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sexta-feira, 20 de junho de 2025

A beleza inútil da Arte: regeneração humana em tempos de exaustão

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Somos seres que necessitam da beleza tanto quanto do alimento e do abrigo. A arte, em suas inúmeras manifestações, está presente em todas as sociedades humanas desde os tempos mais remotos. Pinturas rupestres, danças tribais, cantos ritualísticos, esculturas, narrativas orais — todas essas expressões revelam uma verdade fundamental: o impulso estético é constitutivo da experiência humana. Há, segundo Fischer (1973), uma necessidade de complementarmos nossas experiências, pois, ao sabermos que não somos únicos, temos o desejo de complemento no/a outro/a. Não vivemos apenas para sobreviver; somos seres desejantes, vivemos para sentir, sonhar e compartilhar significados — e é justamente isso que a arte nos proporciona, aí estaria uma de suas funções: a capacidade de vivermos uma experiência pela via estética.

Diferentemente dos objetos criados para fins práticos, a arte carrega em si um traço essencial: a não utilitariedade. Mesmo quando inserida em mercados que transformam criações em mercadorias altamente lucrativas, a essência da arte não está no lucro. Sua função não é funcionar, mas emocionar, inquietar, interrogar e, sobretudo, provocar. Essa ausência de finalidade prática é o que a torna tão poderosa. Vilém Flusser (2015), apresenta um outro aspecto da arte, que dialoga com que estamos defendendo: a capacidade de moldar as nossas experiências. O autor cita que no medievo tardio o Romance da Rosa passou a ser um modelo de amor romântico, adotado pela classe social nascente, a burguesia, a experiência foi depois universalizada, aos poucos, ao longo dos séculos e disseminados até hoje pela TV e pelos filmes estadunidenses, mas não só. Nas suas palavras: “O exemplo também mostra do que se trata na arte. Trata-se da elaboração e da comunicação de modelos para nossas experiências concretas do mundo. Toda experiência é modelada, programada pela arte. Todos os nossos prazeres e tristezas, todas as experiências das cores, dos sons, das formas, das tessituras, dos perfumes que nós temos, todo sentimento de amor e de raiva têm um modelo artístico. Nosso mundo é estruturado não somente pela nossa informação genética, mas também por nossa informação estética. Onde não há modelo estético, estamos ‘anestesiados’ = nós não temos experiência nenhuma. Nós dependemos da arte para poder perceber o mundo” (Flusser, 2015, p. 43). Mas, na lógica capitalista, tudo precisa servir para algo, gerar capital ou ao menos justificar seu uso com eficiência. Nesse sentido, os aspectos da arte aqui levantados, aparecem como gestos subversivos nesse sistema: uma oferenda ao sensível, ao gratuito, ao que escapa da lógica da reprodução incessante.

Davi Kopenawa (2015), xamã Yanomami e uma das grandes vozes indígenas do Brasil contemporâneo, tem razão ao nomear os não indígenas como o “povo da mercadoria”. Essa expressão, ao mesmo tempo poética e crítica, aponta para uma doença civilizatória: a transformação de tudo em objeto de troca. Na sanha de acumular e explorar, o povo da mercadoria destrói florestas, rios, montanhas e saberes ancestrais. Envenena o solo e a si mesmo. Corta árvores para plantar soja, seca nascentes para extrair ouro, devasta ecossistemas para produzir mais mercadorias, porém, perdem a capacidade de sonhar, e nisso vão se desumanizando e perdendo sua conexão mais profunda com a mãe terra.

A destruição ambiental não é apenas física; é também simbólica. O adoecimento do planeta está profundamente ligado ao nosso adoecimento psíquico. A ansiedade, o esgotamento mental, a sensação de vazio e a depressão que assolam milhões de pessoas – que Byun-Chul Han (2017) chama de sociedade do cansaço –, são, em grande parte, sintomas de um modo de vida que nos desliga da beleza, da contemplação, do tempo lento e da partilha sensível — valores fundamentais da experiência artística.

