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domingo, 5 de junho de 2011

Teatro épico e épico brechtiano

II Encontro do Núcleo Regional de Pesquisadores de teatro de Rua (SP) - 12/02/2010
Sobre o Teatro Épico e o Épico brechtiano  Alexandre Mate[1]
            Teatro é conhecimento: tanto no processo de produção como no da recepção. A linguagem teatral é bastante sofisticada. Conflui no espetáculo a junção de diversas linguagens artísticas. No século XIX, Richard Wagner utilizou-se bastante do vocábulo Gesamtkunstwert (cujo significado aproxima-se de "obra de arte total"). Manifestação no tempo e no espaço, normalmente com atores e atrizes representando personagens, acompanhados de música, figurinos, maquiagens... por meio de linguagem metaforizada.
            Um livro bastante útil para entender algumas questões que dizem respeito à personagem (gr. persona = máscara + agon = debate) concentra quatro interessantíssimos ensaios: trata-se de A personagem de ficção. (São Paulo: Perspectiva, 1976). Na obra, Anatol Rosenfeld, Antonio Candido, Decio de Almeida Prado e Paulo Emílio Salles Gomes apresentam considerações essenciais. De modo bastante esquemático, Decio e Almeida Prado lembra que uma personagem pode ser reconhecida:
- pelo que faz: corresponde ao conjunto de suas ações na obra.
- pelo que pensa: corresponde àquilo que a personagem pensa e que é dito à plateia. O recurso caracteriza-se (quase) em uma narração, e é conhecido pelos nomes de monólogo (gr. mono + um, único + logo = razão, pensamento) ou solilóquio (latim, com mesmo sentido de monólogo (soli = um, único, sozinho + loquio = logos).
- pelo que dizem dela: a personagem não age, não mostra e não apresenta seus pensamentos. Entretanto, outras personagens trazem informações aos espectadores para que este entenda a personagem, suas motivações etc.
            Agregado a tudo isso, o espetáculo apresentado na rua conta ainda com uma fricção real de tudo o que é real. O ator de teatro de rua ou na rua, basicamente, atua sem proteções mais confortáveis do teatro de caixa, e mesmo em espaços alternativos fechados.
            Ao assistir um espetáculo, é preciso processar muitas coisas, muitos códigos simbólicos. Invariavelmente, e porque a obra não pode parar - como na leitura de algo escrito - é fundamental prontidão permanente... Um espetáculo, às vezes de modo lancinante, exige que se contraponha um repertório de que se dispõe a outro que se apresenta ao vivo. Claro que não é apenas essa exigência que faz com que, tantas vezes, limitemos nossa "apreciação estética" aos gostei e não gostei... Observar e ver, são atributos fundamentais para quem aprecia e para quem faz teoria (cf. etimologias apresentadas no encontro anterior), teoria é um exercício difícil, mas que imprime asas a quem se aproxima de um objeto para entendê-lo.
            Ao teorizar, entramos em choque com aquilo que temos e o objeto que se apresenta a nós. Crise é uma palavra grega (verbo critem) cujo significado é filtrar, peneirar... Portanto, crítica pressupõe crise. Outra palavra correlata a ela é discernimento.
            De certa forma, a crise no drama ocorre fundamentalmente no âmbito do conteúdo. No drama, as personagens são consideradas absolutas e, também, construídas por sofisticadíssimas redes intersubjetivas, são apresentadas de modo a que nos identifiquemos com ela, com seu "ser absoluto". Nas obras populares, evidentemente, as personagens são criadas com concisão psicológica, afigura-se aos nossos olhos (ao nosso ver), principalmente, as situações. No épico coexistem, de modo harmonioso ou não, a voz pretérita e a voz do presente.
