Relato Diário do 3º Encontro de Mamulengo em São Paulo.
Márcio Silveira dos Santos(1)
Dia 28/05/2012 – Segunda – Feira.
Hoje inicia a tão aguardada maratona de Mamulengo na capital econômica da América Latina. Trata-se do 3º Encontro de Mamulengo em São Paulo, que acontece de 28 de maio a 03 de Junho de 2012. O Encontro idealizado e produzido por Danilo Cavalcante “Canhotinho”, artista a frente do Grupo Mamulengo da Folia, mostra maturidade ao chegar nesta 3ª edição, sobretudo a capacidade de resistência cultural diante das dificuldades por políticas públicas para arte pública no Brasil. Serão diversas atividades totalmente gratuitas com os maiores e melhores bonequeiros e bonequeiras nesta especificidade tão peculiar do teatro de bonecos do País. O Mamulengo é o nome designado, em Pernambuco e no Brasil em geral, a brincadeira de linguagem popular, tradicional, com bonecos de luva. No Ceará é também denominado Cassimiro coco(2). Nesta celebração ímpar haverá também apresentações internacionais, com artistas de Cuba, Argentina e Portugal.
O Encontro é de certa forma um raio-X da trajetória de Danilo Cavalcante, artista nascido no Sítio de Taruassu, em Canhotinho/PE, que vem para São Paulo em busca de melhores condições de vida e espaço de trabalho para seu oficio. Aqui chegando dedica-se arduamente pelo reconhecimento de uma arte milenar, e porque não dizer, que é hoje a mais autêntica na área do Teatro de formas animadas no Brasil. Segundo Danilo “Canhotinho”, como é conhecido por muitos bonequeiros (seguindo a tradição de muitos artistas terem agregados em seu nome artístico à procedência de nascimento), um dos muitos objetivos do Encontro é proporcionar uma maior visibilidade da arte do Mamulengo e mostrar que é desenvolvido em inúmeras partes do Brasil. Além é claro, injetar oxigênio e dar um colorido diferente a cidade cinza de concreto e aço que São Paulo se tornou.
Neste primeiro dia tudo começa sutil como o olhar dos antigos mestres. Ao descer do elevador era possível ver sentados confortavelmente no hall de entrada do hotel, um naipe de mestres do Mamulengo: Augusto Bonequeiro-CE, Zé Lopes-PE, Gilberto Calungueiro-CE, Carlinhos da Carroça de Mamulengos-CE, Afonso Miguel-PI, Mestre Zé de Vina-PE, Mestre Saúba-PE, Natanael-SP. Entre os muitos assuntos o papo alternava de histórias de pescaria e escambo de veículos a relatos sobre o convívio em quartos de hotel, com ênfase na clássica orquestra de roncos. Assim seguiu, quem roncava mais, outros menos, entre os mestres, causando muitas risadas a quem acompanhava a roda de conversa. Logo em seguido chega o ônibus para deslocamento a primeira atividade do dia chamada “Casa do Mestre”, que consistiu na visita a casa de Valdeck de Garanhuns-PE em Guararema/SP, cidade tranquila bem próxima da capital paulista. Cidade onde também mora Danilo “Canhotinho”. Durante a viagem, os mestres foram cantando músicas, contando histórias e piadas de duplo sentido.
Em Guararema fomos muito bem recebidos por Valdeck e família. Já estava por lá também o multi artista Romualdo Freitas, da Tropa do Balaco Baco, de Arcoverde-PE, que veio acompanhar de perto a brincadeira. A casa atelier de Valdeck de Garanhuns é fantástica, não há espaço nas paredes que não tenha xilogravuras de sua cunha e outros grandes mestres, mas o que mais chama a atenção é sua coleção de bonecos. Possui um acervo extraordinário, adquirido em décadas de trabalho nesta arte, há bonecos de todos os grandes fazedores de Mamulengo. Numa das partes mais dedicadas aos mamulengos ficamos mais de hora observando os traços característicos de seus autores. Alguns dos próprios que ali estavam, teciam comentários sobre suas mudanças, evoluídas ou não, no feitio e trabalho. Bem como discorriam sobre os tipos de madeiras boas para o feitio, principalmente o mulungu, madeira leve que só pode ser esculpida depois de bem seca.
Antes do almoço, o Mestre Zé Lopes pegou uma sanfona e lascou cantorias de forró, vaquejada e o que mais lhe vinha à cabeça, sempre alegando que não era sanfoneiro. Em poucos minutos já estava formada a “Banda da Casa do Mestre” com artistas de vários Estados brasileiros. Após o almoço indescritível de tão apetitoso, e uma performance curta do bonequeiro argentino Manuel Mansilla e seu boneco Luis, o mestre Zé Lopes pegou de novo na sanfona e seguiram-se mais 2 horas de cantoria. Destaco dois momentos: um foi que enquanto o Mestre tocava entrou no pátio, quase despercebida, uma gari da Prefeitura que varria a rua. Ela conversou rapidamente com ele e saiu tão rápida quanto entrou, o mestre relatou depois que na verdade ela queria contratá-lo para um show de forró na cidade. Outro momento foi quando Zé Lopes contou como aconteceu a grande mudança em sua vida. Contou que seu pai queria que o filho fosse Engenheiro Mecânico, mas aos 10 anos de idade conheceu o mamulengo e se apaixonou pela arte. Sua mãe, no inicio inconformada, dizia que ser artista era ser maloqueiro. Mas não teve jeito, ele sorriu e soltou o fole com o refrão da próxima música “Pau que nasce torto não tem jeito morre torto. Quem nasceu pra ser rei nunca perde a majestade.” Eita forró lasqueira!
