Adailtom Alves
Teixeira[1]
O Brasil atravessa um
momento político, econômico, social e cultural muito difícil, para dizer o
mínimo. Mas, como todos sabem, o que se colherá amanhã se planta hoje. O teatro
e arte em geral, são fatores de mudanças sociais, com capacidades de
descolonização de nossas mentes e corpos. Os artistas progressistas têm o
grande desafio de criar e sedimentar, aliado a outras forças políticas, uma
nova mentalidade que possa alçar o Brasil a patamares melhores, não em termos
desenvolvimentistas, mas em termos mais humanos, solidários, onde a diferença,
o respeito pela vida seja elemento preponderante em nossas condutas.
Nesse sentido, a arte tem
papel importante. E um dos desafios é fazer com que a arte chegue ao povo, ao
mesmo tempo em que se permite que a própria arte popular ganhe mais espaço.
Além disso, permitir o acesso dos populares às técnicas, para que eles próprios
criem e expressem suas angústias, sonhos e medos artisticamente. Essa tarefa é
também apresentada por Angela Davis em Mulheres,
cultura e política, e se pergunta: “(...) como reconhecemos de maneira
coletiva o legado da nossa cultura popular e o transmitimos para as massas de
nosso povo, a quem, em sua maioria, tem sido negado o acesso aos espaços
sociais reservados à arte e à cultura” (2017, p. 166)?
A preocupação não é nova e
muitos foram os artistas ou correntes atentos a essa questão, como os
agitpropistas russos, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht e suas peças
didáticas, o brasileiro Augusto Boal e a turma dos Centros Populares de
Cultura. Mais do que permitir a fruição – sem dúvida muito importante –, é
fundamental permitir que os populares tenham acesso aos meios, isto é, que se
apossem das técnicas para que eles próprios criem, se expressem, apresentando
seus pontos de vistas por meio da arte. Claro que esse trabalho deve ser
seguido também de uma formação política, no sentido de entender melhor a
complexidade da nossa realidade.
Em sendo a arte uma forma de
consciência política, pode vir a sensibilizar e impelir as pessoas a se
envolverem em movimentos organizados, movimentos verdadeiramente preocupados em
uma transformação social positiva. Como afirma ainda Davis, no artigo A arte na linha de frente: mandato para uma
cultura do povo, escrito em 1985 e presente no citado livro: a arte influencia sentimentos e
conhecimentos. Dessa forma, a arte “(...) pode incitar as pessoas no sentido da
emancipação social” (2017, p. 166).
Nesse sentido, o teatro é
uma arma poderosa e o de rua mais ainda, pode misturar-se nas comunidades, nos
movimentos, ir a todos os lugares e realizar o que afirma Canclini: “(...)
utilizar todos os espaços e instituições disponíveis para oferecer a todos os
setores sociais a informação oculta pelos meios de comunicação oficial e para
abrir novas perspectivas de análise” (1980, p. 159).
Claro que a realidade é
complexa, devemos analisá-la de forma dialética e sempre questionarmos sobre os
rumos, avanços e recuos. Distribuir os meios, as técnicas por meio de oficinas,
por exemplo, em coletivos já organizados e que buscam a emancipação de classe
ou identitária, é, digamos assim, fácil e relativamente tranquilo. Mas se
pensarmos em termos de massificação é preciso ir além desses coletivos. Quais
riscos existem ao distribuir conhecimentos técnicos teatrais, por exemplo, em
uma sociedade conservadora, eivada por grupos religiosos ultraconservadores
moral e politicamente? Haverá riscos dessas técnicas servirem a um projeto contrário?
Há que se pensar.
O velho trabalho político de base talvez seja
o caminho, isto é, qualquer trabalho artístico apresentado, bem como oficinas,
vivencias, entre outros, necessitam de um acompanhamento político. Os
procedimentos não devem virem desacompanhados, técnica pela técnica. Se a
perspectiva é que conheçam o caráter social de suas vidas interiores, como
defende Angela Davis, isto é, fazer com que cidadãs e cidadãos reconheçam que
são o que são, ou que estão onde estão, que pensam de determinada forma por
causa de uma série de fatores externos a elas, a arte, bem como seus
procedimentos devem demonstrar que não estamos desvinculados do mundo que nos
cerca. Nascemos em um mundo da cultura já pronto e introjetamos valores, crenças,
enfim, ideologias.
Outro ponto significativo a
se observar é que o processo não pode ser de cima para baixo, nos colocarmos
como uma vanguarda que leva a salvação, mas sim de forma dialógica, como nos
ensinou Paulo Freire: aquele que ensina, aprende e aquele que aprende, ensina.
Ninguém é destituído de cultura, logo, é importante identificar em cada grupo
com quem se trabalha manifestações existentes e que podem vir a somar àquelas
que se leva, bem como serem completamente aproveitadas, bastando, às vezes uma
sistematização para melhor uso, inclusive por outros grupos em outros lugares.