            Historicamente, o drama burguês inicia sua missão de impor o ideário da burguesia, em 1843. Neste ano, o ministro do Interior da França, Léon Faucher, cria um decreto prometendo espaço e apoio econômico aos dramaturgos que louvassem as virtudes burguesas. Tratava-se, naquele momento da história, de "escorraçar" dos palcos os textos do romantismo. Desse modo, os textos que surgiram a partir desse momento têm um caráter moralista arrebatador.[2]O movimento (pré Realismo) recebe o nome de École du bon sens (Escola de bons modos, leia-se: modos ou ideário burguês). As obras inaugurais da escola realista eram chamadas de comédias realistas (comédias porque o final era feliz: sempre vencia a moral burguesa).
            O quadro abaixo, reproduzindo de certo modo algumas sugestões de S. Tomas de Aquino (1225-1274), escrito por Benjamin Franklin e outros, designado: Esquema das virtudes burguesas[3]é bastante revelador quanto aos "valores" pelos quais as comédias realistas deveriam passar:
  1.   Moderação: Não comas demasiadamente, nem bebas até a embriaguez.
2.   Silêncio: Não fales mais que o que possa ser útil para os outros ou para ti mesmo; evita a tagarelice vazia.
  3.   Ordem: Reserva um lugar para cada coisa e um tempo para cada assunto de teu  negócio.
  4.   Decisão: Determina-te a fazer o que deves e realiza aquilo que propões.
  5.  Parcimônia: Não faças nenhum gasto que não sirva para proporcionar um bem a outros ou a ti mesmo;    ou em outras palavras: não esbanjes.
  6.  Diligência: Não desperdices o tempo; ocupa-te sempre com algo útil e despreza toda atividade inútil.
  7.  Sinceridade: Não te sirvas de mentiras. Pensa sem malícia e com justiça; quando falares, faze-o com      verdade.
  8. Justiça: Não prejudiques ninguém com injustiças e não fujas das tuas obrigações para com o próximo.
  9.  Ponderação: Evita os extremos; não reajas com violência às ofensas e não as leve a mal, como mereceriam à primeira vista.
  10.  Limpeza: Não admitas sujeira em teu corpo, tuas roupas ou tua casa.
  11. Serenidade: Não te inquietes por coisas sem importância ou por desgraças freqüentes ou irremediáveis.
  12. Castidade: Mantém relações sexuais apenas por motivos de saúde ou de descendência. Nunca chegues ao extremo de embrutecer-te, viciar-te ou de perturbar a paz da tua alma, bem como a dos outros, e de manchar teu bom nome.
  13.  Humildade: Segue o exemplo de Jesus e Sócrates.

            Na medida em que era necessário que os ideais burgueses chegassem também ao teatro, a forma do drama, ambientado no lar - e tendo o chefe de família como protagonista - reestrutura-se a partir das seguintes determinações:
Ÿ  personagens absolutas vivem uma história cuja narrativa é linear; o diálogo, fundamentado na intersubjetividade, organiza o pensamento, sem intervenção de narrador exterior à trama; conflito se caracteriza no "motor" e nas relações entre as personagens; os acontecimentos da peça se passam no aqui-agora (hic et nunc)  do espectador.
            Pode-se dividir esquematicamente o drama a partir da seguinte representação  visual:

.______________._______________._______________.    estrutura sintagmática do texto
          1°  ato                          2° ato                             3° ato                                         
       apresentação               desenvolvimento              conclusão
     das personagens                dos conflitos
 Obs. Imaginem uma curva mais suave, e mais constante em ascensão. Em seu topo fica  o clímax dos conflitos.

                A partir das características apontadas, e por meio do recurso chamado tranche de vie (fatia de vida) - conceito que pressupõe estabelecer um "recorte" na realidade social e sua estetização, na condição de assunto para os dramas realistas - os autores burgueses constroem suas obras: ilusionistas; apresentando conflitos entre personagens da burguesia; "apartando" o público dos atores (espectador é concebido como voyeur) - recurso da 4ª parede; ambientando todos os aspectos visuais amparados no conceito de verismo; objetivando a identificação emocional do espectador com os padecimentos da personagem...  Enfim, obra como simulacro ou espécie de fotografia do real, em que ações "aconteciam no mesmo tempo da recepção do espectador".
