pela sua integridade e identidade. A Senhora já viu o caos em que estão se transformando as ruas e ladeiras de Santa Teresa? A qualidade de vida do bairro é cada vez pior, o morador se ressente, enquanto floresce um comercio, que só remotamente beneficia o bairro e seu morador. Os carros, veículos de todos os tamanhos e pesos, sobem e descem suas ruas e ladeiras indiscriminadamente, em qualquer direção, sem nenhum regulatório. Lá não precisa? Uma vez só estiveram lá, que eu saiba, para obrigar o proprietário de um bar-mercearia a recolher duas mesas da calçada, onde eu e outros moradores há 30 anos costumamos nos sentar para conversar, sermos amigos, cidadão, convivermos. Coisa rara em qualquer lugar do Rio de Janeiro.
O choque de ordem fez recolher cadeiras e mesas onde a vida comunitária se estabelece, e onde pode nascer um remédio para a violência que nos deixa desolados, numa cidade tão linda como a nossa. E deixa a tragédia anunciada se aproximar cada vez mais!
O que está acontecendo ou querendo acontecer com o Teatro de Rua não é parecido com o que aconteceu com as cadeiras e mesas de Santa Teresa?
A senhora não acha, Senhora Secretária, que tudo isto tem a ver com a Cultura? Que a Cultura tem a ver com identidade e qualidade de vida? Que qualquer política "regulatória" teria que ser submetida à apreciação da Secretaria de Cultura e a Secretaria de Saúde? Para evitar atitude e procedimentos que em vez de resolver, transformam a cidade e a vida do cidadão em tristeza, depressão e mais violência? Não é esta a função da Vida Cultural na construção da nossa identidade e cidadania? Não só na teoria, mas também na prática?
Senhora Secretária, pela regra do Decreto, meu grupo de Teatro, o Tá na Rua, não poderá ir nunca à rua, pois não se encaixa em nada do que o decreto pensa. Quem o redigiu tem pouca familiaridade com a questão, embora possa ter tido empenho e boa – vontade.
Assim como eu, outros artista de rua não preparam com antecedência suas saídas, e muitas vezes saímos a rua sem saber onde iremos parar. Nem dia, nem hora, nem local. E nunca obstruímos nenhuma praça, nenhuma rua, nunca prejudicamos nenhum comerciante, nem nunca perturbamos o sono de ninguém ou o trânsito.
O básico de nosso trabalho é o respeito à população e ao seu direito de ser feliz, participando da vida cultural da cidade. Nunca iríamos fazer ou fizemos coisas que ferissem a ordem pública, a verdadeira ordem pública, não a ordem de uma gaveta vazia. Atitude que não parece ser a que subjaz nestas medidas regulatórias abstratas, em nome de uma ordem também abstrata. Sanear, higienizar não é organizar. Nós precisamos de apoio, estimulo, e incentivo, não de organização aleatória e indiscriminada.
Nunca desistimos de nossa cidadania, pois amamos a cidade e seus cidadãos, sem distinção de classe, cor, credo, idade ou religião. O nosso maior prazer é respeitar o cidadão. Nós queremos ser parceiros do poder público na construção de uma sociedade melhor. Não devemos ser tratados como presos em liberdade condicional. Nossa liberdade foi conquistada ao longo de séculos e de lutas e nossa liberdade não pode ser concedida. Ela tem de ser reconhecida. Não posso me imaginar em praça pública somente se estiver autorizado pela autoridade. Eu abandonei tudo por amor à cidade. Sou cidadão carioca emérito. Não me tirem agora a cidade. Senhora secretária, não deixe isto acontecer. O momento é histórico e importante. O que fizermos agora vai, como já disse, repercutir em todo País. Se decidirmos bem, ficaremos todos, nacionalmente um pouco mais alegres. Se perdermos a oportunidade estaremos fazendo como aqueles que querem a todo custo tirar a esperança do Brasil. Agora que estamos crescendo, produzindo auto-estima que poderá iluminar o aparecimento da nação brasileira.
Podemos fazer historia Senhora Secretária, ou sermos atropelados por ela.
Creia-me um seu admirador e antigo eleitor.
Obrigado pela atenção.
Rio de Janeiro, 18 de Novembro de 2009
Amir Haddad
P.S - A título de pós –escrito uma sugestão de procedimento para o manejo e crescimento do Teatro de Rua na cidade do Rio de Janeiro.
Sugerimos que:
- Para sair às ruas, os grupos de Teatro, cadastrados ou não, deverão apenas comunicar a um Setor de Teatro de Rua, que deverá ser criado pela Secretaria, que espaços pretendem ocupar e a partir de que hora.
- O Setor, então, deverá informar ao comunicante as condições do local, para orientação do grupo. E, sempre que necessário, enviar para lá uma equipe da Prefeitura, que se encarregará da limpeza da praça e de sua segurança, para que nossos artistas possam cumprir sua tarefa em paz. Se houver necessidade de energia elétrica o Setor deverá providenciar junto à Rio Luz a localização e a utilização do ponto de luz mais próximo, sem ônus para o grupo.
A Guarda Municipal que estiver na região deverá ser estimulada a proteger e assistir o espetáculo. Eles já fazem isto, porem com medo de serem castigados. Terão assim melhorado sua qualificação para a função a que se destinam.
- O cadastramento dos grupos deverá ser feito junto à Rede de Teatro de Rua do Rio de Janeiro, que se encarregará de manter atualizado o cadastro do Setor de Teatro de Rua da Secretaria.
O grupo não cadastrado que comunicar seu trabalho ao Setor da Secretaria estará automaticamente cadastrado e suas características ( nome, formação, origem) deverão ser comunicadas a Rede que irá entrar em contato com eles, para vinculá-los ao movimento nacional do Teatro de Rua.
- Sei que os representantes da Rede Estadual de Teatro de Rua têm pensado nisso que vou expor e que acho excelente.
Há grupos que além de andar por vários pontos da cidade, mantém o vinculo permanente com as praças e comunidades onde têm suas sedes. Assim seria interessante se este grupos se encarregassem da ocupação e programação das praças onde estão sediados, ali desenvolvendo atividades permanentes com apoio e cooperação da Guarda Municipal. Alguns de nós já fazemos isto, mas sem nenhum apoio, estimulo ou segurança.
Poderemos melhorar, e muito, a vida na cidade, na região onde habitamos.
Sonhamos como uma cidade feliz e iluminada pela esperança.
A Secretaria de Cultura pode trazer saúde para a população carioca.
Não queremos poder, mas sim colaborar para a construção da esperança.
Trabalhamos no presente para um outro futuro, possível.
Atenciosamente
Amir Haddad
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