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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

HIPER, SUPER, PÓS: metáforas da contemporaneidade

HIPER, SUPER, PÓS: metáforas da contemporaneidade[1]

Por Adailtom Alves Teixeira[2]

INTRODUÇÃO[3]


A contemporaneidade tem recebido muitas denominações: pós-modernidade, hipermodernidade, supermodernidade, modernidade liquida, entre outros. No campo das artes vivemos sob o domínio do pós-modernismo. Mas, mais que assumir o termo pós-modernidade, o melhor é entendermos as mudanças e quando começaram, bem como saber de onde vem a idéia de pós-modernidade e o que representaria isso nas expressões artísticas.

É importante deixar claro desde já que pós-modernidade refere-se a um período histórico e pós-modernismo estaria ligado aos "movimentos" artísticos. Coloco movimento entre aspas, pois uma das premissas do pós-modernismo é não assumir-se como movimento, escola ou corrente artística. Ambos, pós-modernidade e pós-modernismo, serão tratados em conjunto de forma a tentarmos dar conta do que vem ocorrendo contemporaneamente, afinal estão imbricados e é bom sabermos desde já que qualquer arte e qualquer artista estão inseridos em seu tempo, e a história presente tem reflexos no seu fazer.

De onde vem o termo pós-modernismo? Segundo Perry Anderson (1999), tanto a idéia como o termo surgiram na América Latina ainda na década de 1930. O pós-modernismo tornou-se um fenômeno mundial, mas ganhou força e imensa difusão apenas nos anos 1970. Esse período é também estabelecido por David Harvey (1994), em seu livro Condição Pós-Moderna, para ele o marco é o ano de 1972 quando foi lançado Fronteira 2 (Boundary 2), que tinha como subtítulo, Revista de Literatura e Cultura Pós-Modernas.

Perry Anderson analisa em sua obra, as Origens da Pós-Modernidade, obras de autores como I. Hassan, F. Jamenson, J. Harbermas e T. Eagleton, para traçar um panorama histórico da pós-modernidade e do fenômeno pós-moderno. Ao comentar Hassan, Anderson afirma que este esbarrou em um problema ao se perguntar se o pós-modernismo era "apenas uma tendência artística ou também um fenômeno social." Hassan foi um dos primeiros teóricos do pós-modernismo, mas abandonou-o quando entendeu que havia se tornado "uma espécie de pilhéria eclética, refinada lascívia de nossos prazeres roubados e descrenças fúteis" (HASSAN apud ANDERSON, 1999, p. 26-8).

Os autores que analisam a pós-modernidade são unânimes em colocar a obra de Jean-François Lyotard, A condição pós-moderna, como outro marco. A obra aborda "uma mudança geral na condição humana" (ANDERSON, 1999, p. 33). Para Lyotard, a razão estava no poder e ao lado do capital. O saber passou a ser uma mercadoria como outra qualquer e o pós-modernismo, no seu entender, um apanágio da direita.

Se o campo das artes vinha rompendo barreiras estéticas com Marcel Duchamp, com a pop arte, a nouvele vaugue, entre outras, no campo político a grande mudança histórica deu-se nos anos 1980 com Ronald Reagan e Margareth Thatcher e suas políticas neoliberais. Assim, ao invés de termos o fim das grandes narrativas, "parecia que pela primeira vez na história o mundo caía sob o domínio da mais grandiosa de todas – uma história única e absoluta de liberdade e prosperidade, a vitória global do mercado" (ANDERSON, 1999, p. 39). No mundo todo viu-se uma onda de privatizações, os trabalhadores perdendo as garantias que haviam conquistado em lutas históricas. O desfecho disso tudo foi o aumento massivo do desemprego. Anderson comentando Harbermas, afirma que este entende a pós-modernidade ou o pós-modernismo, como um neo-conservadorismo, pois a cultura tornou-se "coextensiva à própria economia (...), uma vez que todo objeto material ou serviço imaterial vira, de forma inseparável, uma marca trabalhável ou produto vendável" (1999 p. 67). 