            Discordando da chamada "fatia de vida burguesa", sobretudo por conta de a realidade social não ser habitada apenas por burgueses, e por fazer apologia ao papel do artista como um cientista, Émile Zola (para quem o teatro representará uma espécie de laboratório) - por intermédio de um prefácio: Manifesto do Naturalismo, inserido em seu romance, de 1867, Thérèze Raquin - lança as bases do Naturalismo tendo como pressuposto o ambiente e a hereditariedade. Ainda que fundamentado em pressupostos positivistas, Zola conclama a todos os artistas para a importância do trabalho de pesquisa: pressupostos cientificistas deveriam orientar o trabalho de criação. Retomando o começo do parágrafo, a realidade social constituía-se por burgueses e por proletários, portanto, a tranche de vie, precisaria contemplar as duas classes em relação. De certo modo, surge uma dramaturgia que passa pela luta de classes. Amparado em tais proposições, em 30 de março de 1887, André Antoine funda o Théâtre Libre (Teatro Livre). A esse respeito, de acordo com reflexão de Anatol Rosenfeld (Teatro alemão: história e estudos, 1968):
O naturalismo, face ao realismo, distingue-se particularmente pela crescente influência da filosofia positivista de Comte e das ciências histórico-sociais e naturais. [...] A aplicação de métodos "científicos" à literatura, particularmente com Zola, leva à limitação do cunho imaginativo, à exigência crescente da eliminação do subjetivismo poético, à imposição de máxima objetividade e estilo impessoal. Se o interesse de Flaubert se concentrava ainda na classe média, o de Zola já visa fortemente ao proletariado. Pela própria influência do cientificismo a imagem do homem é sujeita a um processo de desmascaramento e redução às vezes cruel. Desalojado dos reinos metafísicos ideais resta um ente rigidamente determinado por fatores biológicos (hereditariedade) e sociais (ambiente), com reações que são estudadas debaixo do microscópio. Semelhante processo "dissolve" o herói; surge o anti-herói – o homem passivo, mediano, medíocre.

            A partir do empenho e militância de Zola (e das inúmeras brigas com a crítica, destacando fundamentalmente a figura de Sarcey[4]), as idéias do Naturalismo irão encontrar eco com André Antoine, sendo que, de modo esquemático, essa primeira etapa pode ser apresentada a partir das seguintes determinações ou expedientes básicos, que aprofundaram aqueles já apresentados pelo Realismo, ou seja:
- busca e adequação para a criação artística de critérios de probabilidade no empirismo das ciências naturais;
- questão do psicológico ou desenvolvimento psicológico das personagens fundamentando-se no princípio de casualidade, sendo que o homem seria condicionado pelas leis da hereditariedade (importante lembrar que o chamado "mal do século XIX" - à semelhança da síndrome de imunodeficiência adquirida do século XX – foi a sífilis) e do ambiente;
- desenvolvimento fundamentado na lógica cartesiana e "correta" do enredo: inserido no conceito de peça bem feita, eliminando todos os acasos e milagres[5];
- descrição objetiva e científica (ou cientificista) do ambiente, tendo como mote a idéia básica de que todo fenômeno natural teria seu lugar numa cadeia aberta de condições e motivos;
- os pormenores artísticos deveriam ser tratados de acordo com o método de observação científica, sem desprezar nenhum incidente;
- o texto, a interpretação e a encenação deveriam ser desenvolvidos partindo do princípio da verossimilhança (sem nenhuma espécie de simulacro esteticista);
- assuntos dos textos deveriam ser retirados da vida social, com a reprodução exata das personagens, sem nenhum tipo de "enfeite ou crivos embelezadores": este conceito fundamentava-se no princípio de conceber o teatro a partir da tranche de vie (fatia de vida).[6]Aliás, nesse particular, trabalhadores, empregadas, mendigos, proxenetas... as chamadas personagens do "baixo mundo" (demi-monde) - que passam a protagonizar tantas obras, foram "elevadas" à condição de protagonistas (como acontecia desde sempre com a comédia popular)[7];
- a relação (e/ou recepção) esperada por parte do espectador deveria ser fundamentalmente passiva ou usando o termo correto:) pática, posto que a realidade social chocaria e perturbaria, nessa perspectiva, portanto, o espetáculo deveria ser apresentado e desenvolvido sem nenhuma forma de concessão  que não ao ilusionismo perfeccionista.
