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sábado, 2 de julho de 2011

Análise do Pequeno Organon Para o Teatro de Brecht

PEQUENO ORGANON PARA O TEATRO, de Bertolt Brecht.[1]

TEXTO 1 - Por Alexandre Mate
Curso de extensão: As cenas de rua na rua (Instituto de Artes da UNESP, abril de 2011), coordenado por Alexandre Mate.

- Obra, último texto teórico escrito pelo autor (1948), divide-se em 77 episódios[2], e caracteriza-se, de certo modo, em certa síntese de toda a reflexão desenvolvida ao longo de 30 anos de produção político-teatral.
Na reflexão, o estético e o político estão absolutamente imbricados.
Antes de entrar no texto, propriamente dito, bom não perder de vista que o teatro épico dialético brechtiano, por seu criador, foi também chamado de teatro antiaristotélico, portanto, não conduzido pela emoção.[3]
Prólogo
Autor chama a atenção, para a análise de certa estética[4] que se fundamenta em determinada forma de representar. Ao enfatizar o conceito de representação, fica claro que se trata de uma tendência não centrada no texto (textocentrismo). O teatro que será discutido rejeita o caráter de cópia da realidade e cujo objetivo fosse centrado no comércio burguês de estupefacientes, de uma classe depravada. No lugar deste, vislumbrou-se um teatro da era científica (A vida de Galileu "ilustra" destacadamente tal proposição). O conceito teve de enfrentar tanto as formas comerciais como detratores de tal proposta, sob afirmação de que uma tal proposição acabaria com o aprazível e a diversão.
            Por oposição, às tendências esteticistas de sua época, Brecht propõe - ele criava termos - o conceito de thaëter[5]
            [...] Tratemos o teatro como um recinto de diversão, único tratamento possível desde que o enquadremos numa estética, e analisemos, pois, qual a forma de diversão que mais nos agrade." (p.127, na edição de 2005) = apologia à diversão. Em Galileu o conceito pode ser melhor divisado. "Aferrar o nariz no objeto do conhecimento", "pensar como um dos maiores prazeres da raça humana"...
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            Nos outros capítulos, tomando o de número 1 como uma espécie de párodos (canto de entrada do coro, centrado no objeto fundamental da obra), Brecht apresenta:
O teatro consiste na apresentação de imagens vivas dos acontecimentos passados no mundo dos homens que são reproduzidos ou que foram, simplesmente, imaginados; o objetivo dessa apresentação é divertir. Será sempre com este sentido que empregaremos o termo, tanto ao falarmos do teatro antigo como do moderno. (p.127)
            Impressiona que em apenas 5 linhas (estupendo poder de síntese) o autor consiga, conforme sublinhado, expor de modo explícito e contundente os objetivos de um teatro épico. Senão vejamos:
- teatro (lugar de onde se vê, miradouro) se caracteriza em uma linguagem fundamentada na presença de dois grupos articulados de sujeitos: atores e público. Os primeiros, depois de período de preparo (ensaios - processo de contenda, de conhecimentos), "emprestam-se" à personagem, no presente, para apresentação dos acontecimentos pretéritos. Desse embate, de historicidade interpenetrada, articulam-se contextos distintos e complexos: o do trabalho anterior, o da recepção e o de troca.
            Desde os gregos da Antiguidade grega, sobretudo por intermédio das teses de Aristóteles, o conceito de mimese, no sentido de recriação, pressupõe a articulação entre:
Ÿ  poiêin = que corresponde, também, a técnica, demandando, portanto, trabalho.
Ÿ  gnomén = que corresponde a conhecimento. Nesse caso, pode-se pensar em um conhecimento fundamentado em epistemologia pragmática ou práxica.
Ÿ  phantasia = que corresponde a imaginação, capacidade de imaginar (e recriar o existente).
            Por intermédio da junção dos três elementos, o homem (o poeta ou dramaturgo) faz ficção (do latim fictus, referindo-se a imagem; e transformado em verbo factor, como construção; então, juntando os conceitos, tem-se algo como fazer/ construir imagens). O dramaturgo constrói imagens vivas com muito trabalho, conhecimento e imaginação. Para Brecht é fundamental ter claro a serviço de quem se coloca esse fazer.
Obs. - o teatro pressupõe uma relação entre os homens, então, o sentido irrestrito (por exemplo: relação entre os homens e os deuses), como descrito no capítulo 2, não interessa a Brecht.
            As características apontadas acima caracterizam-se na base para a criação do teatro, mas, de modo diferente àquele vislumbrado pelo Estado grego (ao investir na linguagem teatral), para Brecht o objetivo do trabalho teatral é a diversão e não a estupefaciência. "Traduzindo", de certa forma, o choro é contagiante e centra a apreensão em um objeto; em oposição, o riso ativa as potências críticas e se instaura, na condição de fenômeno, pelo contraste: algo provoca o riso em relação a; o riso provoca e ativa a inteligência e a intervenção no mundo real. Portanto, é a partir desta chave que se deve entender o alvo brechtiano para diversão.
            Por último, e ainda de acordo com o apresentado por Brecht, o teatro não é uma coisa só, ele se apresenta a partir de múltiplos expedientes e objetivos; assim, o teatro antigo - cujos cânones já estão plantados dentro de nós - se refere àquele que se busca e se encerra nele mesmo (em chave fenomenológica), cujo objetivo é a identificação emocional; o teatro novo: da era científica, busca a história e as relações de oposição classistas, cujo objetivo é espantar e incitar a uma tomada de partido, da obra à vida que se vive. De outro modo, o pouso do fazer, da recepção e da troca precisa buscar a história das relações materiais. Ao assim proceder, pelo despertamento das atenções, o teatro, na condição de divertimento, pressupõe um jogo ou experimento de natureza social. Desse modo, de acordo com Brecht:
[...] jogar é transformar em decisão a opinião do que joga, na ausência de informações suficientes sobre o jogo dos adversários, é um desafio à sorte e aos determinismos [...]. Quando não jogamos (isto é, quando vivemos pacatamente e sem riscos) também nos decidimos na ausência de informações suficientes, desafiando o acaso e determinismos; portanto, jogamos no mais profundo sentido da palavra. [6] 