No Brasil a onda neo-conservadora foi sentida fortemente. Iniciada com Fernando Collor de Melo, que ao criar a "imagem" de político avançado, nos apresentou um novo marketing político nas campanhas eleitorais. Já não se tratava de ter um plano de governo, mas de forjar e vender uma imagem. Sua política neoliberal foi continuada por Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990. Este realizou diversas privatizações, submeteu o país ao Fundo Monetário Internacional, numa década de muito desemprego e pouco crescimento. E muito dessas políticas foram continuadas também por Luis Inácio Lula da Silva, afinal, na contemporaneidade ficou difícil discernir a esquerda da direita, se é que existe ainda algum partido de esquerda, visto que ficou "fora de moda" assumir-se como socialista ou comunista após 1989.

O mundo mudou, não há dúvida, e uma revolução contribuiu muito para isso: a revolução tecnológica. O planeta ficou menor. Hoje, em minutos ou até instantaneamente, é possível saber o que ocorre do outro lado do planeta. Por sua vez, houve um aumento do ego, que transparece na competição cotidiana. Os indivíduos só olham para si mesmo. Ainda que tenha exceções, perdeu-se a noção de coletivo e mesmo quando há, esses coletivos são fragmentados, é um movimento ecológico aqui, um movimento étnico acolá etc., mas juntarem-se todos em uma luta única é sempre difícil. Entretanto, não podemos esquecer que o capitalismo continua a existir e a sociedade ainda está dividida em classes, ainda que tudo tenha se tornado mais complexo.

Nesse trabalho veremos, de forma esquemática, três grandes mudanças da contemporaneidade: o tempo, o espaço e o indivíduo, tomando um antropólogo (Augé) e um filósofo (Charles) nessa trajetória. Se Fredric Jamenson identificou o pós-modernismo como "um novo estágio do capitalismo", se quisermos criticá-lo, não podemos negá-lo ou devemos, ao menos, tentar compreender o que está ocorrendo do mundo contemporâneo. De qualquer forma, "é mais seguro entender o conceito de pós-moderno como uma tentativa de pensar o presente historicamente numa época que, para inicio de conversa, esqueceu de pensar historicamente" (F. Jamenson apud ANDERSON, 1999, p. 87).


O PROJETO DE MODERNIDADE ACABOU?


            Para responder a essa questão apresentaremos dois pontos de vistas divergentes da maioria dos autores contemporâneos, inclusive de críticos radicais como Terry Eagleton e Fredric Jamenson, que assumem o termo pós-modernismo, ainda que entendam como fundamental revermos o projeto da modernidade. Mas afinal saímos ou não da modernidade?

Os autores aqui apresentados são franceses, vindos de áreas distintas: filosofia e antropologia, pela ordem de apresentação. Sébastien Charles vai tomar de empréstimo de Gilles Lipovetsky o conceito de hipermodernidade, para travar um diálogo com Jean-François Lyotard. Já o antropólogo Marc Augé, nomina a contemporaneidade de supermodernidade, propondo mudanças na maneira como os antropólogos veem a contemporaneidade.

      Suas obras são de datas distintas. Charles teve seu livro – uma reunião de vários artigos – publicado em 2009. Já Marc Augé – que começou estudando africanidade, antes de mudar seu foco – teve seu livro traduzido em 1994. Ambos elegem três categorias para explicarem suas ideias, entretanto, em apenas uma delas coincidem: o indivíduo, que na contemporaneidade é egocêntrico e consumista.


A hipermodenidade de Sébastien Charles


Contrapondo-se a tese de que vivemos uma era pós-moderna, o filósofo Sébastien Charles, em seu livro Cartas sobre a hipermodernidade ou O hipermoderno explicado às crianças, entende que estamos vivendo em tempos "hiper", uma radicalização da modernidade. O mesmo entende modernidade como uma racionalização técnica do mundo, tendo uma economia de mercado e uma lógica individualista. Assim, o que estamos vivendo é um excesso dessas categorias, traduzidas em hipercomplexidade, hiperconsumismo e hiper-individualismo.