     Além de contemplar as teses de Zola, o Théâtre Libre irá se caracterizar em um estratagema para fugir da forte censura do Estado contra certas obras cuja temática "era forte demais" para as tentativas de consolidação da hegemonia. Graças ao estratagema, que pressupunha também a associação de sujeitos ao coletivo, foi possível assistir, por exemplo, a uma das obras mais proibidas do século XIX: Casa de bonecas de Ibsen. 
            As propostas de Antoine espalham-se pela Europa. Em 1888, na Rússia, Stanislávski e Dantchenko fundam  o Teatro de Arte de Moscou (TAM) e na Alemanha, por intermédio de Otto Brahm, funda-se o Freie Bühne (Cena ou Palco livre). Desse modo, as três corporações aqui apontadas seguem caminhos e propostas diferentes. Sobre as diferenças entre o Naturalismo francês, mais ligado ao indivíduo, e o alemão, Gerd Bornheim (Bertolt Brecht: a estética do teatro, 1992) apresenta uma reflexão bastante interessante.
            A Freie Volksbühne (Cena Popular Livre) de Berlim, fundada por Erwin Piscator, politiza-se explicitamente tomando as teses mais significativas da teoria marxista e chega à conclusão de que não é possível ao drama apresentar e discutir as questões mais importantes posta pela história. Assim, conquistando muitos trabalhadores para se associarem à Freie Volksbühne, que formava um coletivo político-cultural, Piscator, depois de algumas encenações, trazendo para a cena diversos expedientes teatralistas, decorrentes de formas mais populares, como o teatro cabaré, com função modificada e com "possibilidade de ação direta no palco"... aponta explicitamente a necessidade de criação de uma nova forma. Tendo clareza entre tendenciosidade e verdade, afirma o diretor:
[...] A mais forte tendenciosidade que se pode imaginar não nasce de outra coisa senão da realidade objetiva, sem retoque, crua, e a mim me parece que hoje em dia, não somente a mais forte ideologia revolucionária, senão também a capacidade mais artística, é necessária a fim de tornar visível essa realidade em novo plano. (PISCATOR, 1968, p.90-1)
            Nesse particular, o autor afirma (apud Borheim, 1992, p.129-30):
[...] sobre o palco, o homem tem para nós o significado de uma função social. Não é a sua relação consigo, não é a sua relação com Deus que está no centro, mas a sua relação com a sociedade. Onde ele se apresenta, como ele se apresenta, ao mesmo tempo, sua classe ou sua camada social. Quando ele entra em conflito moral, psíquico ou afetivo, entra em conflito com a sociedade. (...) não se pode ver o homem senão em sua atitude frente à sociedade e aos problemas de sua época, isto é, como um ser político. [...] Portanto, quando designo como idéia fundamental para todas as ações cênicas a elevação das cenas privadas até a dimensão histórica, não posso me referir a nada mais que a elevação ao plano político, econômico e social. Através dela vinculamos o teatro e a nossa vida.
