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quinta-feira, 11 de junho de 2009

Angra dos Reis celebra o teatro de rua

Por Adailtom Alves – Ator e historiador, convidado do Encontro.


O XIV Encontro Nacional de Teatro de Rua de Angra dos Reis, que ocorreu de 07 a 10 de maio de 2009, recebeu grupos de teatro de rua de várias partes do país, montando um painel do que vem ocorrendo nesse seguimento pelo Brasil. Além de mais de duas dezenas de performances, a programação contou com quinze espetáculos de nove estados, seminários e oficinas. O Encontro teve a curadoria de Licko Turle e Jussara Trindade, pesquisadores e doutorandos da UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), organizadores do livro sobre o Tá Na Rua. A realização é da Cultuar (Fundação de Cultura do Município de Angra dos Reis), que tem na presidência Mário dos Anjos, que não é apenas um homem público, mas um fazedor de teatro, o que fez a diferença, pois mesmo com poucos recursos tornou o evento muito digno para os teatristas de rua.


A tônica maior foi a diversidade, que contou com espetáculos que englobavam do mamulengo ao teatro grego, passando pelo teatro imagético e pelo teatro experimental; grupos muitos experientes com décadas de existência (e resistência), como o Carroça de Mamulengo, do Ceará com mais de três décadas, o Pombas Urbanas, de São Paulo com duas décadas de vida, o Teatro Andante de Minas Gerais, com dezenove anos, bem como grupos jovens, como a Cia Gente de Teatro, da Bahia, com três anos de existência.

Não faltou público para as produções que se apresentaram na programação, tanto os espetáculos como as performances, bem como as rodas improvisadas por alguns artistas, que na ânsia por trocar com os colegas presentes abriram outras rodas fora da programação oficial.

Pela diversidade dos espetáculos, de linguagem e das formas de uso do espaço aberto, é difícil dar conta desse Encontro. O texto, portanto, não tem por objetivo cobrir essa diversidade. Cabe alertar ainda que, os espetáculos e os grupos citados aqui têm como referência as apresentações vistas no Encontro, qualquer crítica não desmerece sua história anterior ou posterior. Cabe dizer ainda, que nem todos serão citados, foi necessário um recorte para não tornar o texto longo demais.

Os espetáculos
O Encontro foi aberto pela Carroça de Mamulengo, um grupo familiar, que fica muito a vontade na rua com seu público. A programação atrasou por causa da mudança de local do espetáculo Histórias de Teatro e Circo, transferida para uma lona, pois havia a possibilidade de chuvas, o que não ocorreu. Maria Gomide, que conduz o espetáculo com sua voz magistral, cantando lindas canções, explicou a todos os presentes o motivo do atraso e a necessidade de afinar-se com a técnica, para poderem realizar um bom espetáculo. Nesse diálogo franco a atriz/cantora, demonstrou um duplo respeito, tanto ao seu trabalho como ao público, provando que a arte popular tem muito refinamento. Ali não havia espontaneísmo, mas sim o apuro de muito trabalho, um refinamento em lidar com o singelo. Todo o rigor e a beleza do popular estavam presentes no repertório musical, na técnica de manipulação dos bonecos, no figurino, na apresentação das personagens (montadas na frente do público) e nos efeitos pirotécnicos (um lagarto que cuspia fogo, arrancando calorosos aplausos da platéia. O jogo com a platéia era vivo e atingia a todos, a prova é que uma criança bem pequena (uns dois anos de idade, se tanto) entrou em cena para tocar seu personagem favorito, um carneiro. A música é fundamental no espetáculo, tem função dramatúrgica, sendo executadas ao vivo. Os atores/manipuladores/palhaços cantam e tocam diversos instrumentos, mostrando a importância dos atores completos na rua. Todos os artistas têm excelente domínio da rua, sabem o que fazem, inclusive os mais jovens, como as gêmeas Isabel e Luzia Gomide, ambas com oito anos de idade.

A Cia Chegança, de São Luis do Maranhão, apresentou A mulher que vendeu o marido por R$ 1,99. O grupo demonstrou certo nervosismo, faltando escuta no jogo com a platéia. O espetáculo teria um maior ganho se os atores fechassem uma roda menor, isso porque o local era barulhento e o público ficou disperso. A voz dos atores, pelo tamanho do espaço escolhido, perdeu-se um pouco, nos alertando para a importância de um trabalho vocal profundo para o ator de rua, posto que as cidades, grandes e médias têm ficado cada vez mais ruidosas. Caberia outra discussão sobre o uso ou não de microfones, já que, no geral, esses equipamentos deixam os atores limitados, muito mais preocupados com os aparelhos do que com o seu gestual. Não foi o caso dos maranhenses, que optaram por não usarem este tipo de equipamento, mas perdemos muito do que diziam. O espetáculo da Cia Chegança trouxe para a cena a discussão de gênero, no entanto, o problema social no qual estão inseridos as personagens é muito mais profundo e talvez devesse ser melhor trabalhado. No entanto, foi uma boa oportunidade de ver as produções nordestinas que quase não vem ao sudeste, embora muitas das produções façam o caminho inverso.