É por isso que precisamos da arte. Mais do que nunca, de todas as artes. Das que cantam, dançam, dramatizam, esculpem, bordam, esculpem o barro, improvisam com o corpo, das que narram o mundo visível e das que criam outros mundos. Elas nos espelham, refletem e refratam nossa realidade, ampliam a percepção e desorganizam as certezas. A arte não apenas embeleza a vida — ela nos oferece outros modos de habitá-la, inclusive outras maneiras de resistir, especialmente as artes que, de modo crítico, estão comprometidas com um mundo mais justo e igualitário.

Paradoxalmente, é justamente naquilo que o capitalismo considera “inútil” que reside a força mais profunda da arte. Uma cerâmica moldada à mão, um instrumento feito de madeira ancestral, uma peça de teatro encenada na praça, uma poesia que ressoa no corpo — essas experiências não têm finalidade prática imediata, e é por isso que nos tocam tão fundo. Elas não servem a um propósito utilitário, mas a um propósito humano. Tais características, num mundo regido pela lógica da eficiência e do lucro, é revolucionário.

A arte, em sua suposta “inutilidade”, é medicina. Não é chavão afirmar que a arte cura. Ela nos lembra que somos mais do que engrenagens de produção, que nosso valor não se mede pela produtividade, por isso nos regenera. Ela nos reconecta com o espanto, com a memória, com a possibilidade do afeto e da comunhão. Em tempos de colapso ambiental e psíquico, a arte é imprescindível — e pode nos salvar de nós mesmos ou de até onde nos levou o atual modo de produção. Evidente, que uma saída radical não se faz individualmente, mas é preciso nos reconectarmos socialmente, para tanto, mais uma vez precisamos de arte.

Assim, honremos sua “inutilidade”. Porque é nela que reside sua potência. Porque é dela que, ao revelar nosso aspecto mais humano, mais precisamos. Como afirma Michèle Petit, “O utilitário nunca basta. Talvez sejamos, antes de tudo, animais poéticos, pois os humanos criam obras de arte há mais de quarenta mil anos, bem antes de inventar a moeda ou a agricultura” (2024, p. 7).

Referências

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 4ª ed. Trad.: Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

FLUSSER, Vilém. A arte: o belo e o agradável. In: IANINI, Gilson; GARCIA, Douglas; FREITAS, Romero (Orgs.). Artefilosofia: antologia de textos estéticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 42-46.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Trad.: Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. Trad.: Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cia das Letras, 2015.

PETIT, Michèle. Somos animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise. Trad.: Raquel Camargo. São Paulo: 34, 2024.



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp; graduado em História pela Universidade Cruzeiros do Sul; integrante do Teatro Ruante; autor dos livros Circo Teatro Palombar: somos periferia; potência criativa (Fala, 2024), Teatro de rua: identidade, território (Giostri, 2020); um dos fundadores e articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.

domingo, 18 de maio de 2025

As instituições não conseguem acompanhar o tempo das redes

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

Vivemos imersos na videopolítica — ou videosfera, como denominou Beatriz Sarlo (1997) —, em que a imagem, o espetáculo e a instantaneidade moldam a forma como a política é percebida, praticada e consumida. As novas mídias digitais, impulsionadas pelas transformações tecnológicas, passaram a ocupar o espaço simbólico da vida pública. Nesse cenário, os acontecimentos políticos são apresentados como eventos espontâneos, desprovidos de mediações institucionais, criando a ilusão de que tudo se dá em tempo real, à vista de todos e sem filtros.

No entanto, essa aparente transparência carrega um paradoxo: quanto mais imediata e acessível a política parece, mais ela se afasta da complexidade real das instituições democráticas. Para alcançar visibilidade nas redes, os temas precisam ser convertidos em escândalos, fragmentados em cortes curtos, viralizáveis, emocionalmente carregados. É nesse ponto que a midiosfera — especialmente as redes sociais — se impõe como um espaço onde o não-mediado ganha status de verdade. A política, então, passa a operar por meio de efeitos e sensações, em detrimento da análise e da deliberação.

