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quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Midas e a política cultural

Midas e a política cultural

Desde que a arte e a cultura assumiram plenamente a forma mercadoria, estreitando ainda mais as relações entre produção, circulação e fruição de bens simbólicos e o modelo do capital, inaugura-se (ou toma forma) um debate que se ramifica em dois grandes campos. De um lado discute-se a especificidade da arte e da cultura, sua caracterização e sua autonomia frente aos poderes econômico e político, e também  sua eventual capacidade subversiva, ou, ao contrário, seu papel de amortecedor das insatisfações sociais. De outro lado, discute-se os sistemas de subvenção, apoio e financiamento da arte e da cultura, analisando a parte que caberia à iniciativa privada e ao Estado, avaliando os riscos da cooptação, do dirigismo e também da omissão.
Toda reflexão séria não deveria dissociar estes dois grandes conjuntos de questões. A perspectiva de onde falamos recusa a integração da arte e da cultura no modelo mercantil, reservando a elas, portanto, uma dimensão significativa no processo civilizatório e de emancipação humana. Sempre reconhecendo, o que evita a simplificação ideológica e um certo neoplatonismo, a existência de um movimento dialético entre produção material da vida e as chamadas obras do espírito. Neste contexto muito concreto é que o debate sobre as formas da viabilização material da cultura se dá. Ele é simultaneamente não idealista (onde não cabe a arte pela arte, a finalidade sem fim etc.) e não fatalista (recusando a integração resignada ao mercado). A produção cultural, assim, age e reage de acordo com o momento atual das sociedades e das forças produtivas em jogo.
No Brasil, sempre em sintonia com movimentações internacionais, a onda neoliberal dos anos 1980 e 90 produziu um modelo de apoio à criação artística e cultural que em linhas gerais continua em vigor. Ajudado pela ressaca do arbítrio civil-militar dos anos da ditadura, o modelo neoliberal brasileiro consagrou a retirada do Estado da formulação e implementação de políticas culturais. Há quem diga que o governo "passou a bola" para a sociedade, numa tentativa de evitar o dirigismo autoritário dos anos de chumbo. O argumento é duplamente falacioso. Primeiro, porque o poder decisório não se deslocou para a sociedade, mas para uma parte dela, isto é, para as grandes empresas e seus departamentos de marketing, que passaram a definir muito do que é produzido culturalmente no país. Em segundo lugar, é preciso lembrar que a primeira lei importante baseada em renúncia fiscal do período de redemocratização é obra do governo Sarney, personagem nada hostil ao regime militar. Em outras palavras, as leis de renúncia fiscal representam a continuidade da política cultural do regime militar e das opções políticas, de classe, tomadas pelas elites de ontem e de hoje.
A chamada Lei Rouanet, aprovada em 1991, é a jóia desta coroa. Batizada com o nome do Secretário de Cultura do governo Collor, ela expressa não apenas o sucateamento da estrutura administrativa, mas a própria extinção do Ministério da Cultura, transformado então em Secretaria. O mecanismo da Lei, eficiente em transferir competências e recursos do Estado para a iniciativa privada, aprimora a política autoritária anterior, adaptando-a ao novo momento da exploração capitalista e à readequação do consenso em curso, necessária à manutenção da hegemonia. 1964, diz o filósofo Paulo Arantes, é o ano que não terminou. Em relação à censura, algo parecido acontece, deslocando-se da proibição política visível, ela se instala preferencialmente na esfera econômica. Não se trata mais de mutilar ou interditar de veiculação tal peça de teatro, filme ou música, mas de, simplesmente, impedir que eles sejam criados pela mais elementar falta de recursos.
Não se pode afirmar, no entanto, que o Estado tenha se omitido completamente da formulação de políticas culturais. Este é um ponto que tem se prestado a confusões. Coerente com o que aprendemos no bêabá do melhor marxismo, o Estado não faz a intermediação dos conflitos (seja entre capital e trabalho, interesses particulares e sociais, burguesia industrial e agrária etc.), antes, garante a permanência e a reprodução do sistema vigente. Por isso, enquanto «capitalista coletivo ideal» (cf. Engels), o horizonte deve ser a supressão do Estado. Isto significa dizer que as leis de fomento e todos os mecanismos de apoio às artes e à cultura devem ser entendidos como meios e não fins. A transformação das lutas por políticas públicas de cultura em causa última, ou única, equivale a se limitar a reivindicações meramente social-democratas.
