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domingo, 3 de junho de 2012

Relato Diário do 3º Encontro de Mamulengo em São Paulo – 2º Dia


Por Márcio Silveira dos Santos(1)
Dia 29/05/2012 – Terça – Feira.

Se no primeiro dia do Encontro de Mamulengos, quando adentramos no fantástico mundo de Mestre Valdeck de Garanhuns, tivemos uma grande festança de introdução ao universo deste patrimônio cultural inestimável, para o segundo dia cumpriu-se o esperado pela produção do evento, foi uma verdadeira overdose de Mamulengos.

O Boulevard São João, espaço situado na extremidade da Avenida São João junto ao Vale do Anhangabaú, foi o espaço escolhido para as apresentações. Um palco aberto, na rua, gratuito, para quem quiser ali se divertir com os calungueiros botando bonecos(2). O local escolhido no Boulevard está coberto por uma gigantesca lona junto a um contêiner dos parceiros do projeto Encena Brasil que promove circulação de inúmeros artistas por São Paulo. Parceria a ser destacada, porque a lona possui um pé direito alto protegendo a todos do sol forte do dia e uma possível chuva, bem como não atrapalha a qualidade do som. Já o contêiner serve durante noite para guardar as toldas(3)  e demais equipamentos técnicos.

Manhã ensolarada e todos os brincantes montando suas tendas em forma semicircular junto à estrutura do evento, enquanto é feita a equalização de som e afinação de uns poucos refletores, suficiente para iluminar embaixo da lona no entardecer. Chegada a hora do inicio da brincadeira coletiva. As 14h já estavam os músicos do Trio Agrestino, que acompanha há um bom tempo o Grupo Mamulengo da Folia/SP, lascando um forró pegado. O povo vai chegando enquanto alguns bonequeiros realizam a dança dos bonecos. Destaque para Mestre Saúba (PE) com sua boneca Dona Lindalva e a mamulengueira Rosineide de Carpina (PE) com seu boneco Mané Belo. Grudadinhos em seus pares dançaram todos os ritmos puxados pelos músicos. O aquecimento coletivo tava feito e logo teve inicio a overdose de apresentações. 

Combinado que haveria uns 15 minutos para cada apresentação de alguns quadros, cenas, brincadeiras, cada grupo optava livremente o que apresentar. As apresentações, aperitivo do que seria a semana, aconteceram alternadamente. Para o deleite do povo que se apertava correndo de um lado para o outro, alguns realizaram mais de 15 minutos e a farra teve quase 05h de duração.

Quase todos os participantes se apresentaram. Tivemos (não nesta ordem): Mestre Saúba (PE), Roseneide de Carpina (PE), Augusto Bonequeiro e Ângela Escudeiro (CE), Zé Lopes (PE), Valdeck de Garanhuns (PE), Sandro Roberto (SP), Gilberto Calungueiro (CE), Caçuá de Mamulengos (RN), Josias (DF), Mestre Zé De Vina (PE), Natanael (SP) Chico Simões (DF), Danilo Cavalcante (SP), Walter Cedro (DF), Marcelo Gilberto (Cidade do Porto/Portugal), Manuel Mansilla (Buenos Aires/Argentina) e Teatro Nacional de Guinol (Havana/Cuba).

As apresentações coloriram de fato a cidade cinza de Sampa. Era visível o contraste esperado do ambiente vivo e latente proporcionado pelos mamulengos diante das paredes pixadas, descascadas, incolores, mofadas, esquecidas no tempo. A bonequeira carioca Maria Madeira comentou que enquanto o povo se achegava um senhor veio lhe perguntar, com certo receio, se o que acontecia ali tinha saliência. Diante da resposta que não havia isso, ele se aproximou assistiu um pouco e infelizmente teve que se retirar, provavelmente para voltar a velocidade do cotidiano flecha que uma mega metrópole exige. Mas por outro lado foi ótimo observar que os muitos moradores de rua, sentados ou em pé, assistiam concentradíssimos do inicio ao fim, bem como notar que os operários de um prédio em construção se revezavam nas janelas e sacadas, de tempo em tempo dando umas espiadas na folia que se espraiava no ar oxigenando São Paulo.

Entre tantas possibilidades de destaque neste dia, poderia falar de um ou outro grande mestre, mas vou destacar o jovem mamulengueiro Sandro Roberto (SP) por sua ousadia. Não que seja novidade, mas Sandro em sua breve intervenção mostrou bonecos sem roupas e uma empanada sem pano em volta. Tudo nu, menos o manipulador é claro. O desnudamento do mamulengo causou estranhamento e fascinação ao público, pois além de poder ver como são as articulações e estrutura física dos bonecos, podia-se ver o mamulengueiro e seu bailado para movimentá-los. Como numa cena de bailado, onde o manipulador também baila, muitas pessoas do público não fazem ideia da correria, atenção, movimentação que o bonequeiro realiza para proporcionar um desempenho crível dos bonecos aos olhos do espectador, que geralmente os vê acima do pano da tenda, no limite da barra de cima da tenda.  O efeito é realmente impressionante, Sandro consegue deixar translucido o universo, até então meio secreto, da parte de dentro da tenda. 