            Pelo fato de o épico representar um ou vários recortes articulados do mundo e buscar vencer a alienação e reificação da forma, entre a ação no palco e as grandes forças efetivas na história, Piscator desenvolve os expedientes de um teatro épico para discutir amplamente questões de natureza política e histórica tão distantes das especulações intersubjetivas e dos indivíduos da forma burguesa. Desse modo, as encenações do diretor alemão apresentam-se sem quarta parede; buscam o trabalho com personagens alegóricas e coletivas (coro),  por meio da diégese, e que, diretamente, o ator, como corifeu, conclamasse o público; que os assuntos dissessem respeito à luta de classes, sob a ótica do proletariado; que houvesse, quando necessário, inserções de projeções (película cinematográfica) para trazer à cena o documento cujo assunto estivesse em pauta; utilização de cartazes para ligar uma cena a outra; intenta a participação do público, por meio de jogos. Nesse particular, muitos são os exemplos, entretanto, um deles é deliciosamente significativo e encontra-se relatado em nota de roda pé por Piscator (1968, p.53):
[...] John Heartfield, que se havia incumbido de preparar um telão para O Mutilado, como sempre o fez com grande atraso; com ele enrolado e metido debaixo do braço, apareceu à porta de entrada da sala, quando nos encontrávamos na metade do primeiro ato. O que se seguiu poderia ter-se afigurado uma idéia minha, mas foi coisa inteiramente involuntária. Heartfield: "Erwin, pare! Estou aqui!' Atônitos, voltaram-se todos para aquele homenzinho, de rosto fortemente avermelhado, que acabava de entrar. Não sendo possível continuar o trabalho, levantei-me, abandonando por um instante o meu papel de mutilado, e gritei: "Por onde andou você? Esperamos quase meia hora (murmúrio de assentimento no público) e, por fim, começamos sem o seu trabalho." Heartifield: "Você não mandou o carro, a culpa é sua! Corri pelas ruas. Nenhum bonde me aceitou: o telão era demasiado grande. Finalmente, consegui pegar um, mas tive de ficar no estribo, de onde quase caí!" (crescente hilaridade do público). Interrompi-o: "Fique quieto, Johnny, precisamos continuar o espetáculo." - Heartifield (extremamente excitado): Nada disso, antes vamos erguer o telão!" Como ele não cedesse, voltei-me para o público, perguntando-lhe o que se devia fazer: se queria que continuássemos o espetáculo ou se devíamos pendurar o telão. A grande maioria decidiu pela última solução. Deixamos cair o pano, montamos o telão e, para contentamento geral, recomeçamos o espetáculo."
            Inúmeros são os expedientes a distinguir o dramático do épico. A teatralidade explícita e partilhada com o público caracteriza-se no fundamental. Ao explicitar o jogo, atores e público experimentam, reinventam, reestabelecem papéis, trocam saberes, aflições, não saberes. No teatro épico, o palco perde seu caráter de miradouro apenas para transformar-se em espaço de troca de experiências. O teatro de rua promove tal função. Sem esta função, praticada, o que se tem, provavelmente, é o teatro na rua.   Como o próximo movimento na reflexão será dado por intermédio do épico brechtiano, e para finalizar a importância e parte do legado piscatoriano, tomando ainda as reflexões de Bornheim (1992, p.132), Brecht teria afirmado sobre o diretor alemão, basicamente seu primeiro mestre:
Piscator empreendeu a experiência mais radical para emprestar ao teatro caráter pedagógico. Tomei parte em todos os seus experimentos, e nenhum foi feito que não tivesse por objetivo elevar o valor didático do palco. Tratava-se diretamente de pôr sobre o palco [...] os grandes complexos problemas contemporâneos, a luta em torno do petróleo, da guerra, da revolução, da justiça, a questão da raça e assim por diante. Daí impor-se com necessidade a transmutação total da cena. É impossível descrever aqui todas as descobertas e novidades empregadas por Piscator, com o recurso das novas conquistas tecnológicas, para pôr em cena os grandes temas modernos.
            Por último, pelo empreendimento pedagógico-político (sem descartar o estético), com Piscator a cena ganha dimensão popular e política. Bertolt Brecht apropria-se de diversas experiências e dá continuidade ao processo desenvolvido por Piscator, radicalizando-o.