Desta análise sumária do papel do Estado, deduz-se que ele tem um papel crucial na política cultural, isto é, o de permitir e legitimar socialmente a transferência de competências e recursos da sua esfera para a esfera privada, preferencialmente para aquela do grande capital. Exigir uma política de Estado para a cultura, argumentando que tal política não existe, é, então, rigorosamente falando, inexato. Tanto a Lei Rouanet, como outras saídas de molde semelhante, todas fazendo parte do modelo de gestão cultural brasileiro, constituem uma autêntica política de Estado, e não apenas de governo. É por isso, aliás, que a passagem de bastão entre tucanos e petistas não provocou qualquer mudança estrutural na área. Mudam os governos, mas a orientação geral continua a mesma. Os últimos nove anos do governo federal não foram capazes de alterar as regras básicas de funcionamento da política cultural. Uma das razões para este fato talvez seja a progressiva aproximação das concepções de arte e cultura assumidas pelos principais atores políticos, representados pelo bloco PSDB/DEM, de um lado, e pelos petistas e sua base aliada, por outro. Se os argumentos do bloco governista atual fazem algum sentido (considerando a criação dos pontos de cultura, as tentativas de desconcentração regional, o reconhecimento de setores marginalizados, como quilombolas, indígenas e periféricos, uma certa democratização da gestão e o relativo aumento da verba do MinC), a orientação da macropolítica cultural não deixa dúvida: assim como a política geral, a política cultural está pautada pelo pragmatismo e  pela lógica implacável da realpolitik. Privilegiam-se os acordos por cima, tão caros à tradição brasileira (da independência de Portugal à Nova República, ou se quisermos, das capitanias hereditárias à Comissão da Verdade) e mantém-se o padrão médio de exploração, que fez do Brasil a sétima economia do mundo e uma das mais desiguais do planeta.
Reconhecer este papel desempenhado historicamente pelos Estados nacionais modernos não deve impedir a disputa dos seus rumos. Impede, entretanto, alimentar ilusões sobre a capacidade de transformação e gerenciamento democrático do Estado. Stalinismo e reformismo social-democrata servindo como referências. O tema tem atraído a atenção de alguns dos nossos melhores analistas políticos, especialmente após a chegada do lulismo ao governo federal. A "grande política", aquela que se ocupa das questões de fundo, que pensa e age com a máxima amplitude possível, também produz um efeito pernicioso: ela induz aqueles que fazem a "política pequena" a acreditarem que estão fazendo a "grande política". Se  entre os que fazem a "política pequena", muitos não se dão conta disso, outros percebem o engodo, vislumbrando nas suas próprias práticas um oportunismo indesejável, e, nos melhores casos, constrangem-se com a defesa hoje daquilo que negavam ontem. Mas em nome da política do possível, da governabilidade, do senso de responsabilidade, da "correlação de forças" (já nos anos 1970, Augusto Boal ironizava em Murro em ponta de faca esta desculpa para a moderação, a inação ou o revisionismo), enfim, em nome do que consideram ser razoável, setores antes críticos abdicam da urgência da transformação, depois questionam a viabilidade da transformação, até finalmente se convencerem de que não há transformação alguma a ser feita. A política do consenso, da conciliação de classes, do arranjo, da administração, toma o lugar da crítica sistêmica e radical. O conflito e a contradição, motores da história, passam a ser evitados a qualquer preço.
É possível que certas referências históricas iluminem algum aspecto da situação atual. A traição de Friedrich Ebert (chanceler social-democrata alemão em 1918-19) não deve deixar indiferentes os militantes e ativistas atuais diante de reviravoltas recentes das (antigas) esquerdas. Os exemplos são muitos: aliança com o agronegócio, inclusive no caso do código florestal; abandono da reforma agrária; manutenção da política econômica liberal; descaso com a educação e a saúde; cooptação de movimentos sociais; não enfrentamento do oligopólio das comunicações; recuo na política de direitos autorais; persistência do fisiologismo; política de grandes eventos etc.). Mas não é preciso nos colocarmos na pele de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht para reconhecer, sem meias palavras, a degeneração programática e a falência do projeto de transformação social do bloco governista atual.