No período da noite tem inicio uma programação na Galeria Olido, bem próxima ao Boulevard São João. É tudo muito perto, o que facilita os deslocamentos e a logística da produção. Para hoje após um coquetel, Fernando Augusto, do Mamulengo Sorriso (PE) e Augusto Bonequeiro (CE) preencheram a galeria de risadas e ótimos relatos históricos, antropológicos, sociológicos e.... Fuleragem. Explico: Augusto abriu a noite com o Boneco Fuleragem, construído por mestre Boca Rica, exímio e histórico mestre no feitio dos bonecos. Fuleragem é o boneco de ventriloquia que Augusto apresenta por décadas.

Na sequencia Fernando Augusto, do Mamulengo Sorriso (Olinda/PE) pesquisador de mãos cheias e um intelecto e conhecimento surpreendente deste universo mamulengueiro. Tem uma importância muito grande no levante do mamulengo no Brasil, segundo muitos dos artistas que aqui estão, Fernando Augusto é o responsável pelo resgate e elevar a auto estima de muitos mestres que já estavam quase vendendo ou aposentando suas malas de mamulengos(4). Creio que sua trajetória não caberia em uma biografia de dois tomos.

Fernando Augusto apresenta na sua projeção multimídia um legado de quase 40 anos dedicados a esta arte. Comenta sobre a luta pelo reconhecimento do Mamulengo como patrimônio Imaterial e lasca a seguinte frase na questão do conflito, ou não, do novo com o velho: "Não existe vanguarda que não repouse na tradição!". Mais a frente cita que "A tradição é o caráter de uma nação!", e explana com desenvoltura parte da história do mamulengo, indo do Cartelet medieval(5)  ate a barraca de João Redondo. Como pesquisador, multi artista e sobre tudo cidadão da arte do mamulengo, Fernando não poderia deixar de citar o descaso público com os grandes acervos dos mamulengueiros do Brasil. Uma vergonha que a falta de incentivo proporcione que uma arte tão brasileira possa sempre estar na berlinda dos editais brasileiros. Relegados a uma fatia ínfima das verbas destinadas a cultura.

No momento do debate com o público, o mestre brincante Ilo krugli, do Grupo Vento Forte (SP), diz que mesmo nas dificuldades tremendas o sonho deve continuar. Que não é possível deixar nas mãos de Deus que as coisas melhorem. Ilo, admitindo ser ateu, diz: "Deus é minhas mãos que trabalham". Krugli estende as mãos abertas para o alto e menciona que tudo está na artesania feita pelas mãos, na árdua luta diária por sobrevivência. Ao relatar o sonho de um dia construir um memorial do Vento Forte, larga a frase que resume a luta de toda cultura brasileira: "Vivemos um momento de muito desperdício de nossa cultura!".

Para finalizar o relato de hoje. Deixo aqui desde já, meus sinceros parabéns a equipe de produção do 3º Encontro: o Danilo Cavalcante, Natália Siufi, Pollyanna Aguilar e Lucas Drosina. Pela excelente e competente forma que estão levando o evento. Foi um dia de muita atenção, não só pela dinâmica proposta, como também pela dedicação e acessoria necessária aos mestres mais velhos. Realmente mereceram de fato todos os elogios repetidos o dia todo pelos mestres mamulengueiros. Parabéns!

Amanhã, quarta-feira, iniciam as apresentações inteiras dos Brincantes participantes. Cada um com sua tolda, suas especificidades, ritmos e fuleragens, pois mesmo que sejam apresentações de mamulengos, há um sotaque especial de cada região, estado ou cidade. Será mais um dia histórico na vida de São Paulo. 
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Notas
1.  Márcio Silveira dos Santos é integrante do Grupo Manjericão - Porto Alegre/RS. Possui graduação e mestrado em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFRGS, especialização em Psicopedagogia. Sócio pesquisador da ABRACE - Associação Brasileira de Pesquisadores de Pós-Graduação em Artes Cênicas e do GT Artes Cênicas na Rua da ABRACE. Articulador da RBTR - Rede Brasileira de Teatro de Rua e conselheiro titular do Colegiado Setorial de Teatro/CNPC/MinC.
2.  Apresentar com bonecos, botar a brincadeira pra acontecer.
3.  Também conhecidas como empanada, tenda, palco dos bonecos.
4.  Mala de mamulengos é a forma de expressar onde o mamulengueiro guarda e leva seus bonecos pelo mundo. Não necessariamente no formato de uma mala, pode ser um cesto, bolsa de tecido ou couro, sacola estilizada, etc. Alguns como Mestre Zé Lopes, possuem cerca 120 bonecos na sua mala.
5.  Estrutura, como cenário teatral do medievo repleto de detalhes renascentistas, bem mais rebuscadas que a tenda do brincante de hoje.


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