Pesquisar este blog

sábado, 8 de junho de 2013

Mulheres Artistas de Rua

...  a questão da mulher...

Por Licko Turle e Jussara Trindade 

... Vários espetáculos do XIII Encontro trouxeram uma questão que merece ser discutida dentro do universo teatral. O que significa ser mulher no Teatro de Rua? Aventura? Destino? Vaidade? Sacrifício? Diversão? Antes, o que significa ser mulher que trabalha fora, na rua, num país que guarda ainda hoje o ranço de uma colonização judaico-católica, conservadora, onde o lugar da mulher é dentro de casa? Em sua maioria, a mulher brasileira continua restrita ao universo do privado; o do público é, ainda, o espaço social do homem - diria o antropólogo social Roberto DaMatta.
E o que significa ser, além de simplesmente mulher, atriz de rua? Se, ser atriz já é uma coisa assim, digamos... "moderninha" para os machistas de plantão, imagine ser atriz no espaço pouco protegido da rua! Ela vê e ouve cada coisa que lhe dirigem... não é fácil esse enfrentamento, o que acaba muitas vezes trazendo para a mulher que atua na rua a justificada necessidade de se proteger, de alguma forma, dos possíveis ataques ideológicos de um público ainda não acostumado a dividir igualitariamente esse espaço. Uma defesa que pode se manifestar de muitas formas. Por isso, tentamos colocar essa importante questão como mais um ponto de partida para refletirmos sobre o teatro de rua, no Encontro de Angra dos Reis. E encontramos coisas muito interessantes!
Observamos, por exemplo, no espetáculo A Brava (Brava Companhia – SP), uma brava protagonista que apresenta Joana D'arc, a jovem camponesa que irá liderar o exército francês contra os ingleses. E depois, traída pelo próprio rei que ajudou a coroar, morre como herege na fogueira da Santa Inquisição. O peso de um drama tão intenso e comovente pôde, entretanto, ser "quebrado" pela divertida atuação dos atores, cujo alinhavo dramatúrgico levou em conta elementos importantes para a rua – abertura para a improvisação, agilidade, comunicação com o público, musicalidade exuberante, uso criativo do espaço – uma verdadeira festa para a alma! O elenco masculino, totalmente à vontade, conseguia fazer da apresentação uma grande brincadeira, onde o divertimento não diminuiu absolutamente em nada a seriedade do tema e o rigor estético com que o mesmo estava sendo tratado ali.
Mas tivemos um pouco de "pena" – se é que se poderia falar assim - da atriz, única mulher em cena, cujo papel não lhe permitia participar da diversão. De certo modo, coube-lhe o aspecto árduo e sofrido da história, de modo que, enquanto todos corriam de um lado a outro, tocavam instrumentos, cantavam ou praguejavam, etc, a atriz mantinha bravamente a sua postura de heroína. Fazendo uma analogia com o futebol, Licko comentou a respeito do goleiro que, ao contrário do restante do time que joga movendo-se em conjunto por todo o gramado, precisa permanecer sozinho naquele espaço restrito que lhe é dado, atento e na defensiva, não podendo permitir a si mesmo um só segundo de distração, sob a pena de afundar todo o resto da equipe! Resumindo, não pode brincar em jogo, assim como a protagonista de A Brava também não pôde brincar em cena. Também ficamos pensativos sobre a questão do herói/heroína que é punido pelos deuses por tentar mudar o seu destino (em que tragédia grega eu vi esse tema, mesmo?), arquétipo do ser humano que aspira ir além de sua condição. E como isto, ainda hoje, é válido para as mulheres que ousam ir para a rua fazer arte... Afinal, divertir-se na rua é para as "mulheres da vida"!
Noutro momento, tive (Jussara) a oportunidade de conversar informalmente sobre isso com a atriz, Rafaela Carneiro. Trocamos impressões sobre a questão e acabei sugerindo a ela, como uma possibilidade de exercício teatral, descobrir/criar/explorar/dialogar/aprofundar e, principalmente, brincar com outros aspectos de Joana D'Arc. E talvez esse personagem revele mais coisas. Mas, quero deixar claro que não houve, aqui, nenhuma intenção (ou pretensão!) de propor ao grupo uma outra concepção para o personagem e o espetáculo que, repito, foram, para nós, arrebatadores.