*
*   *
            Talvez a mais importante teórica sobre o teatro épico atualmente seja Iná Camargo Costa. Sem eufemismos ou meias palavras, a importante militante e pesquisadora, discute claramente o épico brechtiano. Desse modo, é preciso atentar às suas intervenções e reflexões sobre o assunto motivo pelo qual ela aqui aparece como epígrafe:
         Numa fórmula extremamente sumária, podemos dizer que o teatro épico, do qual Brecht é o mais importante emblema, foi uma espécie de arma forjada entre o final do século passado e as três primeiras décadas deste por artistas adeptos da causa da revolução proletária, no âmbito da luta cultural. Uma luta tão legítima quanto a travada por Diderot e companheiros do então chamado "partido filosófico" para criar o teatro dramático em meados do século XVIII. Mas na comparação entre os dois gêneros desde logo o teatro épico sai em desvantagem por uma questão histórica decisiva: enquanto o drama e a classe que o forjou acabaram vencendo no capítulo que lhes coube na história da luta de classes – vitória cifrada na Revolução Francesa e no apogeu do drama em sua (já decadente) versão "peça bem feita" durante o Segundo Império –, o teatro épico foi vítima de sucessivas derrotas ao longo do nosso século, sendo que a primeira delas, já expressão do desastre que o stalinismo significou para a revolução, poderia muito bem ser identificada ao suicídio de Maiakóvski e ao assassinato de Meyerhold, uma vez que com a encenação de Mistério Bufo, texto do primeiro e direção do segundo para comemorar o aniversário da Revolução Soviética, os dois escreveram um capítulo fundamental da história (...) As derrotas políticas, artísticas e teóricas, constituem hoje parte do problema a ser enfrentado por quem se interesse pelos períodos mais férteis da história do teatro moderno contemporâneo.[8]
            Já se passou por alguns dos expedientes do épico: teatralidade explícita; ausência de quarta parede e jogo sendo desenvolvido entre atores e público; mescla da mimese e da diégese; assuntos de abrangência social, confrontando o objetivo e ao subjetivo, o pessoal e ao histórico; a politização da cena; a inserção de expedientes de outras linguagens artísticas (como a projeção fílmica); a narrativa é desenvolvida em fluxos de tempos, contemplando passado e presente; não se atem às questões de conflito (intersubjetivo); a personagem é social e histórica.
Forma dramática do teatro
Forma épica do teatro
1. palco 'corporifica' uma ação                    
2. envolve o espectador numa ação, e consome sua atividade             

3. torna possíveis seus sentimentos                              
4. proporciona-lhe emoções, vivências        
5. o espectador é transportado dentro de uma ação
6. trata-se de sugestionar                                 
7. os sentimentos são conservados               
8. pressupõe-se o homem como já conhecido
9. o homem é imutável                                    
10. tensão em relação ao desfecho                              
11. cada cena liga-se à outra                          
12. os acontecimentos decorrem linearmente
13. a natureza não dá saltos (natura non facit saltus)               
14. o mundo tal como ele é                            
15. o homem como deve ser                          
16. seus impulsos                                                              
17. o pensamento determina o ser                                                
relata a ação
torna-o um observador

desperta sua atividade
força-o a tomar decisões
proporciona-lhe conhecimentos
trabalha-se com argumentos
eles são levados até o reconhecimento
o homem é objeto de investigação
o homem é mutável e agente de mutações
tensão em relação ao andamento
cada cena para si mesma
decorrem em curvas
dá saltos (facit saltus)
o mundo tal como se transforma
o que é imperativo que ele faça
seus motivos de movimento
o ser social determina o pensamento

           
            O quadro acima, hoje um "clássico", apresenta algumas diferenças apontadas por Brecht acerca do teatro de forma dramática e aquele de forma épica. Sem considerações de natureza política, pode-se perceber que o épico postulado por Brecht preocupa-se grandemente com a questão do conhecimento. Em A vida de Galileu, por intermédio de Galileu, Brecht defende a tese de que é necessário "[...] aferrar o nariz no objeto do conhecimento." Teatro é, na acepção do alemão, diversão e conhecimento, ou teatro da científica.