A política conservadora clássica, e também aquela do travestimento (que tem precedentes desde o "esqueçam o que eu escrevi"), também tem seu lugar, como se pode imaginar, no âmbito da cultura. Por esta ótica, que mistura gestão tecnocrática, submissão ao capital e discurso falsamente crítico, é muito melhor agir no varejo, propondo a aprovação de um edital aqui e um programa lá, do que no modelo global de fomento à arte e à cultura. Mesmo o Plano Nacional de Cultura, teoricamente ambicioso, corre o sério risco da insignificância, dada a ausência de recursos, as metas irreais e a timidez em mudar o rumo da política cultural. Estamos neste pé. Quem faz a "grande política" sabe muito bem disso, mas convence os incautos. Quem não percebe o que se passa, entra na dança e engrossa as críticas com os dormidos argumentos de sempre, despejando sobre setores não submissos a acusações de "fazer o jogo da direita", vanguardismo, irresponsabilidade, entre outros menos dignos.
Na hora em que "governos técnicos" tomam posse no velho mundo – atestando a falência da política clássica em tocar a barbárie adiante (ela agora será tocada diretamente pelos economistas) –, por aqui se passa algo similar, em escala um pouco mais modesta. Quem decide o orçamento da cultura são os Ministérios da Fazenda e do Planejamento, com a colaboração do Banco Central. As flagrantes fraqueza e incompetência do MinC (sem mencionar querelas paroquiais) só não são mais dramáticas quando comparadas com a subserviência deste ministério exangue – 0,06% do orçamento da União, segundo dados da Auditoria Cidadã da Dívida – diante dos ditames da política econômica de superávits, inventada para pagar o serviço da dívida.
Há falta de recursos para a cultura, certamente (embora o MinC, ironicamente, tenha dificuldade em executar seu magro orçamento), mas também, e sobretudo, de um verdadeiro novo projeto. Na ausência deste surgem os paliativos. O projeto de reforma da Lei Rouanet, conhecido como Procultura, é um destes remendos. Apesar de discursos mencionando um "novo paradigma", o que se constata é a manutenção do mecanismo de renúncia fiscal (inclusive com o percentual de 100%, no caso de doação), convivendo com um fundo de capitalização cuja finalidade é o lucro (Ficart), um incentivo duvidoso ao consumo de produtos majoritariamente oriundos da indústria cultural (Vale cultura) e diversos dispositivos que não garantem a transparência e a democratização na utilização dos recursos, como aqueles destinados ao Fundo Nacional de Cultura e aos Fundos Setoriais. Em relação às verbas, para fugir de suas responsabilidades com o fomento direto à cultura, através da utilização de recursos do tesouro da União, governo e parlamentares propõem a criação de uma Loteria Cultural e a destinação de 20% dos recursos destinados à renúncia fiscal para o FNC. Quando se pensa que o fundo do poço chegou, novos coelhos, marotos, surgem das cartolas.
Sobre a renúncia fiscal, não se trata de cair no jogo diversionista proposto por produtores comerciais, que comparam os valores das renúncias na indústria e no comércio com aqueles da cultura. Não apenas os setores são diferentes (igualar a fabricação de veículos com a programação de um Centro Cultural, por exemplo, merece reservas), como a tarefa que se impõe é fazer a crítica do mecanismo da renúncia (que transfere a riqueza criada socialmente para setores privados), e não dos valores envolvidos. Não fica longe da mentira pura e simples o argumento de que os recursos envolvidos são privados, quando se sabe que são públicos, dinheiro de imposto de renda renunciado pelo governo. Assim como não se pode dar crédito ao argumento de que determinado artista "não está tirando o dinheiro de ninguém" ao receber recursos através da renúncia fiscal. O dinheiro é do conjunto daqueles que têm direito de se beneficiar dos impostos. E, fato grave, a definição desta utilização – quem recebe, como e quanto –, obedece atualmente a critérios exclusivamente privados e comerciais, depois de uma aprovação essencialmente técnica do Ministério da Cultura.