A hipercomplexidade, torna-se clara pela maior racionalização técnica do mundo, expandindo-se para a vida de maneira geral. Daí o mundo viver sob uma lógica paradoxal,

"na qual coexistem, por um lado, a crispação, a reação, o conservadorismo, o recuo comunitário, o retorno à tradição (...) e, por outro lado, o movimento, a fluidez, a flexibilidade, o desapego com relação aos grandes princípios estruturantes da modernidade (a nação, o Estado, a religião, a família, os partidos políticos, os sindicatos), (...)" (2009, p. 127-8).

Isso faz com que os indivíduos tenham, ao mesmo tempo, características progressistas e conservadoras, prega a liberação sexual enquanto vai contra ao casamento homossexual, como exemplifica o autor. Mas a complexidade diz respeito sobretudo a exacerbação da racionalidade técnica, isto é, nossa vida está rodeado por um aparato tecnológico, que intermedeia tudo o que fazemos. A vida e as relações estão mais burocráticas.

Diante de tanta complexidade, o autor entende como urgente repensar a ligação entre indivíduos e a comunidade nacional, pois a "lógica do consumo tende a desfazer os vínculos coletivos e a conduzir os indivíduos a privilegiar a esfera privada" (CHARLES, 2009, p. 130), eis aí sua segunda categoria do hiper ou do excesso: o consumismo. Assim, todas as relações sociais têm se dado sob relações mercantis.

A segunda categoria está intimamente ligada a terceira, ao hiper-individualismo, em que os indivíduos consomem cada vez mais para se dá prazer, dentro de uma lógica "emotiva e hedonista".

"O hiperconsumismo produz, portanto, uma forma de hiper-individualismo pois, ao propor produtos cada vez menos padronizados e cada vez mais personalizados, ele alarga a gama de opções pessoais ao extremo, liberando as condutas individuais dos enquadramentos coletivos" (CHARLES, 2009, p.131-2).


Agora não estamos mais sob a lógica Iluminista de indivíduo, isso fez com que partidos e sindicatos tenham perdido influência, bem como o significado de família. Não existe mais o padrão de família burguesa ou operária, por exemplo.

Ainda segundo Sébastien Charles, esse hiper-individualismo está associado a quatro elementos, isto é, sua transformação está associado a perda das grandes ideologias, ou a crise das metanarrativas, como chamou Jean-François Lyotard. Essa grande desilusão política levou os indivíduos ao recuo da "esfera do privado", sendo associado a lógica mercantil, jogando os indivíduos uns contra os outros e este é o segundo ponto: a desestruturação do mercado tradicional. O terceiro elemento é "a celebração de autonomia individual", dessa forma, os indivíduos ligam-se a diversos grupos, criando novas formas de pertencimento conforme seu interesse. Esse "pertencimento pode tanto ser lúdico quanto reivindicatório" (2009, p. 135). O quarto elemento é a própria transformação do individuo na sociedade contemporânea. No entender do autor, trata-se de assumir as responsabilidades, seja para se dar prazer, seja para assumir as responsabilidades que o Estado não cumpre mais, como aposentadoria, saúde, entre outros. O indivíduo deve responsabilizar-se por si em todos os aspectos. Por causa dessa transformação o corpo eleva-se a um novo status:

"trata-se tanto de se dar prazer quanto de recusar o sofrimento, de melhorar a sua aparência e de apagar as marcas que o tempo inscreve, de se manter saudável e em forma de se sentir prazeres sensoriais sempre renovados" (2009, p. 137).

Para suprir essa lógica individual, mas principalmente mercadológica, temos as indústrias dos esportes, do turismo, da alimentação e da saúde. Mas o culto de si é enaltecido principalmente pela mídia, tudo é filmado e televisionado. É por meio da imagem filmada que se vivencia e se dar o máximo de prazer, tudo vivido no aqui e agora, numa lógica paradoxal, em que a mídia massifica e individualiza comportamentos.

Charles vê riscos nesse individualismo extremado:

"Os perigos que espiam as nossas sociedades surgirão em parte da desestruturação dos indivíduos e da sua falta de reconhecimento social, que poderá conduzi-los a se reorganizar em pequenos grupos ativos, tendo como objetivo acabar com essa forma de civilização que não lhes convém mais" (2009, p. 141).