No sentido proposto por Brecht, o jogo e o jogador indispõem-se, em tese, à acomodação; jogar pressupõe diversão e predisposição à luta, intentada pela capacidade de pensar. De outra forma, por meio do jogar, o homem – que é uma coisa desmontável e passível de ser reconstruída – assim como a História, fazem-se um ao outro, transformando-se e produzindo-se mutuamente.[7]
            No capítulo 3 - e em diversos outros -, Brecht explicita que o teatro dito culinário tem a função precípua de alimentar e abastecer, mas sempre escondidamente, a moral da burguesia. Desse modo, com a sutileza de um petardo, Brecht advoga: "O teatro precisa poder continuar a ser algo absolutamente supérfluo, o que significa, evidentemente, que vivemos para o supérfluo. E a causa dos divertimentos é, dentre todas, a que menos necessita de ser advogada." (p.128)
            Outro aspecto importante apresentado por Brecht, e que aparece inicialmente de modo mais explícito refere-se à questão da reprodução. Mikhail Bakhtin, no livro Marxismo e filosofia da linguagem (1992) lembra que os signos refletem e refratam a realidade. Assim, a verossimilhança absoluta em teatro (que chega ao paroxismo no chamado drama puro) tornou-se exigência e condição do realismo, cuja exigência pressupunha a identificação emocional total com as personagens. Ainda decorrente da proposição aqui destacada, Aristóteles, de certa forma, já destacava em sua Poética (433 a.C.) acerca da verossimilhança. O filósofo e esteta grego lembrava e recomendava que em arte a que se preferir a verdade que convença à mentira que não o faça.
            Ao contrário de Aristóteles, convencido da necessidade da catarse emocional, Brecht, na totalidade de seus textos, expõe e organiza o assunto de modo a espantar o espectador. Ao desnaturalizar o acomodado, Brecht propõe-se a instaurar fissuras de incertezas quanto ao consagrado e a propor - sempre de modo dialético - um jogo de parceria por intermédio do qual, ao ter enublinadas as "certezas inabaláveis", o espectador tenha de fazer escolhas, tomar um partido com relação ao assunto e às atitudes das personagens, parcialmente semelhantes a ele mesmo.  Nos itens 9, 10 e 11 o autor passa por tais questões. Ao término do capítulo 11 Brecht indaga acerca da necessidade de buscarmos a diversão própria de nossa época. Para que esse processo ocorra, ainda com Brecht, faz-se necessário distanciar-se (verfremdungseffekt) de tudo que presunçosamente conhecemos para nos aproximarmos de outras épocas e entendermos melhor o que não entendemos, ou julgamos entender de modo absoluto. Jogo dialético e sempre desacomodante, o cientista Galileu funciona como alegoria de uma época que continua até agora. Ao tomar Galileu, distanciado na História, entendo a distância para me aproximar, de modo mais efetivo, do meu tempo. Lições táticas de estratégia e de defesa do mais importante. Intervir no mundo de modo significativo e na condição de sujeito histórico, além de prazer expressa, também, um divertimento social. (diversão assim como o caráter supérfluo do teatro não precisam ser advogados!)
Nota: divertir, do latim, divertere diz respeito a: afastar-se, separar-se de, ir-se embora, divorciar-se, ser diferente... por intermédio de tal etimologia pode-se entender o alvo buscado por Brecht.
          A função "casada" entre educar e divertir explicita-se quase definitivamente agora.
No capítulo 13, aparece:
          É a sensação de desacerto, que nos vem perante as reproduções dos acontecimentos ocorridos no mundo dos homens, que reduz nosso prazer no teatro. A razão desse desacerto é o fato de a nossa posição em relação ao objeto reproduzido ser diversa daquela dos que nos antecederam.
            Depois de algumas considerações, Brecht indaga acerca de que teatro se quer fazer em tempo tão conturbadoramente repleto de conquistas da burguesia e de apartação da totalidade da população das conquistas. A clareza quanto a esse o que fazer, mediado pela sofisticação apartaste, exige do artista uma atitude crítica (do grego criten, correspondendo a crise) cuja tarefa é a revolução. Nessa perspectiva, é preciso afirmar que, no mínimo, é preciso epicizar e engravidar de História as obras artísticas, associando-se "[...] a todos os que estão necessariamente, mais impacientes por fazer grandes modificações nesse domínio." (p.136) É preciso agir desta forma posto que, em toda parte: "[...} vemos o homem a impedir o homem de produzir a si próprio, isto é, de angariar o seu próprio sustento de divertir-se e divertir." (p.136) A tarefa de organização tanto da arte quanto de si (na condição de produtores) caracteriza-se em tese defendida, também, por Walter Benjamin em O autor como produtor.        
            O teatro burguês é reificante e a imagem da espécie de sono coletivo:
"[...] Olhando ao redor, vemos figuras inanimadas, que se encontram num estado singular: dão-nos a ideia de estarem retesando os músculos num esforço, ou então de os terem relaxado por intenso esgotamento. Quase não convivem entre si; como uma reunião em que todos dormissem profundamente e fossem, simultaneamente, vítimas de sonhos agitados, por estarem deitados de costas [...]. Têm os olhos abertos, mas não veem, não fitam e tampouco ouvem, escutam [...]
            Numa tal perspectiva, o público é envolvido por estados de alma (stimmung) por meio do decalques empobrecedores do mundo. No ensaio Efeitos de distanciamento da arte dramática chinesa, ao referir-se aos stimmungs, afirma Brecht que o contágio emocional – não é, decerto, uma transmissão pura e simples:
Nela surge o efeito de distanciamento, que não se apresenta sob uma forma despida de emoções, mas, sim, sob a forma de emoções bem determinadas que não necessitam de encobrir-se com às da personagem representada. [...] o efeito de distanciamento [...] se produz, por exemplo, se o ator, em determinado momento, mostrar, sem transição de espécie alguma, uma palidez intensa no rosto, palidez que provoca mecanicamente ocultando o rosto entre as mãos onde tem qualquer substância branca de maquilagem. [...] Esta maneira de representar é mais sã e, a nosso parecer, mais digna de seres racionais; requer não só muita psicologia e arte de viver, como também aguda compreensão do que é, de fato, importante socialmente. (BRECHT, 1978: 60)