Claro que as forças
progressistas, partidos, movimentos, entidades, precisam compreender a
importância da arte, buscando incentivar e estimular. Assim como é fundamental
que os artistas se somem a essas forças, de forma a se auxiliarem mutuamente,
sem subordinação, pois a arte precisa de liberdade para progredir. Logo, esse
caminho se faz junto, lado a lado. Esse ainda é um ponto de difícil compreensão
por parte das esquerdas e que deve ser também nossa tarefa trabalhar.
O nosso tempo histórico
exige essa aproximação e esse caminhar lado a lado. Se a estética burguesa
sempre defendeu que a arte deve existir para além de qualquer ideologia e da
luta de classes, arte pela arte, fruto de uma criatividade individual, é
justamente aí onde ela se coloca mais política e permissiva. A liberdade que
pleiteio aqui é a apresentada por Walter Benjamin em O autor como produtor, a liberdade de colocar nossa obra em uma
causa. Para Benjamin, a decisão do escritor progressista “(...) se dá no campo
da luta de classes, na qual se coloca ao lado do proletariado. (...) Ele
orienta a sua atividade em função do que
for útil ao proletariado na luta de classes” (2012, p. 129). Mais adiante
comenta Benjamin:
Um autor que não ensina nada aos escritores não ensina ninguém. O caráter modelar da produção é,
portanto, decisivo: em primeiro lugar, ela deve poder orientar outros
produtores em sua produção e, em segundo lugar, colocar à disposição deles um
aparelho mais perfeito. E esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz
consumidores à esfera da produção, ou seja, quanto maior for sua capacidade de
transformar em colaboradores os leitores ou espectadores. Já possuímos um
modelo desse gênero (...). É o teatro épico de Brecht (2012, p. 141-2. Grifo do
autor).
E por quê o teatro tem maior
facilidade de se desvincular dos meios capitalistas, que dominam muito mais as
outras artes? Porque os artistas em sendo criadores e criaturas, carregam
consigo sua arte, logo são donos dos meios de produção. É possível afirmar
ainda que a esmagadora maioria do teatro mais progressista se organiza em
grupo, o que facilita a sua produção, mas não só isso. Por ser uma arte coletiva,
como afirma Canclini, o “(...) caráter grupal facilita a superação do
narcisismo dos artistas e a participação do público” (1980, P. 155), o que, em
seu entender, não ocorre, por exemplo, com as artes plásticas.
Claro que deve haver
liberdade para exercer plenamente os princípios artísticos. Lênin, citado por
Davis, também defende a liberdade do artista, pois ao exercer a liberdade plena
é possível contribuir de forma efetiva no processo emancipatório da população.
E por quê? Porque ao mesmo tempo em que permite a fruição, distribui os meios,
ele pode avançar em sua estética, elevando a arte a outros patamares. Da
indústria cultural jamais virá, ainda que aí possa existir artistas
progressistas, o limite está em que estes são dominados pela burguesia, ainda
que quem pense, faça e frua não seja necessariamente burguês. Mas todos os
meios são bem-vindos nessa luta e hoje em dia, com a internet e o barateamento
de equipamentos, há uma liberdade maior de criação e na comunicação, que também
precisamos nos apropriarmos.
Para um efetivo trabalho
artístico emancipatório, faz-se necessário, portanto, que os artistas criem
trabalhos preocupados em destrinchar, discutir nosso tempo histórico, nossas condições,
valendo-se dos elementos populares, ao mesmo tempo em que também fornecem os
meios para que os próprios populares possam se expressarem. Mas isso só
ocorrerá se os artistas também se aproximarem das organizações políticas com
essa preocupação. “Profissionais da cultura, portanto, devem se preocupar não
só em criar arte progressista, mas em se envolver ativamente na organização de
movimento políticos populares” (DAVIS, 2017, p. 180). A tripla tarefa pode nos
levar, no futuro, a uma sociedade distinta da que temos hoje. Por fim, cabe
ressaltar que não será a arte a modificar o mundo, mas ela pode sim modificar
os sujeitos e estes, organizados, podem mudar o mundo.
Bibliografia
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I. Trad.: Sérgio Paulo
Rouanet. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.
CANCLINI, Néstor García. A socialização da arte: teoria e
prática na América Latina. São Paulo: Cultrix, 1980.
DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. Trad.:
Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2017.
[1]
Professor do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia;
Mestre em Artes pela Universidade Estadual Paulista-UNESP; articulador da RBTR;
integrante do Teatro Ruante de Porto Velho/RO.
2 comentários:
Boa reflexão, Adailton. Parabéns pela iniciativa, e desejo sucesso pleno ao blog.
Um abraço amazônico
Tamo junto Ismael!
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