Mas, segundo o autor, para além desse "self-service generalizado", existe "a vontade real dos átomos individuais de restabelecer os vínculos e de valorizar o coletivo" (2009, p. 144-5). Não se trata de uma crise política, mas dos políticos, estes sim, estão em crise ética e moral. Charles vê possibilidades políticas nos indivíduos, citando os exemplos de mobilização em relação a guerra do Iraque e as grandes doações em momentos de catástrofes: "O hiper-individualismo não leva, portanto, nem ao desaparecimento dos ideais nem à corrupção da moral" (2009, p. 146).

Percebe-se nesse rápido esquema das ideias de Sébastien Charles, que ele é bem pessimista com relação ao momento histórico que atravessamos, fazendo duras críticas. Mas o autor também as merece em relação a alguns pontos defendidos em seu livro. Para ele as classes sociais foram dissolvidas. Assim, perguntamos, onde estaria o caminho para a transformação se a sociedade não é mais dividida em classes? Como identificar nossos adversários? Quem impulsionaria a mudança? Seria possível criar uma mudança social radical, baseado apenas no individuo, sem uma identificação de classe? Se a classe trabalhadora – dentro de uma perspectiva à esquerda, única classe revolucionária, mas que ainda não fez a revolução – não realizar as reais mudanças, permanecerá sob o eterno jugo da classe dominante, portanto, tudo permanecendo como está, afinal quem está no poder não busca mudanças.

Outro ponto polêmico é quando escreve sobre a economia de mercado, julgando que "nenhum modelo econômico alternativo nos parece legítimo para substituir o mercado" (p. 24), entendendo que basta uma melhor distribuição de renda e que a globalização, apesar de ruim, é um fenômeno que deve ser apenas melhor regulado. Ora, isso é o mesmo que dizer amém ao mercado. Quanto aos modelos alternativos a uma economia de mercado, apesar de nunca ter sido praticada de forma efetiva, eles existem desde o século XIX. Ou será que o autor nunca leu nada sobre socialismo e comunismo? Talvez o pessimismo de Charles faça com que ele não acredite mais em mudanças. No entanto, quando a sociedade francesa vivia sob o jugo da nobreza, não se imaginava que a burguesia viesse realizar a revolução e não podemos acreditar que essa seja a única classe social capaz de realizar uma revolução na história.


A supermodernidade de Marc Augé


O antropólogo francês Marc Augé também entende que não vivemos na pós-modernidade, mas sim numa "supermodernidade", ou seja, também entende que vivemos em um período de radicalização da modernidade, caracterizado por três excessos: de tempo, espaço e de ego. Seu livro Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade, direcionado aos antropólogos, propõe uma mudança de foco. Para entendermos a contemporaneidade, não se trata de método, mas de nos voltarmos para o objeto, daí as três categorias de excesso propostas por ele. O excesso multiplica os fatores e dificulta a análise.

O excesso de tempo, caracterizado por um excesso factual do mundo high tech, faz com que percebamos o mundo de forma diferente. No seu dizer, "estamos com a história em nossos calcanhares" (2008, p. 29), tudo envelhece rapidamente por causa do volume de informações, criando uma necessidade em dar sentido a tudo em tempo real. Essa abundância factual cria uma dificuldade para o historiador "contemporaneísta" que tente traduzir nosso tempo aos demais. Afinal, nossa própria história, "pertence à história" (2008, p. 29): podemos compreender o presente, graças a abundância de fatos, porém temos dificuldade de compreender a história que se distância de nós no tempo; não conseguimos lhe dar sentido. O excesso de tempo cria uma crise de sentido. Se a história ocorre no tempo e no espaço, os dois são cada vez mais fugidios. Assim chegamos a segunda categoria.

A categoria de espaço e seu excesso, se traduz em um encolhimento. A sensação é a de que o mundo encolheu. As grandes concentrações urbanas radicalizam essa sensação, cada vez mais pessoas moram em grandes aglomerados urbanos. Outra sensação de encolhimento, vivemos, hoje, como se pudéssemos está em diversos lugares ao mesmo tempo, seja por meio de transportes supervelozes ou pela informação que recebemos de todo o planeta, favorecendo a criação dos não-luagres, que iremos abordar na sequência.