Imagem retirada da internet, disponível em: 
https://encr.pw/0finC. Acesso em: 18 maio 2025.

O discurso político se transforma, adotando um estilo coloquial, informal e performático. No Brasil, esse novo estilo não apenas invadiu o marketing eleitoral, mas contaminou também os parlamentos, dos níveis municipais ao Congresso Nacional. A videopolítica dessacraliza a política: desfaz suas formalidades, suas liturgias e seus rituais institucionais. Com isso, o político passa a se apresentar como uma figura comum, alguém "como qualquer um", que compartilha dos sentimentos e angústias do cidadão médio. Essa estratégia, contudo, é uma construção cênica: a máscara da simplicidade esconde o cálculo de performance.

Essa suposta proximidade entre representante e representado, ao invés de fortalecer a democracia, tende a substituí-la por um simulacro. A figura pública se torna um entertainer, e o espaço político se converte em palco de um reality show permanente. Importa menos a capacidade de articular políticas públicas do que a habilidade de engajar, emocionar e viralizar. O político eficaz, hoje, é aquele que domina as lógicas do star system, muito mais do que os trâmites do regimento interno de uma casa legislativa.

Nesse ambiente, prevalece um discurso simplificado, maniqueísta e emocional. A política, transformada em espetáculo, passa a operar com base na lógica do “causa e efeito imediato”. O tempo da reflexão e do debate é suprimido pelo tempo do hype. A efemeridade das redes impõe uma lógica de presente contínuo que esvazia o passado — fundamental para o aprendizado democrático — e inviabiliza a construção de futuros coletivos. Vive-se à mercê do algoritmo, na urgência do agora, numa sucessão de "acontecimentos sem qualidades".

A consequência desse processo é dupla: por um lado, a institucionalidade é desacreditada, vista como lenta, burocrática e ineficaz; por outro, se naturaliza a ideia de que a política eficiente deve seguir o modelo das redes — rápida, direta, emocional. É a despolitização da política travestida de engajamento. Já não basta registrar os fatos, é preciso fabricá-los para que sejam registrados. O que importa não é a política como processo, mas como performance. A frase de impacto, o corte perfeito, o vídeo de 30 segundos — tudo precisa caber no tempo de um reel.

Essa lógica transforma a democracia em uma arena de opiniões em que se diluem as fronteiras entre especialização e achismo. A ilusão da igualdade plena entre todos os emissores produz uma “democracia de opinião” na qual um jogador de futebol e um chanceler são tratados como equivalentes ao comentar temas complexos de política internacional. A desierarquização simbólica da política e da intelectualidade convive com uma reierarquização baseada em carisma digital, número de seguidores e capacidade de viralização.

As instituições, baseadas em processos longos, contraditórios e, muitas vezes, pouco visíveis, não conseguem competir com a velocidade da rede. Seus ritos e protocolos parecem antiquados diante da fluidez da comunicação digital. Mas é justamente essa lentidão que garante a segurança jurídica, o contraditório, a proteção das minorias e o respeito aos direitos. A crise de legitimidade das instituições, agravada pelo ambiente digital, põe em risco as bases da democracia representativa.

Ao revisitarmos os alertas de Beatriz Sarlo, percebemos que o que estava em jogo em 1997 — a escolha entre a política do show business ou a reconfiguração crítica da representação democrática — tornou-se ainda mais urgente. Hoje, a televisão cedeu lugar ao celular, mas a lógica do espetáculo se aprofundou. A praça pública foi substituída pelo feed de notícias. A política, muitas vezes, se resume a uma sucessão de "lacrações" e indignações fugazes.

A pergunta que resta é: ainda é possível fazer política fora da lógica da midiosfera? Para além da exceção de alguns parlamentares comprometidos com o debate qualificado, existe horizonte fora da política-espetáculo? É preciso recolocar em cena uma política que reconheça a importância da escuta, da divergência, da construção coletiva — e que aceite que nem tudo cabe em 15 segundos. A política que vale a pena não é a que gera cliques, mas a que transforma realidades.

