Um Ensaio sobre o Teatro de Intervenção
Em 2003, o Movimento de Teatro de Rua chamou para um bate-papo lá no Barracão Cultural Pavanelli os grupos de teatro de rua da capital paulista. Eu propus o "teatro de intervenção" e, vapt-vupt, o Grupo Manifesta de Arte Cômica se deparou falando sobre isso com o Ilo Krugli, do Vento Forte.
Os grupos de que faço parte nasceram se apresentando para platéias "caçadas a laço" (festas, buffets, eventos etc.). Haja improviso para manter aquele povo inteiro aceso e não naufragarmos num adeus-cachê! Em nada isso se diferenciava do que, por exemplo, falava o Dario Fo no seu Manual Mínimo do Ator! Era o improviso (este rico e vivo repertório de manhas-e-artimanhas cênicas, arduamente conquistado numa vida inteira de ofício) que enchia a barriga e movia as viagens dos artistas medievais. A Paoli Quito a ele se refere como "obra de anjos" que sustentam quem se lança no abismo da relação com a platéia, sem saber onde vai dar... É a pedra-fundamental do teatro de intervenção, uma poderosa isca que pesca o transeunte que "caiu ali de pára-quedas". Seja aonde for, existe melhor maneira de se inserir num ambiente deste do que compartilhá-lo e redimensioná-lo criativamente com quem naturalmente e cotidianamente o habita?
O Amir Haddad define teatro de rua como "celebração", um brinde entre ator e espectador. Respeitadas as devidas proporções, o que vimos fazendo desde nossa origem é exatamente isso: redimensionar ambientes! Transformar "pára-quedista" em espectador e inseri-lo na cena, seja nos cannovacio dos cômicos dell`arte, nas entradas e reprises de palhaços ou alguma ação teatral temática. Bons exemplos são a Risoterapia e nossa versão palhacesca de Dom Quixote e Sancho Pança.
Iná Camargo afirma que o "teatro de rua é arma que pode virar munição para o inimigo". Boa parte da não aceitação do teatro de intervenção por parte da própria classe teatral se dá por conta de tantos artistas que ainda flagramos em portas de lojas ou ao redor de palanques políticos, oferecendo ao banquete dos interesses mercantilistas um instrumento naturalmente tão transformador. Seja técnica ou seja talento (de preferência ambos), é totalmente dele a capacidade de se valer de personagens ou de manipular criativamente um universo todo de características, transformando-o em situações teatrais para, a todo instante, e em espaços não propícios a isso, gerar e manter um diálogo altamente transformador com a população local — "promovendo a ampliação da consciência do espectador ao trazer à tona a sua própria realidade, o seu dia-a-dia, o seu cotidiano", como disse a Georgete Fadel, da Cia. São Jorge de Variedades, que prepara, neste ano, uma invasão de quixotes para as ruas.
A este artista cabe transformar isso. Reconhecer este valor é o primeiro passo, por exemplo, para ele encontrar políticas públicas que modifiquem a sua realidade econômica, que o coloquem no lugar que merece dentro da vitrine teatral da sua cidade, do seu país e no mundo. É maravilhoso que eu, cidadão, passeando pelo meu caminho, seja "raptado" por um acontecimento que me rasga — da forma criativa e crível, por mais escalafobético que pareça — o cotidiano de indivíduo e de coletivo social, que me reinvente como indivíduo e coletivo social, partindo do meu dia-a-dia, me colocando na cena teatral e criando comigo um diálogo tão aberto e intenso, que não me resta outra saída a não ser a de imprimir nesta cena a minha própria visão de mundo!
Em 1993, uma epidemia de cólera levou o Grupo Manifesta pelo país com uma intervenção teatral para trabalhadores de cozinha industrial. Então, constatamos que era possível, sim, uma transformação (individual ou coletiva) nas platéias espontâneas. Nossa vereda sempre foi a da vontade quase paranóica de fazer rir. Como falar de cólera, AIDS, loucura, droga, miséria, dor ou doença usando o humor? O riso é uma atitude revolucionária, regenerativa e renovadora, em suma, política! Em 1995, a experiência do norte-americano Michael Christensen, que espalhou pelo mundo uma rede de palhaços em hospitais, gritou "bingo!". Nos espaços não-convencionais, seja qual for o "recado a ser dado", o humor viabiliza um diálogo mais direto entre ator/personagem-espectador. Ao rir, parece que o pára-quedista nos diz: "tô sabendo! Vamos nessa!". E pode apostar que ele vai! Ele quer uma vivência nova, verdadeira e (sim, Brecht tinha razão nisso!) divertida. Por mais curto que seja seu tempo ali, ele é fiel, ele quer botar seu pitaco naquela história, fazer parte daquela vivência.
Este é o cerne principal disto que estamos denominando como sendo TEATRO DE INTERVENÇÃO. Abramos nossos livros de escola e recordemos quais são os propósitos que legaram ao mundo um Boal! Então, é hora de revermos determinadas crenças, principalmente as que reivindicam "sustentações acadêmicas" que legitimem esta expressão teatral. "Narrativas de Passagem", por exemplo, é um projeto com o qual o dramaturgo Luiz Alberto de Abreu visa narrar passagens míticas do ser humano, principalmente a da morte, para pessoas em estágio terminal, de risco de vida ou em estado de abandono. Ao invés da compreensão e do desfrute destas narrativas, o que se vem notando nos responsáveis pela viabilização desses encontros é a preocupação com "o aval acadêmico necessário ao sustento da proposta"!
Que se pense menos e se faça mais! Que se viva e se deixe viver! Que gênio esperou bênção de alguém ou até mesmo decidiu-se a sê-lo? Cada qual que coloque seu bloco na rua e toque sua música com todas as cordas do seu coração plenamente afinadas. É o espectador que importa. Não falo só de presença física, mas, sim, da forma como sua sensibilidade é tocada, conquistada, seduzida, compartilhada e redimensionada; falo de paridade, de divisão de responsabilidade no estabelecimento do momento teatral no cotidiano de todos nós! Isto é Teatro de Intervenção.
* Carlos Biaggioli é integrante do Grupo Manifesta de Arte Cômica e da Cia. de Rocokóz
Publicado originalmente em A Gargalhada nº 03, julho/agosto de 2006, p. 7.
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