Observamos, em outros coletivos, as funções de direção/apresentação/narração serem exercidas por mulheres, como foi o caso de A FARSA DO PÃO E CIRCO (Grupo Teatro de Caretas – CE), de EH BOI! (Teatro Kabana – MG) e de DEUS E O DIABO NA TERRA DE MISÉRIA (Oigalê - Cooperativa de Artistas teatrais de Porto Alegre – RS). Bastante interessante foi o debate realizado no final deste último, durante o qual o grupo explicitou sua opinião quanto à imagem da mulher divulgada pelo Centro de Tradições Gaúchas – o CTG (instituição que se expandiu por todo o país e também no exterior) – mostrando que a postura política de um coletivo se dá não apenas por meio da mensagem direta, mas também pelos signos presentes na cena. Neste caso, tratava-se do uso de botas de cano alto (elemento fundamental da vestimenta do "gaúcho" típico) pela atriz-apresentadora, uma mulher. Uma inversão sutil que pode passar despercebida por muitos públicos, mas certamente não pelo conterrâneo mais conservador, para quem a "prenda" deve usar um calçado delicado, condizente com a condição – e passividade - feminina. Um espetáculo cativante, tecnicamente impecável e profundamente revelador, que dá vontade de assistir novamente!
            No Teatro de Caretas (CE), a diretora-atriz-apresentadora optou pela adoção de um figurino tradicionalmente masculino (casaca e cartola) e pela liderança explícita em cena, demonstrando também a posição do grupo a respeito do espaço a ser ocupado pela mulher neste meio artístico.
              No espetáculo A INCRÍVEL VIAGEM DA FAMÍLIA AÇO (Cia Entreato – RJ), vimos uma atriz atuar como protagonista, num papel masculino. Imediatamente, surgiu à nossa mente a pergunta: Por que não uma palhacinha em lugar do palhacinho? Existiu alguma exigência para o masculino? Ou foi uma condição dada como natural, por tratar-se de um personagem que "sai pelo mundo", coisa culturalmente atribuída ao homem, mesmo criança? Pela voz feminina, aparentemente mais adequada para o papel de um menino?
Se quisermos discutir profundamente a questão dos gêneros, temos que levar em conta a existência de uma ideologia, introjetada socialmente, segundo a qual a mulher – em sua condição de mulher - não pode assumir uma função central ou realizar façanhas fora do ambiente familiar e doméstico; para conseguir isso, ela tem que lançar mão da estratégia de travestimento, recurso tradicional das comédias de confusão de identidade, das farsas medievais, etc. Só que, aqui, essa troca não faz parte da trama; o espectador não participou desse processo; a questão permanece no terreno do realismo ilusionista e acaba se tornando paradoxal, uma vez que a mulher é visível, embaixo do figurino e da maquiagem! Mas, todos se referem a ela como "ele". O público, em sua inteligência, percebe que há uma discrepância entre o dito e o mostrado, e que aquela situação foi colocada como "verdade", não como "jogo". Se assim fosse, seria um motivo a mais de riso e diversão.
            A mesma questão está presente também em A COMÉDIA DE ARLEQUIM E MIRANDOLINA (Carrera Gomlevsky – RJ). Mas, neste espetáculo, a situação é diferente, uma vez que a condição masculina do personagem protagonista está previamente dada pelo texto clássico. A Cia Entreato tinha a possibilidade de optar pelo gênero do personagem. Já no caso deste coletivo, trata-se de uma adequação, talvez sem alternativa, para um elenco predominantemente feminino. Ainda assim, permanece a questão da adoção de textos que não atendem às possibilidades concretas de um coletivo.
            O Teatro Kabana – MG trouxe, com EH BOI!, uma brincadeira de rua liderada por um gigantesco boi (títere) que, literalmente, roubou todo o espetáculo! Delicioso e surpreendente. Antes de chegar a essa apoteose, porém, houve toda uma ação cênica, e foi nessa parte introdutória em que encontramos um aspecto sobre o feminino que, penso, merece maior reflexão. Em dado momento, entra em cena uma mulher. De costas, dançando sensualmente para a platéia, aumentando assim o suspense sobre a sua presença, ela é apresentada pelos músicos como uma doce mocinha que a partir daí irá narrar a história. Rosinha (acho que era esse o nome do personagem, mas haja memória pra tanto detalhe...) vira-se, mostrando uma atriz vigorosa, plena e... mulher madura! Presença forte em cena, buscava uma comunicação direta com o público, convidado a interagir sob a sua batuta de maestrina. Mas alguma coisa permanecia estranha, eu sentia um desencontro entre a atriz e o personagem. Teria sido uma opção do grupo, jogar com o público o efeito desse contraste? Afinal, a cultura popular está repleta de brincadeiras onde se joga, distanciadamente, com esse tipo de dinâmica. Mas, ali, isso não ficou tão claro para mim. Numa constatação mais imediata e superficial sobre a questão do feminino, logo me veio à mente o problema que a mulher enfrenta acerca de uma certa "ditadura da juventude", que traz como conseqüência a negação da