            O próprio Brecht lembrava que a utilização da expressão teatro épico, por ele adotada para designar o teatro que desenvolvia, poderia parecer bastante contraditória, uma vez que o próprio Aristóteles, em sua Poética, apresentava uma distinção entre a forma épica e a dramática, cujas narrativas eram opostas e com particularidades bastante diferentes uma em relação à outra. Grosso modo, tal distinção alicerçava-se no princípio segundo o qual uma forma artística era apresentada por seres vivos (tragédia se consolidava por meio do espetáculo) e a outra (a epopeia) pela utilização da palavra escrita. O mesmo Aristóteles apresentava como diferença fundamental a estrutura de ambas, o que queria dizer o modo pelo qual a obra era oferecida ao público. Para além disso, tratava-se, para Brecht, de apresentar o homem  como um sujeito prenhe de historicidade: que tanto é modificado como pode modificar seus contextos; rechaçando, assim, o conceito de imutabilidade, inexorabilidade, destino, determinação e tantos outros adjetivos afeitos aos já apresentados e característicos ao teatro dramático. De outra forma, o homem, para o dramaturgo alemão, era alterável: sendo conduzido e conduzindo o processo histórico. Dessa forma, afirma o autor, em Teatro recreativo ou teatro didático?
Não pretendemos explicar aqui por que motivo a oposição entre épico e dramático, durante longo tempo considerada insuperável, perdeu sua rigidez; basta-nos chamar a atenção para o fato de a cena, através de aquisições técnicas, ter adquirido condições para incorporar nas representações dramáticas elementos narrativos. As possibilidades oferecidas pelas projeções, possibilidade de maior transformação da cena através da utilização de 'motores' – o cinema –, completaram o equipamento do palco; surgiram no preciso momento em que se constatou não ser possível, ainda, apresentar os acontecimentos que se revestem para os homens de importância máxima pelo simples processo de personificação das forças em ação ou da submissão das personagens ao poder de invisíveis forças metafísicas. Para a exata compreensão dos acontecimentos, tornava-se necessário dar realce (por vasto e "significativo") ao ambiente em que vivam os homens.  (BRECHT, 2005, p.65)
            A Brecht não interessava investigar exclusivamente o indivíduo e suas inúmeras mazelas psicológicas e, nessa perspectiva que a ação fosse o produto de conflitos de interesses e sentimentos entre as personagens, e apresentadas pelo teatro dramático normalmente alheias aos contextos e circunstâncias sociais que o conformava esse indivíduo, e realimentando suas infelicidades, decepções, amarguras e angústias constantes. Desse modo, e em contraposição a esse tipo e natureza de teatro, Brecht propunha-se e cumpriu o trabalho com um tipo de teatro cuja natureza preconizava/objetivava cercar e apresentar os assuntos históricos, de modo a que os indivíduos neles inseridos –  a partir de uma exposição apresentada a partir de diversos e argumentativos pontos de vista – pudessem intervir e transformar qualitativamente suas vidas e às daqueles que com ele convivessem.
            Partindo de Piscator e aprofundando suas pesquisas - tanto de algumas experiências estéticas postas pela história (certas práticas do teatro oriental, teatro de feira, teatro cabaré alemão...) como das teses ligadas ao marxismo -, Bertolt Brecht, radicaliza e politiza a cena. Para o alemão, a forma e o conteúdo são retrabalhados e redefinidos. A função do teatro é prioritariamente política, o que não significava desmerecer ou submeter o estético ao assunto. Tratava-se de buscar uma forma em que essa junção fosse possível. Nesse sentido, tanto a encenação como a narrativa (que segundo Brecht, era preciso entender como o resultado da fusão entre o conto com a crônica, da história com a imaginação e do documento com o expediente) precisariam estar a serviço de certo trabalho de inventário do homem na história.







[1]O texto adota, na condição de estrutura, tanto o modo como foi apresentado nos dois dias e certa reelaboração. Por vezes, o tom oral é o que domina. Neste segundo encontro havia 29 presentes e o encontro ocorreu, novamente, no Espaço Eureka. A síntese aqui apresentada corresponde, inicialmente, aos apontamentos de Adailtom Alves, Edson Caeiro e Simone Brites Pavanelli.
[2]Muitos são os textos ligados a esta explícita doutrinação, entretanto, em havendo curiosidade, recomendo a leitura de Luxo e vaidade de Joaquim Manuel de Macedo. Texto encontra-se publicado pela coleção Clássicos do Teatro Brasileiro, da SNT/SEC/Serviço Nacional de Teatro. As obras de José de Alencar para o teatro também inserem-se na tentativa de doutrinação.
