Por Jussara Trindade - doutoranda UNIRIO
O primeiro espetáculo que assisti, durante o 16º Floripa Teatro, foi Boleba: vai pra rua, menino! do grupo carioca Te Conto Umas. No dia anterior, o céu era “de brigadeiro”: nenhuma nuvem no horizonte. Lembro de ter perguntado a um dos motoristas da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes – entidade promotora do evento - se algum dos espetáculos seria apresentado na rua, pois a programação oficial mostrava apenas espaços fechados e lonas montadas em diversos pontos da cidade. Atencioso, o funcionário disse ser muito arriscado organizar um evento “a céu aberto” nessa época do ano, pois se chegasse um vento sul, “não havia cenário que ficasse em pé”, explicou. Mas, como nesse momento o céu estava perfeitamente limpo e sem o menor indício de chuva, aquela parecia ser uma medida preventiva bastante exagerada.
Ironicamente, durante a madrugada o tempo começou a mudar, com a chegada repentina de um vento frio que trouxe nuvens cinzentas, anunciando chuva na cidade. Foi uma daquelas segundas-feiras que a gente deseja ficar em casa, lendo ou vendo televisão... mas a Lona do Campeche (onde seria realizado o espetáculo e uma oficina) não era tão longe do hotel onde estávamos todos hospedados, e eu contava com a especialíssima carona da companheira Ana Rosa Tezza, que viajara de carro desde Curitiba e estava, agora, cumprindo também a sua missão pelo Núcleo de Pesquisadores de Teatro de Rua. Durante a apresentação de Boleba..., por volta das 15h, o clima foi-se alterando drasticamente; o vento fazia as lonas laterais baterem continuamente e a chuva, que iniciara fina, agora engrossava cada vez mais. Ao final do espetáculo, os atores demonstraram suas dúvidas quanto ao comparecimento dos quatorze inscritos em sua oficina, denominada “O encontro da narrativa com a música”. Felizmente, a oficina foi realizada com sucesso, apesar do mau tempo e do frio crescente. Soube, então, que era esse o tal “vento sul”! No final, quando o público da segunda apresentação do dia (às 20h) já começava a adentrar a Lona do Campeche, percebi que toda a área em frente ao espaço cênico estava alagada, obrigando os técnicos de apoio a trocarem as cadeiras de lugar. Nesse momento, pareceu-me que aquela medida protetora não era tão exagerada quanto me parecera no início...
No dia seguinte, fui ao centro da cidade onde seria apresentada A farsa do bom enganador, pelo grupo paulista Buraco D’Oráculo. A lona, montada no Largo da Alfândega, contava com uma infra-estrutura muito maior que a do Campeche. Aí percebi, com mais clareza, que o excesso de zelo realmente pode descaracterizar um espetáculo de rua; o que se via ali não era apenas um abrigo sobre as cabeças dos atores e do público, mas a necessidade de todo um aparato de “segurança” (para proteger os equipamentos de iluminação, refletores, caixas de som etc que poderiam sofrer sérios danos com a chuva) e “conforto” (havia um camarim para os atores) que me pareceu realmente estranho, tanto ao contexto do teatro de rua, quanto às propostas éticas e estéticas daquele coletivo teatral que, tenho certeza, não se ajustam a tais exigências e que são, contudo, frequentes num teatro de tipo mais convencional. A platéia, organizada frontal e lateralmente, impunha limites retilíneos para a roda que o Buraco criara originalmente para o seu espetáculo, além de estabelecer uma distância indesejável entre atores e público. Enfim, aquilo que poderia ser apenas uma opção, em função da necessidade momentânea de abrigo em caso de mau tempo, transformou-se numa camisa-de-força ideológica que poderia até imobilizar o espetáculo, por subtrair dele justamente o seu elemento mais essencial e imprevisível – a rua! Felizmente, a competência e generosidade dos atores compensaram esses equívocos.
Depois dessa experiência, tenho a certeza de que ainda temos muito a elucidar sobre a nossa arte: esclarecer diferenças, superar distorções, explicar especificidades; um trabalho que vai além dos desafios da arte propriamente dita e alcança uma função, digamos, des-educativa. Quem, além dos próprios rueiros, poderá ensinar à nossa sociedade, preventiva e organizacional, que é justamente no risco, no imprevisto e na imperfeição, que reside o maior mistério? Sábios eram os arquitetos japoneses da Antiguidade que, diante da possibilidade constante de terremotos, aprenderam a construir suas casas com bambu, papel de seda e de arroz. Então, que venha o vento sul e leve os cenários embora; a rua permanecerá no lugar, e é isso o que mais importa no teatro de rua!
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