Pra finalizar a visita a cidade de Guararema, houve um passeio por dois locais, ao Centro Artesanal Dona Nenê, na praça central onde Danilo faz suas apresentações, e na Igreja de Nossa Senhora da Escada. Sim, isso mesmo, dentro da Igreja construída em 1652 vê-se a imagem de Nossa Senhora da Conceição com uma escada na mão. Mas o Santo mais devotado por lá é São Longuinho. A imagem que víamos era uma espécie de boneco articulável, pois nos foi relatado que a cabeça do Santo foi encontrada soterrada no piso antigo da Igreja, montaram a cabeça e braços fixados num pequeno tronco de madeira coberto por sua vestimenta. História narrada pelo fotografo da Prefeitura João Augusto e Dona Maria Santana, uma senhora de idade avançada que nos abriu as portas da Igreja, segurava no antebraço uma argola grossa de ferro com seis chaves pesadíssimas denotando serem também de 1652.
Em tempo, duas curiosidades históricas: Guararema significa terra de Pau d’alho, uma madeira fedida que servia aos índios identificarem as rotas de andanças. Nossa Senhora da Escada foi a estratégia dos Jesuítas para convencer os índios a aceitarem a Igreja, pois colocaram sobre as sepulturas uma cruz, alimentos e uma escada, dizendo que serviam para as almas se alimentarem e depois subirem aos céus na escada.
Encerrada em mais de cinco horas de visita a Guararema, nos deslocamos para a sede do Grupo Sobrevento no bairro da Mooca em São Paulo, para o lançamento do livro “Cassimiro Coco de Cada dia: botando boneco no Ceará” de Ângela Escudeiro e a apresentação do Teatro Nacional de Guinol – Havana/Cuba. Ângela contou que com muito esforço e custos acima do que possuía conseguiu realizar uma pesquisa que primou por buscar os mestres do Cassimiro Coco nos escondidinhos recantos do Ceará. Procurando registrar, fortalecer e reafirmar a evolução do teatro de bonecos. Seguiu-se a apresentação dos cubanos, que mostraram o quanto uma simples e velha conhecida história mundial pode ser recontada de formas diferentes. Os dois atores revezavam os personagens da peça “La Caperucita Roja” (Chapeuzinho Vermelho), os personagens principais como Chapeuzinho, vovozinha, lobo mau e mãe da Chapeuzinho eram trocadas muitas vezes as vistas do público, pois a empanada (tenda, barraca, pano) era entrecortada na vertical, o que permitia os bonecos surgirem de formas diferente nas cenas, e utilizaram o recurso de uma luz contra, mostrando como num teatro de sombras os atores se movimentando, falando e trocando os bonecos entre si. Assim revelados promoviam uma cumplicidade do público e um aprendizado para quem desconhece as técnicas de manipulação de bonecos.
Destaco da apresentação duas cenas. A primeira foi o momento em que Chapeuzinho coloca um supositório no lobo, que já havia engolido a vovozinha. Uma cena que poderia ser forte demais para as crianças que ali assistiam, mas era repleta de uma delicadeza e preciosismo tão interessante que se transformou num dos momentos mais hilários da noite. A segunda foi quando o lobo engole a Chapeuzinho, eu jamais havia visto o Lobo comer de fato a Chapeuzinho em cena aberta. O boneco grande e assustador do Lobo devorava tão primorosamente o boneco da Chapeuzinho que se esquecia da manipulação precisa dos bonequeiros. No mais, embora a repetição de certos momentos que terminaram por certa monotonia, foi uma apresentação muito interessante e uma aula.
Após, seguimos para o final do primeiro dia do 3º Encontro de Mamulengos em São Paulo, com um jantar agradável no Restaurante Farinata, em uma boa conversa descontraída com os bonequeiros do Caçuá de Mamulengo-RN, Manuel Mansilla-Argentina e o mestre Fernando Augusto do Mamulengo Sorriso-PE.
Amanhã, terça-feira, haverá a Tradicional Roda de Mamulengos, com todos os Brincantes, que durante horas realizaram intervenções na rua, no Boulevard São João.
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Notas:
1. Márcio Silveira dos Santos é integrante do Grupo Manjericão - Porto Alegre/RS. Possui graduação e mestrado em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFRGS, especialização em Psicopedagogia. Sócio pesquisador da ABRACE - Associação Brasileira de Pesquisadores de Pós-Graduação em Artes Cênicas e do GT Artes Cênicas na Rua da ABRACE. Articulador da RBTR - Rede Brasileira de Teatro de Rua e conselheiro titular do Colegiado Setorial de Teatro/CNPC/MinC.
2. Coelho, Ângela Maria Escudeiro Luna. Cassimiro coco de cada dia: botando boneco no Ceará. Fortaleza: IMEPH, 2007. P. 13.
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