A terceira categoria proposta por Augé, é o excesso de ego, de individualidade, em que os indivíduos perdem as referências coletivas e as identidades. O indivíduo passa a ser o centro do mundo. Nas suas palavras, "o indivíduo quer o mundo para ser o mundo" (2008, p. 38). Por isso mesmo as histórias individuais tem sido valorizadas, mesmo necessária, afinal "o social começa com o indivíduo" (2008, p. 24). O que o autor está propondo é que ao olharmos os indivíduos entenderíamos melhor nosso tempo.

Por isso Marc Augé entende que ainda não aprendemos a olhar a supermodernidade. Para ele é fundamental reaprendermos "a pensar o espaço", isso porque é nele que se criam os não-lugares. Se, de certa forma, são as três categorias as responsáveis pela criação do não-lugar, ele se dá no espaço, sendo essa uma categoria muito importante para entendermos o nosso tempo.

E o que seriam os não-lugares para o antropólogo francês:

"Os não-lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde são alojados os refugiados do planeta" (2008, p. 36).


Assim, os não-lugares, são, por definição, os espaços dos viajantes. Por isso mesmo nos dar a sensação de estarmos inseridos em todos os lugares, mesmo nos mais longínquos da Terra. Se o lugar, no sentido sociológico, é histórico, relacional e cria identidade. O não-lugar é o seu oposto.

"Vê-se bem que por 'não-lugar' designamos duas realidades complementares, porém, distintas: espaços constituídos em relação a certos fins (transporte, trânsito, comércio, lazer) e a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços. (...) assim como os lugares antropológicos criam um social orgânico, os não lugares criam tensão solitária" (AUGÉ, 2008, p. 87).


As relações nos não-lugares são contratuais, ocorrendo por meio de bilhetes, tickets etc., exigindo, em muitos casos, apresentação de documentos, para se provar "sua inocência", isto é, que você é você mesmo, só assim se está apto a usufruir do não-lugar.

Por todas essas mudanças, as relações na supermodernidade são cada vez mais superficiais e efêmeras, principalmente nas grandes cidades. E é importante saber que, hoje, mais da metade da população mundial já vivem em grandes centros urbanos e estima-se que em 2025, sejam 75% da população mundial. E é justamente nas grandes cidades onde abundam os não-lugares, isto é, espaços criados para uma relação contratual, sem a possibilidade de criar vínculos, pois o não-lugar, em oposição ao lugar, é não identitário. Dessa forma, nos distanciamos cada vez mais da noção de coletivo, de coletividade.


CONCLUSÃO


Para concluir podemos pensar a contemporaneidade, juntamente com Terry Eagleton, tanto no sentido histórico quanto artístico, nessas linhas:

"Pós-modernidade é uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a idéia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de explicação. (...) Pós-modernismo é um estilo de cultura que reflete um pouco essa mudança memorável por meio de uma arte superficial, descentrada, infundada, auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista, que obscurece as fronteiras entre a cultura 'elitista' e a cultura 'popular', bem como entre a arte e a experiência cotidiana" (1998, p. 7).



Já Sébastien Charles apresenta sua hipermodernidade "como uma espécie de vácuo no plano intelectual, acompanhado em parte de uma perda das referências e de uma rejeição dos textos difíceis" (2009, p. 9).

Enfim, aceitando ou não os termos pós-modernidade e pós-modernismo, é fato que vem ocorrendo mudanças, transformações, e precisamos saber identificar quais foram e quais são e como nos colocamos em relação a elas. Não há dúvida que, com relação as categorias de tempo, espaço e sujeito, houve imensas mudanças embaladas pela tecnologia. Não podemos nos fechar a isso, de forma a podermos usufruir ou nos contrapormos as mesmas dentro da contemporaneidade.

Por outro lado, não podemos esquecer que o mercado fincou suas garras não só sobre as artes, mas sobre a própria vida. Como bem afirmou Harbermas: "Atualmente, a língua do mercado infiltra-se por todos os poros e pressiona todas as relações inter-humanas para o esquema da orientação pelas próprias preferências de cada um" (2004, p. 147).

