Sétima Carta às Esquerdas
A que esquerdas me dirijo? Aos partidos e movimentos sociais que lutam contra o capitalismo, o colonialismo, o racismo, o sexismo e a homofobia, e a todos os cidadãos que não se consideram organizados mas partilham os objetivos e aspirações daqueles que se organizam para lutar contra tais objetivos. É um público muito vasto, sobretudo porque inclui aqueles que têm práticas de esquerda sem se considerarem de esquerda. E, no entanto, parece tão pequeno. Nas últimas semanas, as esquerdas tiveram a oportunidade de vivenciar a riqueza global das alternativas que oferecem e de identificar bem as forças de direita a que se opõem. Infelizmente, essa oportunidade foi desperdiçada. Na Europa, as esquerdas estavam avassaladas pelas crises e urgências do imediato e, noutros continentes, os média ocultaram o que de novo e de esquerda pairava no ar.
Refiro-me à Conferência da ONU Rio+20 e à Cúpula dos Povos que se realizaram no Rio de Janeiro. A primeira realizou-se na Barra da Tijuca e a segunda no Aterro do Flamengo. Eram poucos os quilómetros que as separavam, mas havia um vasto oceano de distância política entre elas. Na Barra, estavam os governos e a sociedade civil bem comportada, incluindo as empresas multinacionais que cozinhavam os discursos e organizavam o cerco aos negociadores oficiais. Na Barra, a direita mundial deu um espectáculo macabro de arrogância e de cinismo ante os desafios incontornáveis da sustentabilidade da vida no planeta. Nenhum compromisso obrigatório para reduzir os gases do efeito estufa, nenhuma responsabilidade diferenciada para os países que mais têm poluído, nenhum fundo para o desenvolvimento sustentável, nenhum direito de acesso universal à saúde, nenhuma quebra de patentes farmacêuticas em situações de emergência e de pandemias. Em vez disso, a economia verde, o cavalo de Troia para o capital financeiro passar a gerir os bens globais e os serviços que a natureza nos presta gratuitamente. Qualquer cidadão menos poluído entende que não é vendendo natureza que a podemos defender e não acredita que os problemas do capitalismo se possam resolver com mais capitalismo. Mas foi isso o que os média levaram ao mundo.
Ao contrário, a Cúpula dos Povos foi a expressão da riqueza do pensamento e das práticas que os movimentos sociais de todo o mundo estão a levar a cabo para permitir que as gerações vindouras usufruam do planeta em condições pelo menos iguais às de que dispomos. Milhares de pessoas, centenas de eventos, um conjunto inabarcável de práticas e de propostas de sustentabilidade. Alguns exemplos: defesa dos espaços públicos nas cidades que priorizem o pedestre, o convívio social, a vida associativa, com gestão democrática e participação popular, transportes coletivos, hortas comunitárias e praças sensoriais; economia cooperativa e solidária; soberania alimentar, agricultura familiar e educação para a alimentação sem produtos agro-tóxicos; novo paradigma de produção-consumo que fortaleça as economias locais articuladas translocalmente; substituição do PIB por indicadores que incluam a economia do cuidado, a saúde colectiva, a sociedade decente e a prosperidade não assente no consumo compulsivo; mudança na matriz energética baseada nas energias renováveis descentralizadas; substituição do conceito de capital natural pelo de natureza como sujeito de direitos; defesa de bens comuns, como a água e a biodiversidade, que apenas permitem direitos de uso temporários; garantia do direito à terra e ao território das populações camponesas e indígenas; democratização dos meios de comunicação; tributação penalizante das atividades extrativas e industriais contaminantes; direito à saúde sexual e reprodutiva das mulheres; reforma democrática do Estado que elimine a pandemia da corrupção e trave a transformação em curso do Estado protector em Estado predador; transferências de tecnologia que atenuem a dívida ecológica.
Se as esquerdas quiserem ter futuro, têm de adoptar o futuro que está contido nestas propostas e transformá-las em políticas públicas.
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