 

Referências

SARLO, Beatriz. Sete hipóteses sobre a videopolítica. In: SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias. São Paulo: EdUSP, 1997.



[1] Professor da Universidade Federal de Rondônia; doutor e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista; graduado em História pela Universidade Cruzeiro do Sul.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Idibal de Almeida Pivetta/César Vieira: um homem comprometido com sua gente e seu tempo histórico*

 

Adailtom Alves Teixeira[1]

 

As chamadas práticas de liberdade de que falam tantos artistas, intelectuais, políticos, materializam-se tão organicamente na vida de Idibal Pivetta/César Vieira que não é possível separar um sujeito do outro e é impossível concebê-los dissociados do ético alimentando a existência humana, jurídica, estética.

Alexandre mate

 

          O advogado Idibal de Almeida Pivetta, nascido na cidade de Jundiaí em 1931, tornou-se desde muito cedo um apaixonado por samba e futebol; chegou, inclusive, a integrar o time do Paulista em sua cidade e quando passou a escrever peças teatrais, por meio do pseudônimo de César Vieira – devido à censura e repressão que imperava no Brasil –, ambas as manifestações estavam sempre presentes em sua dramaturgia. Tais gostos, é certo, levou-o a interessar-se por outras expressões populares, por isso gostava de afirmar que em seus espetáculos sempre havia alguma coisa de futebol, samba e religião.

Idibal Piveta/Cesár Vieira. Foto disponível em: 
https://memorialdaresistenciasp.org.br/pessoas/idibal-matto-pivetta/

A política também entrou cedo em sua vida, pois seu pai foi prefeito da cidade, porém, o administrador foi cassado pela ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945), período conhecido como Estado Novo. Desde cedo escutava as conversas em sua casa, quando outros políticos se reunia com seu pai. Depois, na juventude, militou no movimento estudantil, foi presidente de Centro Acadêmico e também da União Nacional dos Estudantes (UNE); mais tarde, formado em direito, se viu advogando para presos políticos no tempo da ditadura civil-militar (1964-1985). Como advogado conseguiu liberdade, dentre outros, para Augusto Boal, isso fez com que o criador do teatro do oprimido conseguisse sair do Brasil e pudesse se exilar na Argentina. O próprio César Vieira também chegou a ser preso em 1973, auge da repressão no Brasil, passando por alguns presídios ao longo de três meses.

Por este rápido preâmbulo, nota-se como a vida conduziu Idibal Pivetta à uma aproximação com as manifestações da gente brasileira e suas agruras; nele foi cultivado o gosto pela liberdade e pelo entendimento político. Por isso mesmo, tornou-se um dramaturgo que buscou realizar uma arte que se aproximasse da consigna benjaminiana de uma história a contrapelo; seu teatro calcado em estruturas populares e absolutamente comprometido com as lutas da gente brasileira. Sua arte sempre foi um meio, não um fim. Apesar de ter iniciado pela escrita de novelas, é como dramaturgo e diretor teatral que realizou uma produção absolutamente significativa. E César Vieira como sempre foi um sujeito do bando, foi ao lado dos parceiros do Teatro Popular União e Olho Vivo (TUOV) – criado em 1966 no Centro Acadêmico 11 de Agosto da Faculdade de Direito do Largo São Francisco/USP – que pôde expressar sua poética épico-popular.

O TUOV iniciou o processo de produção e criação artística, como César Vieira sempre lembrava em suas falas, com “elementos dos extratos médios”, a turma do 11 de Agosto, mas a mistura com os integrantes do Teatro Casarão, ainda nos idos dos anos 1960, o predestinou a uma popularização, radicalizada a partir da década de 1970, quando foi ao encontro do público nas periferias, pois tinham ciência de que o artista deve ir aonde o povo está, como canta Milton Nascimento. Ou seja, à medida que foi se aproximando das comunidades, sempre era procurado por algumas pessoas que se interessavam em fazer teatro e assim, o coletivo que já carregava uma bandeira popular, passou a ter integrantes também vindos dos bairros periféricos. De acordo com Alexandre Mate (2008), popular para o coletivo concerne tanto ao direito de acesso à arte, como à produção de bens simbólicos.