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
BRECHT, Bertolt. Bertolt Brecht – estudos sobre teatro. (org.). Fiama de Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
___________  e outros. Teatro e vanguarda. Lisboa: Presença, 1970, p.60.
DORT, Bernard. Leitura de Brecht. Lisboa: Forja, s/d.


[1]O conceito de organon, fundamentalmente ligado a uma concepção práxica, pode ser apreendido como instrumento, ferramenta. Portanto, a reflexão apresentada no texto, decorre, como se constatará, de mais de trinta anos de prática teatral.
[2]Na tradição clássica da Antiguidade, a estrutura (das tragédias, das comédias e dos dramas satíricos) era dividida em: Prólogo, Párodos, 5 Episódios, 4 Estásimos e Êxodo (ou Epílogo). De modo sucinto, episódio concerne à parte em que se priorizava as falas das personagens por elas mesmas, por meio de diálogo. Dividida em circo partes, os episódios (entremeados pelos estásimos), ainda que o coro pudesse participar, priorizava o discurso direto. Prólogo - exposição pelo coro dos antecedentes contextualizados do assunto principal da obra.
[3]No ensaio A nova técnica da arte de representar, in: Bertolt Brecht – estudos sobre teatro (livro organizado por Fiama de Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978), Brecht afirma que a emoção deve consumir o ator durante o processo de ensaios e não durante o espetáculo. Assim, à p. 83, de modo bastante concorde àquele proposto por Stanislavski, afirma: "[...] todos os elementos de natureza emocional têm de ser exteriorizados."Ainda a esse respeito - e múltiplas são as observações acerca do conceito -, segundo Brecht, em Breve enumeração dos equívocos mais frequentes, surrados e aborrecidos a respeito do teatro épico: "[...] o teatro épico não é contra as emoções; ele procura examiná-las, não se limitando a estimulá-las. É o teatro ortodoxo que peca por dividir razão e emoção de modo que esta última comande a primeira. Quando alguém faz o mais leve movimento para introduzir um mínimo de razão na prática teatral, seus protagonistas gritam que estão querendo abolir as emoções."
[4]Conceito, inicialmente denominado poética, tem como raiz o verbo grego poiêin, com vários sentidos, de criar a trabalhar (como técnica, engenhosidade). O conceito de estética surge apenas no século XVIII, como "ciência do belo", substituindo o vocábulo poética.
[5]Em tese, termo criado por Brecht referindo-se a forma teatral que rompe com a estética e os cânones do teatro ocidental.
[6]Apud Henri Lefebvre. O teatro épico de Brecht como crítica da vida cotidiana. In: Bertolt Brecht e outros. Teatro e vanguarda. Lisboa: Presença, 1970, p.60.
[7]Bernard DORT. Leitura de Brecht. Lisboa: Forja, s/d.

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