Teme-se (há um sujeito oculto na frase) que através da implementação de outro modelo de gestão da cultura, o Estado passe a controlar a produção cultural e artística. Mas este mesmo sujeito oculto esquece de dizer que a iniciativa privada, desde que utilize dinheiro próprio, não será impedida de investir ou doar recursos para as produções culturais. A ausência da renúncia, ou sua regulamentação em bases aceitáveis (com percentuais de 20% de desconto do imposto devido, por exemplo), não cerceariam, em hipótese alguma, o direito do investimento privado direto. Hoje, um banco e suas empresas associadas investem, através da Lei Rouanet, em um centro cultural criado por este mesmo banco. O dinheiro "investido" neste projeto seria integralmente pago na forma de imposto, mas graças à renúncia fiscal vai alimentar o empreendimento cultural do banco, que lucra em imagem, comunicação e marketing sem gastar um tostão. A este absurdo, juntam-se outros efeitos perversos, do proselitismo à corrupção, passando pelos ingressos proibitivos, concentração regional, participação de empresas estatais, invenção do "captador de recursos" etc. Não é estranho, portanto, que o diretor de marketing de um destes bancos destaque três aspectos para uma boa política cultural no país: mais verbas para o MinC; mais recursos para o Fundo Nacional de Cultura e não diminuição dos valores do mecenato. Mantido o mecanismo do mecenato (sic), estes profissionais das finanças e da especulação não se furtam em posar como defensores da função social da cultura, da arte pública e da democratização do acesso. O cinismo, uma das componentes desta "hegemonia às avessas" discutida por Chico de Oliveira, nunca foi tão escancarado.
O rei Midas, como se sabe, transformava em ouro tudo o que tocava. Inclusive os  alimentos, o que o impedia de se alimentar. A generalização da mercantilização está atualizando este antigo mito. Mesmo projetos aparentemente afastados da mão pesada do capital, como o das Usinas Culturais, submetem-se às regras da "economia criativa" e da geração de renda, transformando-se em subproduto dos "novos modelos de negócios", tão caros ao business cultural em tempos de entretenimento globalizado. As iniciativas do Ministério da Cultura não conseguem escapar a este Consenso de Washington em versão cultural. O imperativo da viabilidade comercial e da sustentabilidade no mercado, dentro ou fora do eixo, são a regra de ouro. Empacota-se tudo em boas intenções (que lotam o inferno), alguma maquiagem, migalhas do banquete e uma boa dose de realismo, sempre garantindo a rentabilidade do capital, como se vê nas parcerias público-privadas e nas privatizações diretas, indiretas ou disfarçadas (organizações sociais, oscip's, fundações, terceirizações).
O capitalismo cultural que aparentemente se queria criar com a Lei Rouanet é um duplo engano. À imensa maioria das empresas só interessa um capitalismo sem risco. Na verdade, a elas interessa um capitalismo garantido pelo Estado e com dinheiro estatal. E se eventualmente o modelo funcionasse para estimular este capitalismo cultural embrionário, ele seria funcional à expropriação da produção cultural pelos donos habituais do poder, reforçando a cultura de mão única, orientada pelas necessidades e pela lógica da indústria cultural e da organização corporativa da cultura. A Lei Rouanet não pretendeu, seriamente, criar um mercado de arte e cultura no país, nosso atávico patrimonialismo falou mais alto. O que ela fez, foi transferir riqueza e poder decisório sobre os rumos de parte significativa da produção simbólica para o setor privado, além de precarizar até o insuportável o exercício das práticas artísticas e culturais no país, submetidas sem apelo às inconstâncias típicas deste modelo de fomento e gestão.
Talvez o mais urgente seja concluir que uma nova, e conseqüente, política cultural não pode se apoiar em uma ou outra formulação legal. Ela não pode se resumir ao debate sobre leis, embora não se possa negligenciá-las. É preciso um conjunto amplo de iniciativas, amparado por definições políticas claras (dinheiro público gerido de forma pública, seria uma delas) e recursos à altura dos problemas (a Proposta de Emenda Constitucional 150 é uma medida neste sentido). O Procultura não apenas é incapaz de fornecer as bases desta política, como pode comprometer a sua construção durante os próximos anos.


Fernando Kinas – Kiwi Cia. de Teatro
[novembro 2011]

Publicado originalmente em A Gargalhada, n24, disponível em: http://www.buracodoraculo.com.br/pesq.html

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