O teatro praticado pelo TUOV escarafunchou a história brasileira, fugindo dos lugares comuns e devolvendo à sua gente a história de importantes lideranças. Para manterem sua isenção crítica, o coletivo fez uma opção radical pelo “amadorismo”, no sentido daquele que ama seu ofício e não vive dele profissionalmente, já que todos/as os/as integrantes tinham (têm) outras profissões, retirando seu sustento de outros trabalhos para não dependerem economicamente de sua arte e, desse modo, não fazerem concessões em suas criações. Além disso, em seu percurso histórico, adotaram o que chamam de tática Robin Hood, isto é, vendem seus espetáculos para determinado público e/ou instituições que podem pagar, para poderem levar os espetáculos às comunidades que não dispõem de recursos de modo gratuito. Para César Vieira, a citada tática

[...] permitia, com a venda de um número limitado de espetáculos, para a classe média, prosseguir na experiência e cobrir as despesas que eram muitas: condução para ir aos bairros; manutenção do material de cena; aquisição de gravadores, fitas, filmes; gastos com a sede etc.

A subvenção oficial foi motivo de infindáveis discussões e afinal resolveu-se aceitá-la desde que não houvesse qualquer cerceamento às nossas atividades. Subvenção é uma forma de aplicação de imposto, imposto é pago pelo povo, e o nosso trabalho fazia com que esse imposto revertesse ao próprio povo (2007, p. 109).

 

À medida que dois coletivos se fundiram ainda nos idos dos anos 1960 para originar um terceiro, o TUOV, isto é, quando a turma do 11 de Agosto – que havia montado O evangelho segundo Zebedeu – e o Teatro Casarão – que havia montado Corinthians, meu amor – após muitas discussões resolveram se juntar, tinham em mente continuar a produzir novos espetáculos, um teatro popular que chegasse às camadas menos favorecidas. Para tanto, precisavam ir até eles e precisavam de estruturas que dialogassem com tal público. Deixemos que o próprio César Vieira narre este processo:

Duas coisas estavam bastante claras para eles: a certeza de que um espetáculo só chegaria a um público verdadeiramente popular se fosse apresentado nas proximidades da residência ou do local de trabalho dessa plateia e a crença de que o preço de ingresso deveria estar ao alcance do poder aquisitivo dessa faixa de população. Firmara-se também a convicção de que só um desvinculamento dos padrões estéticos convencionais, ditados pelo lucro e pelas técnicas estrangeiras, delinearia um caminho para uma nova criatividade, longe dos cânones da moda teatral, mas certamente mais perto do povo (2007, p. 91).

 

Desse modo, estrutura-se o coletivo em novos rumos à busca de um teatro verdadeiramente popular, bem como o terceiro espetáculo do TUOV, Rei Momo, que “[...] deveria conter obrigatoriamente: samba, carnaval, futebol, televisão e história do Brasil. Tudo isso a serviço de um motivo central: a luta pela liberdade” (VIEIRA, 2007, p. 92), afinal vivia-se sob o signo da ditadura civil-militar. Tal processo verticalizou também a dinâmica de organização, de pesquisa e a poética, dentro de uma metodologia rigorosamente coletiva, que vigora até os dias de hoje.

[...] o uso obrigatório da palavra por todos os integrantes acerca de todos os assuntos que digam respeito à vida do Grupo. Nessa prática, todos têm de fazer uso da palavra e de se posicionar quanto àqueles assuntos, necessidades e propostas em pauta. Nessa perspectiva, as deliberações que organizam a convivência estético-social do Grupo, de modo bastante diferenciado de outras formas e agrupamentos, busca o consenso, isto é, a unanimidade. Assim, o poder de decisão é responsabilidade absoluta do coletivo (MATE, 2008, p. 205).

