Por Daniela Landin
Buzina, vozes e todo tipo de barulho possível em um espaço público. Um fluxo incessante de carros, movimentação de ônibus, de onde entra e sai gente, vai-e-vem de pessoas deslocando-se em variadas direções que, inseridas em processo de naturalização da agitação generalizada, da rotina acelerada, do freqüente desviar-se de um corpo que dorme no meio da calçada compõem o cenário de boa parte do Centro de São Paulo, em um final de manhã de uma segunda-feira. Estamos na Avenida São João. De lá, uma caravana repleta de mestres mamulengueiros, vindos dos mais diferentes estados brasileiros, como Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte, Piauí, Distrito Federal, além de artistas de Cuba, Argentina e Portugal, partiu em direção à Guararema. E nesta pacata e bem cuidada cidade do interior paulista, fomos recebidos por outro mestre, Valdeck de Garanhuns.
A casa deste pernambucano que há anos reside em São Paulo, morada-ateliê, é, mais que uma agradável residência, um espaço de preservação de um rico material relativo às culturas populares, com destaque para as manifestações de teatro de mamulengo. Um acervo belíssimo de bonecos confeccionados por inúmeros grandes mestres enche nossos olhos, instiga nossa imaginação e nos silencia diante de tamanha potência expressiva, carregada de saberes e sentidos ancestrais, que se modificam e se ressignificam ao longo dos processos históricos. Com a chegada dos artistas populares, reafirmou-se, em cada canto da casa de Valdeck, a ode à arte do mamulengo, tradicional e contemporânea ao mesmo tempo, numa reunião de mestres participantes de uma longa história de artesania e resistência. Na contemplação dos bonecos, os "conhecedores" identificavam o artesão pelos traços do talho na madeira. Passando por ali, alguns brincantes reconheciam não só as próprias obras, como a de outros e era possível ouvir comentários como "esse é de Solon" ou "esse daqui é de Boca Rica", em referência aos saudosos mestres – o primeiro de Carpina, em Pernambuco, e o segundo de Ocara, no Ceará.
Dessa forma, a abertura do III Encontro de Mamulengo foi caracterizada por um Encontro de Mestres, em visita à casa de um deles. Um lugar onde se reuniram brincantes como os pernambucanos Zé de Vina – 70 anos, 58 de brincadeira – e Zé Lopes – 50 de seus 60 anos dedicados ao mamulengo –, por exemplo, e jovens artistas como o argentino Manuel Mansilha, que nos apresentou o seu Luís. Um inquieto boneco feito de espuma e tecido que toma todo o braço de seu manipulador e que parece ser parte do próprio corpo dele, como uma dimensão do artista que ganha corporeidade. Um boneco que pensa por si e se ressente profundamente ao se dar conta de que não é livre, que foi enganado e que só existe porque existe um manipulador que lhe insufla vida. Mas quem é livre?, indaga o boneco. "Você é livre?", pergunta ao público.
Eita, que ainda teve música e comida! Um forró gostoso, conduzido por Zé Lopes que afirmava não ser sanfoneiro, mas que ainda assim nos divertiu bastante tocando o instrumento, e um almoço dos bons que foi oferecido pelos anfitriões – uma mesa cheia de delícias caseiras, regada a muito suco de caju e de limão, e, depois, os doces que nos deleitaram.
No final da tarde, deixamos Guararema. Cortada pelo rio Paraíba, a cidade, repleta de pequenos templos evangélicos, abriga curiosamente a mais antiga igreja que presta homenagem a São Longuinho no país – e que data da metade do século XVII –, mas que recebeu o nome da padroeira de Guararema, Nossa Senhora da Escada. Antes de partirmos, na praça central, já com o sol se pondo no horizonte, uma foto foi tirada para registrar o momento que deu início a esta terceira edição do Encontro.
A próxima parada foi o Espaço Sobrevento, sede da companhia homônima dedicada ao teatro de formas animadas e localizada na região do Brás, bairro que se encontra na divisa entre a zona leste e o Centro da cidade de São Paulo. No local, por ocasião do lançamento do livro bilíngüe (português-espanhol) Cassimiro Coco de cada dia – Botando Boneco no Ceará, de Ângela Escudeiro, conhecemos um pouco do intenso processo de pesquisa da autora, que também é bonequeira. Ângela relatou a travessia e parte dos obstáculos enfrentados nela para recuperar e documentar histórias e modos de fazer teatro de mamulengo (também chamado de "Cassimiro Coco") em seu estado de origem. Sua fala foi marcada pela convicção e pela sensibilidade de quem acredita na importância de um trabalho comumente esquecido e desvalorizado pelo poder público.
Em seguida, abrindo a programação de apresentações do Encontro, os cubanos do Teatro Nacional de Guinol nos presentearam com o espetáculo La Caperucita Roja, com base na clássica narrativa conhecida por nós como "A Chapeuzinho Vermelho". Marcante deste trabalho é a recorrência de explicitar os expedientes da estrutura do teatro de bonecos. Diante do público, os artistas chegam no espaço e iniciam a montagem da empanada, a tradicional barraca atrás da qual o mamulengueiro se esconde para dar vida ao brinquedo. Mas, neste caso, há todo momento o manipulador e a própria manipulação são revelados, por meio de recursos de iluminação ou simplesmente ao dar continuidade ao movimento do boneco do lado de fora da barraca. Além disso, alguns personagens eram trocados de modo a expor propositalmente a mão de um dos bonequeiros, fazendo com que todos acompanhassem a mudança de um brinquedo para o outro. Outra característica do espetáculo está na relação com o público, especialmente com as crianças que se envolvem bastante com as situações apresentadas em cena, em que algumas são até mesmo convidadas a participar diretamente de uma delas. Com um caráter divertidamente pedagógico, o espetáculo promove certa aproximação com os elementos que edificam o teatro de bonecos ao recontar esta antiga história que povoa o imaginário popular há séculos.
*Com este texto, damos início a uma série de relatos acerca das atividades do III Encontro de Mamulengo em São Paulo e das experiências possibilitadas a partir de uma programação com apresentações, oficinas, rodas de prosa e muita troca. Arrocha o fole!
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