[3]Apud João Roberto FARIA. O teatro realista no Brasil: 1855-1865. São Paulo: EDUSP/Perspectiva, 1993, p.15.
[4]  A respeito do crítico, no manifesto de 1881 (que lança as bases do Naturalismo), escreve Zola: "Como é que um homem com a inteligência do senhor Sarcey não tem conta do movimento que transforma continuamente o teatro? Ele é muito letrado, muito erudito; conhece como nenhum outro o nosso repertório antigo e moderno; tem todos os documentos para seguir a evolução que se produziu e que continua. Está aqui um estudo de filosofia literária que o deveria tentar. Em vez de se fechar numa retórica estreita, em vez de não ver no teatro senão um gênero submetido a leis, porque é que ele não escancara a sua janela e considera o teatro como um produto humano, variando com as sociedades, alargando-se com as ciências, indo cada vez mais em direção a essa verdade que é o nosso objetivo e o nosso tormento?"
[5]  Apesar de arquiinimigos dos autores burgueses como Scribe e Sardou, parece que os defensores do Naturalismo aprenderam corretamente alguns dos ensinamentos propugnados pelos mestres do vaudeville e, uma vez mais, é preciso ratificar a velha tese de Lavoisier, segundo a qual "no mundo nada se cria ou se perde, mas se transforma".  O par de autores Scribe-Sardou afirmava algo aproximado à  idéia de que o ato de escrever (peças) corresponderia a um antecipar e a um retroceder constantes, a um contínuo dispor e redispor. Nessa perspectiva, escrever era concebido quase a um teste de resistência físico, mas fundamentado em contraposições de axiomas matemáticos. Isto é, partindo de determinadas leis o escritor deveria – sem surpresas e nenhum casuísmo – chegar a um resultado absolutamente previsível e sem outras alternativas nessa espécie de equação. À guisa de curiosidade, os integrantes do par liam o primeiro ato de uma determinada peça do outro e procuravam, a partir desse fragmento de peça, deduzir as sequências "corretas" das premissas obtidas. O grau de aprimoramento a que chegaram foi tão sofisticado que, se, eventualmente, a dedução de um não previsse o desdobramento da peça do outro, isso caracterizava um indício contundente de que a peça "não era boa e que precisaria ser reescrita!" Segundo Bernard Shaw, estes autores eram os "tiranos da lógica" e vale complementar ainda que os manuais de play writing muito deverá aos esforços desses dois autores-matemáticos. Para concluir, o texto teatral, tendo uma perspectiva teatral, concebido como uma fria e bem articulada teia de articulações - fundamentado no instinto teatral (génie de théâtre) - deveria ter o objetivo de conquistar,  agradar (e no caso do teatro realista e naturalista) emocionar o público, reforçando a idéia do palco como uma tribuna para defesa das idéias preconizadas por seus autores. 
[6]Anatol ROSENFELD. Teatro alemão. São Paulo: Brasiliense, 1968, p. 87, afirma: "Na medida em que procuram apresentar no palco apenas um 'recorte', uma 'fatia' da vida, os autores naturalistas são quase forçados a 'desdramatizar' as suas peças para tornar visível o fluir cinzento da existência cotidiana. Mais que imitar uma ação, segundo a velha doutrina de Aristóteles, importa-lhes analisar situações e a pressão do mundo anônimo sobre caracteres de que fazem parte a autópsia minuciosa".
[7]Dentre os mais importantes autores do teatro naturalista e que de modo bastante contundente investigam a realidade social em que estão inseridos, pesquisando, mesmo, os esquecidos socialmente, apontando para o fato de os heróis naturalistas serem personagens coletivas, podem ser citados:  os famintos tecelões salesianos de Hauptmann; os excluídos (ou a ralé) dos alojamentos de Gorki; os habitantes dos subúrbios de Dublin de Sean O'Casey.
[8] Iná Camargo COSTA. A resistência da crítica ao teatro épico, In: Sinta o drama. Petrópolis: Vozes, 1998, P.75-6.

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