 

Do ponto de vista da organização e criação dos espetáculos dentro da metodologia coletiva, César Vieira em seu livro Em busca do teatro popular (2007, p. 118) apresenta um organograma no qual é possível identificar o processo a partir de quatro comissões: a artística, a administrativa, a de espetáculos e a cultural. Por sua vez, cada comissão se subdivide em outras comissões. Acerca da criação de espetáculos, que nos interessa mais diretamente, o processo é composto de dez etapas e que já resumi em outro momento do seguinte modo:

1)     É eleito um tema; 2) escolhe-se a estrutura popular para a montagem (bumba-meu-boi, marujada etc.); 3) pesquisa do tema e da estrutura; 4) com base nos dados coletados, organizam as fichas dramáticas com sugestões de conflitos e de personagens; 5) criação do quadro dramático ou do roteiro geral, que será entregue à comissão de dramaturgia; 6) criação do texto-base; 7) submissão do texto-base ao coletivo que, após os debates, realizarão cortes, proporão modificações e aprovarão o texto a ser montado; 8) produção do espetáculo; 9) apresentação do espetáculo ao público, seguido de debate com vistas a possíveis propostas de mudanças; 10) mudanças apontadas pelo público são acrescentadas. Dessa forma, o TUOV chega ao espetáculo final, criado coletivamente (TEIXEIRA, 2020, p. 98).

 

Acerca das estruturas populares nos espetáculos, cabe mencionar algumas peças, seus textos estão quase todos publicados. Assim, em O evangelho segundo Zebedeu, escrita em 1970 (após a decretação do Ato Institucional nº 5, chamado golpe dentro do golpe, devido ao recrudescimento da repressão e outras arbitrariedades), a história de Canudos é revisitada, porém a partir do olhar de um artista de circo mambembe; outra característica popular presente é a religiosidade. Logo, o coletivo se valeu da história de uma comunidade do século XIX, que foi esmagada pelo Estado, na recém-nascida República, para dialogar com o seu tempo histórico, no qual viviam sufocados pela repressão do Estado brasileiro.

Quando estava se organizando o chamado novo trabalhismo no Brasil, em 1978, foi escrito Bumba, meu queixada, que pelo título já se percebe a estrutura popular utilizada e que aborda os processos grevistas que vinham ocorrendo, em especial em Osasco e na região chamada ABCD paulista. Mais uma vez, sem medo, o TUOV enfrentava o arbítrio por meio do espetáculo (e César Vieira, além da arte, por meio de sua prática jurídica).

Em Barbosinha Futebó Crubi, uma das paixões de César Vieira ganha corpo: o futebol, mas não só, posto que a dramaturgia é composta com muitos sambas. Com estrutura e ritmo do teatro de revista, o espetáculo homenageia o paulista Adoniran Barbosa. No repertório musical, dentre outros, consta músicas de Geraldo Filme, Adoniran Barbosa e do próprio César Vieira.

Na virada do milênio o TUOV revisitou com seus espetáculos dois momentos históricos importantes e pouco conhecido dos/as brasileiros/as, trata-se da Revolta da Chibata ocorrida em 1910 no Rio de Janeiro (uma insurreição de marinheiros)  e a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na segunda guerra mundial. O primeiro foi abordado em João Cândido do Brasil: a revolta da chibata, utilizando a estrutura popular da marujada, narra a história dos marinheiros que enfrentaram os maus-tratos que sofriam e que eram vigentes desde a escravidão e que não foram abolidos nem mesmo com a proclamação da República, afinal suas infrações eram “pagas” com chicotadas. A segunda temática está em A cobra vai fumar, que se valendo fortemente do carnaval, apresenta os pracinhas brasileiros que foram lutar pela democracia em solo europeu, enquanto no Brasil vigia a ditadura do Estado Novo. Contradições da história brasileira, via de regra escondida pela versão “oficial” e aqui escovada a contrapelo, para questionar o sentido de nossa formação.