Assim, como propõe Ianni ao analisar a globalização, se criamos termos-metáforas são na tentativa de dar conta de uma realidade ainda fugidia, pois as metáforas combinam "imaginação e reflexão" visando desvendar a realidade de forma poética. Daí tantos termos para explicar esse período conturbado em que vivemos.

O fato é que, apesar das grandes mudanças, vivemos ainda na modernidade, mesmo que transformada, radicalizada, isto é, o projeto moderno ainda não foi concluído e é preciso retomá-lo com as reais críticas que merece. Se pós-modernidade, como alerta Sébastien Charles, implica rompimento com a modernidade, temos mais um motivo para entendermos que vivemos uma continuidade desse período histórico, o que foi deixado de lado são seus ideais de justiça, igualdade e de emancipação dos sujeitos. Faz-se necessário retomar o projeto moderno, não como foi realizado pela burguesia, mas dentro de outra ótica e de novos procedimentos.

Para tanto, a arte contemporânea, seja ela pós-modernista ou qualquer outro termo que venha ter, deve ser uma arte preocupada com esse projeto de mudança. Se as ideias dominantes de uma época, são sempre as ideias da classe dominante, a arte deve cumprir o papel de desvelamento dessa realidade opressora na qual estamos inseridos, engajando-se numa relação entre cidade e cidadão, para criar e afirmar os lugares, isto é, revelando novas possibilidades ao criar laços identitários, afinal é a cultura, sobretudo por meio das artes, que geram a ideia de nação – tão esfacelada com o mercado global. Não é possível acreditarmos que nos resta apenas o mercado e a exploração capitalista. Nesse sentido, as artes devem travar uma disputa simbólica com os meios de comunicação e a arte hegemônica, utilizando-se, de todos os recursos – como já vem fazendo –, mas atendo-se ao conteúdo, muito mais que a forma. Afinal, o formalismo exacerbou-se nessas poucas décadas de mudanças, ditas pós-modernas.

Por fim, é importante deixar claro que não estou propondo que as artes sejam a panacéia à todos os problemas contemporâneos, afinal, uma arte, seja ela qual for, por mais que seja comprometida com a revolução, não é capaz de fazer a revolução por si mesma. Mas pode lançar luzes aos atores revolucionários – a classe trabalhadora –, ao desopacizar, desobumbrar a realidade no qual estamos todos inseridos.


BIBLIOGRAFIA

ANDERSOR, Perry. As Origens da Pós-modernidade. Trad.: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

AUGÉ, Marc. Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trad.: Maria Lúcia Pereira. 7ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2008. (Coleção Travessia do Século)

CHARLES, Sébastien. Cartas sobre a hipermodernidade ou O hipermoderno explicado às crianças. Trad.: Xerxes Gusmão. São Paulo: Barcarolla, 2009.

EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Trad.: Elisabeth Barbosa. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? Trad.: Karina Janini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

HARVEY, David. Condição Pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 4ª ed. São Paulo: Loyola, 1994.

IANNI, Octávio. Teorias da Globalização. 11ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.



[1]Trabalho realizado na pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp, na disciplina Narrativas Pós-Dramáticas, professor Dr. José Manuel Ortecho Ramirez.
[2]Mestrando do Instituto de Artes da UNESP, com pesquisa sobre teatro de rua, identidade e território.
[3]Inicialmente o trabalho pretendia apresentar as mudanças aqui tratadas e como o teatro de rua se insere nessas mudanças, entretanto não foi possível realizar essa segunda parte. Fica a dica àqueles que queiram encampar essa pesquisa.

2 comentários:

Flávia D'ávila disse...

Gostei muito do artigo!

Paulo Barja disse...

Seu artigo é um ótimo começo de conversa.
Temos o diagnóstico: a "racionalização técnica do mundo" tem se verificado também (e muito) nas artes, com o predomínio dos efeitos visuais, a espetacularização sobrepondo-se às idéias etc.
Temos a sua (nossa) questão bem colocada: o que fazer diante disto?
Uma proposta: atuar como cidadão (mais que como artista) não apenas nos "lugares estabelecidos", mas também (e principalmente) nos não-lugares.
Buscar aí as identidades coletivas, trabalhar a noção de pertencimento, o senso crítico - muito trabalho pela frente! E trabalho para muita gente!
Abraços