Pablo Dantas [1]
Eu descobri o teatro na rua mesmo antes de saber que o teatro que eu via era de rua. Que as pessoas e os grupos que ali estavam, fazendo e promovendo o teatro, eram mais de suas ruas do que qualquer outro lugar. Eu descobri que o teatro ocupava espaços onde jamais observei espetáculos. Eu descobri o teatro infiltrado no seio da comunidade, construindo e sendo construído por ela. Eu descobri o teatro nas ilhas e esquinas, no sol e na lua. E nessa troca, por vezes perturbadora, o teatro descobriu a mim mesmo e me revirou pelo avesso.
Passei a Boa Vista na Ilha de Deus e fui parar na Vila dos Macacos. Subi o Morro para ver José do Pinho, o Alto. Conversamos e Beberibe tranquilamente em Caetés. Fotografei as escuras e dias imensamente tórridos, onde a extravagância da luminosidade unidade a loucura do teatro produzia cegueira. O que era aquilo tudo? O que era atravessar a cidade bombardeada por Guerrilhas Teatrais? O que era descer e subir os morros, trafegar os córregos, percorrer os pátios, e ver, em tudo, o teatro? O que era, enfim, o Movimento de Teatro Popular de Pernambuco e o seu Festival de Teatro de Rua do Recife?
Conheci o MTP/PE[2] em dezembro de 2008 no 6º Festival de Teatro de Rua do Recife. Fui convidado por Alexandre Menezes (coordenador do Festival) para fotografar os espetáculos e as demais ações daquela edição. A partir daí comecei a enxergar o teatro de muito perto, de tão perto que pudesse observar no negativo a revelação vivida daquele momento.
Apaixonado pela Fotografia, encarei o convite como um possível primeiro trabalho profissional, mas o meu amadorismo foi muito mais importante: usei a fotografia para encontrar o teatro e, assim, o meu ritual de passagem foi por 70mm de uma CANON EOS 3000.
A luz, portanto, foi o meu primeiro espanto. Eram cores fortes quando havia sol e muitas sombras quando havia lua. Porque aqueles artistas não se preocupavam tanto com a iluminação? A maioria dos espetáculos eram iluminados por gambiarras e, no entanto, estas pareciam suficientes para que tudo pudesse acontecer. Lembrava aquelas pequenas festas do interior onde um fio branco segurava várias lâmpadas amarelas. Ora, se a fotografia surge na luz, como que eu iria registrar adequadamente os espetáculos?
Depois comecei a pensar imageticamente nesse teatro e percebi o momento onde a arte coloria a escuridão. A escuridão da fome, da violência, da corrupção, do descaso, da incompetência, da desordem, do caos. Um teatro sem e, ao mesmo tempo, com diversos espaços cênicos. Um teatro em processo de mutação. Um teatro camaleão!
Era o Teatro de Rua do Brasil, sendo antes, do Nordeste, de Pernambuco, do Recife, de Olinda, do Sertão e tantos outros rincões da sangrenta América Latina. O Teatro de Rua fervia (e ferve!). O MTP através do Festival de Teatro de Rua do Recife reunia inúmeros artistas e grupos que traziam, além das inúmeras formas, as deformas daquilo que se chama convencional, pois, para mim, até então, o teatro tinha caixa, cortina, coxia, silêncio, cadeira, ingresso, carimbo e permissão.
Ali, não! O Teatro de Rua revirava tudo pelo avesso. Não só pela disposição do espaço cênico (a rua: livre, solta, escancarada), mas por permitir e fazer do improviso o próprio espetáculo. Por transgredir o círculo e tantas outras geometrias. Por fazer do espectador o espec-ATOR e, por conseguinte, fazer do público um espetáculo mais bonito do que aquele que se pretendia apresentar.
Digo isso porque o teatro pode ir à rua e não promovê-la, pode ir à rua e construir edifícios monumentais com paredes de aço e armaduras de fogo. Mas aquele teatro era permissivo: era do bêbado, da puta, do cachorro, do avião, do vento, da chuva, do escuro... era o teatro que carregava as intempéries do mundo.
Enfim, em meio a tantos outros detalhes, descobri que aquele teatro era a própria Musa Urbana[3], a Musa das Ruas que, segundo João do Rio, viceja nos becos e rebenta nas praças, entre o barulho da populaça e a ânsia de todas as nevroses, é a Musa igualitária, a Musa-povo, que desfaz os fatos mais graves em lundus e cançonetas, é a única sem pretensões porque se renova como a própria vida.
[1] Integrante do Grupo Cafuringa. Licenciado em História pela Universidade Católica de Pernambuco e pós-graduado em Cultura Pernambucana pela Faculdade Frassinetti do Recife; e-mail: pablodantas03@hotmail.com
[2] "No início dos anos 80, surgem nos bairros periféricos do grande Recife, um grande número de grupos de Teatro Popular, motivados pela necessidade de levar uma mensagem conscientizadora, questionadora e libertadora ao povo (...) Alguns desses grupos surgiram da necessidade dos jovens criarem um movimento cultural em bairros onde não havia organização popular, como é o caso Despertar em Beberibe e do Colibri em Fosforita; outros surgiram a partir de grupos de jovens nas igrejas como o Teamu na Mustardinha e o Família (atual Arruaça) em Campo Grande; outros ainda, para reforçar e facilitar a mobilização em bairros que já tinham um bom nível de organização, como o Teimosinho e o Mais Um em Brasília Teimosa, o Vem Cá Vem Vê em Casa Amarela e o Babel no Coque. Em 1984, na Casa da Criança, Olinda, aconteceu o I Encontro Estadual de Teatro Popular, com a participação de onze grupos (...) o II Encontro (...) foi realizado em 1986, no Recife. Nesse momento já se delineava claramente a organização enquanto Movimento de Teatro Popular de Pernambuco, contabilizando dois anos de existência, (...) de base político cultural (...), contra o preconceito, as injustiças sociais e a opressão à classe trabalhadora (...) sem vínculos com órgãos públicos e privados". (Cf. Chegou, Chegou! O Teatro Popular. Informativo do Movimento de Teatro Popular de Pernambuco – MTP. Acervo da Feteape).
[3] Expressão extraída da crônica A MUSA DAS RUAS de João do Rio. Originalmente publicado como artigo na revista Kosmos do Rio de Janeiro, a.2, nº 8, ago. 1905, com o título "A Musa urbana".
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