A Cobra Vai Fumar - Apresentação no Festival Nacional de Teatro,
Vitória/ES.  Foto disponível em: 
https://www.flickr.com/photos/tatianapzzn/10945985784/in/photostream/

Sem dúvida o cidadão, o advogado e o artista IdibalPivetta/César Vieira, foram e são inseparáveis, sendo uma daquelas pessoas a quem Brecht chamou de imprescindíveis, posto ter lutado a vida inteira.  Acerca de seu trabalho e de sua luta por todas as maneiras já aludidas aqui na construção de um mundo mais justo e melhor para a maioria, bem como na compreensão de que o seu teatro não é um fim, mas meio, o próprio César Vieira em entrevista a Alexandre Mate, afirma sobre si e sua práxis:

Se eu tivesse buscando uma gratificação seria quando se vai ao bairro e apresenta-se um espetáculo. Apresenta-se uma, duas, três vezes o mesmo espetáculo. Realiza-se um debate. Na semana seguinte, quando se está encostando o material de luz, som e figurino, ouve-se as crianças, que assistiram ao espetáculo, cantando uma música apresentada nele. Muitas vezes, elas mudam a letra e apresentam uma solução estética nova, colocam uma nova letra. O que a gente mostrou, elas transformaram, mostrando suas verdades, suas criações. Não se trata da mesma música, não se trata da mesma letra, mas de algo novo. De algo estimulado pelo nosso trabalho. Algo que foi significativo para elas. Algo que as marcará (VIEIRA apud MATE, 2008, p. 216-7).

 

          A reflexão do artista, mas que gratificação aponta em muitas direções, como a própria criação coletiva que continua a se desdobrar no público; do ponto de vista temático, é possível fazer com que os populares tomem conhecimento de sua própria história para poderem recriar; mas também aponta para o inacabado  de todo/a sujeito/a na arte e na vida; por fim, para a continuidade de nossa existência no/a outro/a. É certo que César Vieira continua e continuará em muitos/as de nós, pois sua permanência por aqui foi repleta de sonhos, afetos e lutas que merecem ser continuados (e é certo que serão).

Evoé!

 

Referências

MATE, Alexandre L. A produção teatral paulistana dos anos 80 – R(ab)iscando com faca o chão da história: tempo de contar os (pré)juízos em percursos de andança. 340f (vol. I). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

TEIXEIRA, Adailtom Alves. Teatro de rua: identidade, território. São Paulo: Giostri, 2020.

VIEIRA, César. A cobra vai fumar. São Paulo: s.e., 2014.

_______. Barbosinha Futebó Crubi; Us Juãos i os Magalis. Guarulhos, SP: Secretaria de Cultura, 2008.

_______. Bumba, meu queixada; Morte aos brancos. Guarulhos, SP: Secretaria de Cultura, 2008.

_______. Corinthians, meu amor; Rei Momo. Guarulhos, SP: Secretaria de Cultura, 2008.

_______. Em busca de um teatro popular. 4ª ed. Rio de Janeiro: Funarte, 2007.

_______. João Cândido do Brasil. Guarulhos, SP: Secretaria de Cultura, 2008.

_______. O evangelho segundo Zebedeu. Guarulhos, SP: Secretaria de Cultura, 2008.



O texto foi escrito a pedido de uma escola de teatro de São Paulo e publicado no Caderno de Registro MACU, edição 24 - I semestre de 2024.

[1] Professor Adjunto do Curso Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Doutor em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista; mestre em Artes pela mesma instituição; graduado em História pela Unicsul; integrante do Teatro Ruante; articulador e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua; autor do livro Teatro de Rua – Identidade, Território (Giostri, 2020) e co-organizador de Paky`Op: experiências, travessias, práxis cênica e docência em teatro (Edufro, 2022).