própria idade à medida que esta avança. Quem já não passou pela brincadeirinha de esconde-esconde sobre o ano de nascimento, etc? Cheguei a comentar com um dos atores, ao cumprimentá-lo pelo belo espetáculo, sobre a possibilidade de se criar uma narradora matriarca, guardiã de um conhecimento milenar, arquétipo da sabedoria, uma espécie de griô mulher. Ainda penso que poderia ser esta uma experimentação teatral válida, para o Kabana. Mas, ainda assim, continuei a pensar no assunto, pois a mim mesma parecia que tudo isso trazia, ainda, outras questões menos óbvias. Lembrei de uma grande amiga, sanfoneira e atriz, que trabalha há muitos anos com contação de histórias e teatro-educação, e que construiu para si uma narradora assim, alegre e divertida, que a garotada adora. Por que uma narradora tem que ter, necessariamente, esse ar infantil?
Arrisco, aqui, a hipótese de que talvez tenha se estabelecido, cultural e subjetivamente, uma espécie de relação natural entre o teatro de rua (que o imaginário popular associa imediatamente ao circo, por sua ancestralidade) e o teatro voltado especificamente para o público infantil. Dentro dessa lógica, a mulher-que-conta-uma-história é, necessariamente uma mulher muito jovem (a mãe com seus filhos pequenos, a tia na escola, etc). E o que acontece com essa mocinha, quando essas mesmas crianças crescem, tornam-se jovens e depois, adultas?  Pergunto, então: qual é o espaço da mulher madura dentro do teatro de rua? E ainda: existe de fato esse espaço, ou será preciso criá-lo, para não ficarmos paralisados dentro dos estereótipos que a nossa sociedade (ocidental, industrial, masculina, etc) estabeleceu para a mulher?   
O grupo Teatro Meio Fio – RJ teve o mérito de levar para a rua, com MEDEA, um clássico com personagens femininos muito marcantes, demonstrando a garra e a coragem do coletivo que, além disso, ainda fez a sua apresentação debaixo de chuva. Entretanto, o tratamento dado à peça pela direção, que transportou uma dramaturgia trágica para outra, dramática, de certa forma diminuiu a grandiosidade desses personagens. A cena de Medea, chorando compulsivamente no chão, não lembrava de modo algum a mulher forte do mito de Eurípides, profundamente conhecedora de magia, capaz de enfrentar as maiores dificuldades num país estrangeiro! O figurino também não ajudou muito nessa construção da protagonista; infelizmente, o imaginário pop masculino está repleto de clichês que ligam o estilo utilizado (o corpete justo, preto, com a cintura à mostra e saia flutuante) a uma sensualidade que tende a atrair para si toda a atenção desse espectador. Nada contra a criação de uma Medea com um visual "Madonna", que de certa maneira traria para a atualidade a questão da "ética da paixão feminina", tão antiga quanto contemporânea, desde que tais signos não desviem o foco do tema (sobre o qual, afinal, o grupo pretende refletir, penso eu), mantendo na superfície uma questão tão presente na cultura ocidental desde a Grécia Antiga. Até que ponto uma mulher seduzida, traída e abandonada num lugar estranho, pode chegar? Trazer tal discussão para a rua pode ser, de fato, um maravilhoso exercício teatral e até mesmo de cidadania. Por isso, creio que vale a pena continuar a se descobrir Medea.
            Discreta, porém essencial, foi a participação de Lílian no espetáculo CAFÉ PEQUENO DA SILVA E PSIU (Grupo Off-Sina – RJ), com destaque para a função de sonoplasta. Atuar na área técnica, reduto tradicional masculino é, sem dúvida, um avanço da mulher no teatro de rua, e merece um espaço específico para a troca de conhecimentos nessa área, em eventos futuros.
            Para terminar, não poderia deixar de mencionar a atuação competente e generosa da Michelle, incansavelmente envolvida na complexa função de curadora do Encontro de Angra! Soube enfrentar e resolver os problemas logísticos que foram naturalmente surgindo, usando para isto uma grande força, oculta em aparência tão delicada – atributo feminino por excelência – e deixando à mostra seu amor e dedicação ao teatro e, particularmente, ao de rua. Todos, da Rede, lhe devemos muito!
Enfim, a questão da mulher no teatro de rua está em aberto e merece de seus praticantes e estudiosos as mais cuidadosas reflexões, ainda que se corra o risco de trazer, nesta empreitada, velhos clichês feministas. Mas, creio que é melhor errar por excesso do que por falta, pois questões não resolvidas nesta área também podem tornar-se motivo de conflito – e até rompimento – dentro dos grupos.  


-->

Nenhum comentário: