Adailtom Alves Teixeira[1]
As chamadas práticas de
liberdade de que falam tantos artistas, intelectuais, políticos,
materializam-se tão organicamente na vida de Idibal Pivetta/César Vieira que
não é possível separar um sujeito do outro e é impossível concebê-los
dissociados do ético alimentando a existência humana, jurídica, estética.
Alexandre mate
O advogado Idibal de Almeida Pivetta, nascido na cidade de Jundiaí em 1931, tornou-se desde muito cedo um apaixonado por samba e futebol; chegou, inclusive, a integrar o time do Paulista em sua cidade e quando passou a escrever peças teatrais, por meio do pseudônimo de César Vieira – devido à censura e repressão que imperava no Brasil –, ambas as manifestações estavam sempre presentes em sua dramaturgia. Tais gostos, é certo, levou-o a interessar-se por outras expressões populares, por isso gostava de afirmar que em seus espetáculos sempre havia alguma coisa de futebol, samba e religião.
Idibal Piveta/Cesár Vieira. Foto disponível em: https://memorialdaresistenciasp.org.br/pessoas/idibal-matto-pivetta/ |
A política também entrou cedo em sua vida, pois
seu pai foi prefeito da cidade, porém, o administrador foi cassado pela ditadura
de Getúlio Vargas (1937-1945), período conhecido como Estado Novo. Desde cedo
escutava as conversas em sua casa, quando outros políticos se reunia com seu
pai. Depois, na juventude, militou no movimento estudantil, foi presidente de
Centro Acadêmico e também da União Nacional dos Estudantes (UNE); mais tarde,
formado em direito, se viu advogando para presos políticos no tempo da ditadura
civil-militar (1964-1985). Como advogado conseguiu liberdade, dentre outros, para
Augusto Boal, isso fez com que o criador do teatro do oprimido conseguisse sair
do Brasil e pudesse se exilar na Argentina. O próprio César Vieira também chegou
a ser preso em 1973, auge da repressão no Brasil, passando por alguns presídios
ao longo de três meses.
Por este rápido preâmbulo, nota-se como a vida conduziu
Idibal Pivetta à uma aproximação com as manifestações da gente brasileira e
suas agruras; nele foi cultivado o gosto pela liberdade e pelo entendimento
político. Por isso mesmo, tornou-se um dramaturgo que buscou realizar uma arte
que se aproximasse da consigna benjaminiana de uma história a contrapelo; seu teatro
calcado em estruturas populares e absolutamente comprometido com as lutas da
gente brasileira. Sua arte sempre foi um meio, não um fim. Apesar de ter
iniciado pela escrita de novelas, é como dramaturgo e diretor teatral que
realizou uma produção absolutamente significativa. E César Vieira como sempre
foi um sujeito do bando, foi ao lado dos parceiros do Teatro Popular União e
Olho Vivo (TUOV) – criado em 1966 no Centro Acadêmico 11 de Agosto da Faculdade
de Direito do Largo São Francisco/USP – que pôde expressar sua poética
épico-popular.
O TUOV iniciou o processo de produção e criação
artística, como César Vieira sempre lembrava em suas falas, com “elementos dos
extratos médios”, a turma do 11 de Agosto, mas a mistura com os integrantes do
Teatro Casarão, ainda nos idos dos anos 1960, o predestinou a uma popularização,
radicalizada a partir da década de 1970, quando foi ao encontro do público nas
periferias, pois tinham ciência de que o artista deve ir aonde o povo está,
como canta Milton Nascimento. Ou seja, à medida que foi se aproximando das
comunidades, sempre era procurado por algumas pessoas que se interessavam em
fazer teatro e assim, o coletivo que já carregava uma bandeira popular, passou
a ter integrantes também vindos dos bairros periféricos. De acordo com Alexandre
Mate (2008), popular para o coletivo concerne tanto ao direito de acesso à
arte, como à produção de bens simbólicos.
O teatro praticado pelo TUOV escarafunchou a
história brasileira, fugindo dos lugares comuns e devolvendo à sua gente a
história de importantes lideranças. Para manterem sua isenção crítica, o
coletivo fez uma opção radical pelo “amadorismo”, no sentido daquele que ama
seu ofício e não vive dele profissionalmente, já que todos/as os/as integrantes
tinham (têm) outras profissões, retirando seu sustento de outros trabalhos para
não dependerem economicamente de sua arte e, desse modo, não fazerem concessões
em suas criações. Além disso, em seu percurso histórico, adotaram o que chamam
de tática Robin Hood, isto é, vendem seus espetáculos para determinado público
e/ou instituições que podem pagar, para poderem levar os espetáculos às
comunidades que não dispõem de recursos de modo gratuito. Para César Vieira, a citada tática
[...] permitia, com a venda de um número limitado de
espetáculos, para a classe média, prosseguir na experiência e cobrir as
despesas que eram muitas: condução para ir aos bairros; manutenção do material
de cena; aquisição de gravadores, fitas, filmes; gastos com a sede etc.
A
subvenção oficial foi motivo de infindáveis discussões e afinal resolveu-se
aceitá-la desde que não houvesse qualquer cerceamento às nossas atividades.
Subvenção é uma forma de aplicação de imposto, imposto é pago pelo povo, e o
nosso trabalho fazia com que esse imposto revertesse ao próprio povo (2007, p.
109).
À medida que dois coletivos se fundiram ainda nos idos dos anos 1960 para
originar um terceiro, o TUOV, isto é, quando a turma do 11 de Agosto – que
havia montado O evangelho segundo Zebedeu
– e o Teatro Casarão – que havia montado Corinthians, meu amor – após
muitas discussões resolveram se juntar, tinham em mente continuar a produzir
novos espetáculos, um teatro popular que chegasse às camadas menos favorecidas.
Para tanto, precisavam ir até eles e precisavam de estruturas que dialogassem
com tal público. Deixemos que o próprio César Vieira narre este processo:
Duas coisas estavam bastante claras para eles: a certeza de
que um espetáculo só chegaria a um público verdadeiramente popular se fosse
apresentado nas proximidades da residência ou do local de trabalho dessa
plateia e a crença de que o preço de ingresso deveria estar ao alcance do poder
aquisitivo dessa faixa de população. Firmara-se também a convicção de que só um
desvinculamento dos padrões estéticos convencionais, ditados pelo lucro e pelas
técnicas estrangeiras, delinearia um caminho para uma nova criatividade, longe
dos cânones da moda teatral, mas certamente mais perto do povo (2007, p. 91).
Desse modo, estrutura-se o coletivo em novos
rumos à busca de um teatro verdadeiramente popular, bem como o terceiro
espetáculo do TUOV, Rei Momo, que
“[...] deveria conter obrigatoriamente: samba, carnaval, futebol, televisão e
história do Brasil. Tudo isso a serviço de um motivo central: a luta pela
liberdade” (VIEIRA, 2007, p. 92), afinal vivia-se sob o signo da ditadura
civil-militar. Tal processo verticalizou também a dinâmica de organização, de pesquisa
e a poética, dentro de uma metodologia rigorosamente coletiva, que vigora até
os dias de hoje.
[...] o uso obrigatório da palavra por todos os integrantes
acerca de todos os assuntos que digam respeito à vida do Grupo. Nessa prática,
todos têm de fazer uso da palavra e de se posicionar quanto àqueles assuntos,
necessidades e propostas em pauta. Nessa perspectiva, as deliberações que
organizam a convivência estético-social do Grupo, de modo bastante diferenciado
de outras formas e agrupamentos, busca o consenso, isto é, a unanimidade.
Assim, o poder de decisão é responsabilidade absoluta do coletivo (MATE, 2008,
p. 205).
Do ponto de vista da organização e criação dos
espetáculos dentro da metodologia coletiva, César Vieira em seu livro Em busca do teatro popular (2007, p.
118) apresenta um organograma no qual é possível identificar o processo a
partir de quatro comissões: a artística, a administrativa, a de espetáculos e a
cultural. Por sua vez, cada comissão se subdivide em outras comissões. Acerca
da criação de espetáculos, que nos interessa mais diretamente, o processo é
composto de dez etapas e que já resumi em outro momento do seguinte modo:
1)
É
eleito um tema; 2) escolhe-se a estrutura popular para a montagem
(bumba-meu-boi, marujada etc.); 3) pesquisa do tema e da estrutura; 4) com base
nos dados coletados, organizam as fichas dramáticas com sugestões de conflitos
e de personagens; 5) criação do quadro dramático ou do roteiro geral, que será
entregue à comissão de dramaturgia; 6) criação do texto-base; 7) submissão do
texto-base ao coletivo que, após os debates, realizarão cortes, proporão
modificações e aprovarão o texto a ser montado; 8) produção do espetáculo; 9)
apresentação do espetáculo ao público, seguido de debate com vistas a possíveis
propostas de mudanças; 10) mudanças apontadas pelo público são acrescentadas.
Dessa forma, o TUOV chega ao espetáculo final, criado coletivamente (TEIXEIRA,
2020, p. 98).
Acerca das estruturas populares nos
espetáculos, cabe mencionar algumas peças, seus textos estão quase todos
publicados. Assim, em O evangelho segundo
Zebedeu, escrita em 1970 (após a decretação do Ato Institucional nº 5,
chamado golpe dentro do golpe, devido ao recrudescimento da repressão e outras
arbitrariedades), a história de Canudos é revisitada, porém a partir do olhar
de um artista de circo mambembe; outra característica popular presente é a
religiosidade. Logo, o coletivo se valeu da história de uma comunidade do
século XIX, que foi esmagada pelo Estado, na recém-nascida República, para
dialogar com o seu tempo histórico, no qual viviam sufocados pela repressão do
Estado brasileiro.
Quando estava se organizando o chamado novo
trabalhismo no Brasil, em 1978, foi escrito Bumba,
meu queixada, que pelo título já se percebe a estrutura popular utilizada e
que aborda os processos grevistas que vinham ocorrendo, em especial em Osasco e na região chamada ABCD paulista. Mais uma vez, sem medo, o TUOV enfrentava o
arbítrio por meio do espetáculo (e César Vieira, além da arte, por meio de sua
prática jurídica).
Em Barbosinha
Futebó Crubi, uma das paixões de César Vieira ganha corpo: o futebol, mas
não só, posto que a dramaturgia é composta com muitos sambas. Com estrutura e
ritmo do teatro de revista, o espetáculo homenageia o paulista Adoniran Barbosa.
No repertório musical, dentre outros, consta músicas de Geraldo Filme, Adoniran
Barbosa e do próprio César Vieira.
Na virada do milênio o TUOV revisitou com seus espetáculos dois momentos históricos importantes e pouco conhecido dos/as brasileiros/as, trata-se da Revolta da Chibata ocorrida em 1910 no Rio de Janeiro (uma insurreição de marinheiros) e a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na segunda guerra mundial. O primeiro foi abordado em João Cândido do Brasil: a revolta da chibata, utilizando a estrutura popular da marujada, narra a história dos marinheiros que enfrentaram os maus-tratos que sofriam e que eram vigentes desde a escravidão e que não foram abolidos nem mesmo com a proclamação da República, afinal suas infrações eram “pagas” com chicotadas. A segunda temática está em A cobra vai fumar, que se valendo fortemente do carnaval, apresenta os pracinhas brasileiros que foram lutar pela democracia em solo europeu, enquanto no Brasil vigia a ditadura do Estado Novo. Contradições da história brasileira, via de regra escondida pela versão “oficial” e aqui escovada a contrapelo, para questionar o sentido de nossa formação.
A Cobra Vai Fumar - Apresentação no Festival Nacional de Teatro, Vitória/ES. Foto disponível em: https://www.flickr.com/photos/tatianapzzn/10945985784/in/photostream/ |
Sem dúvida o cidadão, o advogado e o artista IdibalPivetta/César Vieira, foram e são inseparáveis, sendo uma daquelas pessoas a quem Brecht chamou de imprescindíveis, posto ter lutado a vida inteira. Acerca de seu trabalho e de sua luta por todas as maneiras já aludidas aqui na construção de um mundo mais justo e melhor para a maioria, bem como na compreensão de que o seu teatro não é um fim, mas meio, o próprio César Vieira em entrevista a Alexandre Mate, afirma sobre si e sua práxis:
Se eu tivesse buscando uma gratificação seria quando se vai
ao bairro e apresenta-se um espetáculo. Apresenta-se uma, duas, três vezes o
mesmo espetáculo. Realiza-se um debate. Na semana seguinte, quando se está
encostando o material de luz, som e figurino, ouve-se as crianças, que
assistiram ao espetáculo, cantando uma música apresentada nele. Muitas vezes,
elas mudam a letra e apresentam uma solução estética nova, colocam uma nova
letra. O que a gente mostrou, elas transformaram, mostrando suas verdades, suas
criações. Não se trata da mesma música, não se trata da mesma letra, mas de
algo novo. De algo estimulado pelo nosso trabalho. Algo que foi significativo
para elas. Algo que as marcará (VIEIRA apud
MATE, 2008, p. 216-7).
A reflexão do artista, mas que
gratificação aponta em muitas direções, como a própria criação coletiva que
continua a se desdobrar no público; do ponto de vista temático, é possível fazer com que os
populares tomem conhecimento de sua própria história para poderem recriar; mas
também aponta para o inacabado de todo/a sujeito/a na arte e na vida; por fim, para a continuidade de nossa existência
no/a outro/a. É certo que César Vieira continua e continuará em muitos/as de
nós, pois sua permanência por aqui foi repleta de sonhos, afetos e lutas que
merecem ser continuados (e é certo que serão).
Evoé!
Referências
MATE,
Alexandre L. A produção teatral
paulistana dos anos 80 – R(ab)iscando com faca o chão da história: tempo de
contar os (pré)juízos em percursos de andança. 340f (vol. I). Tese (Doutorado
em História). Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo,
2008.
TEIXEIRA,
Adailtom Alves. Teatro de rua:
identidade, território. São Paulo: Giostri, 2020.
VIEIRA,
César. A cobra vai fumar. São Paulo:
s.e., 2014.
_______.
Barbosinha Futebó Crubi; Us Juãos i os
Magalis. Guarulhos, SP: Secretaria de Cultura, 2008.
_______.
Bumba, meu queixada; Morte aos brancos.
Guarulhos, SP: Secretaria de Cultura, 2008.
_______.
Corinthians, meu amor; Rei Momo.
Guarulhos, SP: Secretaria de Cultura, 2008.
_______.
Em busca de um teatro popular. 4ª ed.
Rio de Janeiro: Funarte, 2007.
_______.
João Cândido do Brasil. Guarulhos,
SP: Secretaria de Cultura, 2008.
_______.
O evangelho segundo Zebedeu.
Guarulhos, SP: Secretaria de Cultura, 2008.
* O texto foi escrito a pedido de uma escola de teatro de São Paulo, isso no início de 2024, mas como não foi publicado em sua revista, coloco à disposição nesse canal.
[1] Professor Adjunto do Curso Licenciatura
em Teatro da Universidade Federal de Rondônia; Doutor em Artes pelo Instituto
de Artes da Universidade Estadual Paulista; mestre em Artes pela mesma
instituição; graduado em História pela Unicsul; integrante do Teatro Ruante; articulador
e um dos fundadores da Rede Brasileira de Teatro de Rua; autor do livro Teatro de Rua – Identidade, Território
(Giostri, 2020) e co-organizador de Paky`Op:
experiências, travessias, práxis cênica e docência em teatro (Edufro, 2022).
Um comentário:
É certo que será. Evoé!
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