A noite os Irmãos Brothers debutaram apresentando 15 anos Irmãos Brothers, nos deliciando com o universo do circo, apresentando ao público seu repertório de números circenses, desde os mais antigos, do começo de sua história aos mais recentes. Os palhaços jogam bem com a platéia e a maneira como foi estruturado o espetáculo é para grandes platéias, com cara de mega produção. As pequenas perdas deram-se por conta da música gravada, nem sempre precisas com o humano, o vivo. Mesmo assim, o que seria “erro”, foram aproveitados pelos palhaços para fazerem mais graça. O repertório apresentado passou pela contorção, números de efeitos, mágicas e acrobacias.

No dia 08, pela manhã, a programação iniciou-se com a Cia Mumulendo da Folia e o espetáculo A folia no terreiro de seu Mané Pacaru. O espetáculo foi realizado em conjunto com o público, que alegremente topou cada participação. O brincante Danilo Cavalcanti, apoiado pelo Trio Agrestino, utilizou muito bem esse jogo com a platéia, assim como outros recursos populares, como, por exemplo, a apresentação de cada personagem. Ficou claro que havia um roteiro (canovaccio), conhecido apenas pelo manipulador, mas através do jogo com a platéia foram juntos construindo o espetáculo. A história tem um mote simples: Benedito vai casar com a filha de seu Mané Pacaru e o diabo quer acabar com a festa, levando todos para o inferno. Aqui vemos a beleza da cultura popular, que mistura o mágico com o mundo real sem preconceitos. No desenvolver da brincadeira, o bricante aproveitou para rebaixar as ditas autoridades militares, religiosas e o patrão de Benedito. O “herói” Benedito, com suas pauladas, resolve os problemas, extravasa juntamente com o público seus medos, que são impostos desde cedo pelo credo ou outras vias da estrutura ideológicas. Assim, Benedito vence a morte, o capeta, a miséria e as autoridades. Os aplausos da platéia, quando o policial leva cacetadas de Benedito, é uma demonstração que este aparelho repressor não está a serviço dos populares. Aliás, as pauladas ou a intenção de ministrá-las tornou-se um bordão no restante do Encontro, pois sempre que um boneco iria apanhar, o manipulador anunciava que iria “dá o remédio”, dessa forma a cada suposto problema que surgia entre os participantes do Encontro falava-se: “dá o remédio para ele!”

A Grande Cia. Brasileira de Mistérios e Novidades, sediada entre Rio e São Paulo, levou ao Encontro o ousado Cíclopes. O espetáculo, um dos poucos dramas satíricos da Antiguidade que sobreviveram, conta a passagem da Odisséia em que Ulisses encontra o gigante de um olho só, o Cíclope. Os artistas nos conduziram para as origens do teatro de rua, ou o que imaginamos que tenha sido, uma ‘procissão’ ditirâmbica em que os atores, com sua carroça e seus instrumentos musicais nos narram a história. A companhia mostrou que boas histórias, independente de qual época elas sejam, são sempre bem-vindas. Cabe destacar o excelente trabalho realizado nas pernas de pau, pois ao mesmo tempo em que agigantavam os atores impunha um risco o tempo todo aos mesmos, envolvendo a platéia em um misto de encanto e medo, com seus movimentos cheios de estripulias.

A Cia. Gente de Teatro, de Salvador, Bahia – creio que era o grupo mais jovem na programação, apenas três anos –, apresentaram o espetáculo Cordel do pega pra capá, em que as questões sociais estavam presentes na feira onde tudo era vendido, mas os feirantes tinham que fugir do rapa, uma briga constante pela sobrevivência. O grupo domina muito bem a linguagem popular e utilizou muito bem as falas em coro, usou o hiperbólico e abusou de duplos sentidos em uma voz antinatural. Cabe destacar ainda o trabalho corporal do elenco. O espetáculo tem um ritmo musical, é dinâmico e envolvente. Por fim, é importante dizer que o grupo foi o único que se preocupou em buscar as referências do lugar para inserir no espetáculo, tornando as piadas conhecidas, o que fez com que ganhassem mais facilmente a platéia.

O único representante da cidade a apresentar um espetáculo – os demais apresentaram performances –, a Cia da Lua, apresentou uma história do lugar: A lenda da Bica da Carioca. O cenário foi a própria bica. Mas há equívocos na apresentação. O grupo levou para a rua um espetáculo com quarta parede, criando inclusive coxias. Os atores passavam no meio do público sem vê-los e sem dialogar com os mesmos. Além disso, o espetáculo contava a história do ponto de vista da classe dominante, mas a platéia, em sua quase totalidade, era composta por trabalhadores. Aqui merece uma reflexão a cerca da responsabilidade de se levar um espetáculo para a rua, posto ser este um espaço de todos, mas é ocupada principalmente pelos populares, já que os ricos evitam a rua. Não se trata de levar espetáculos ‘para os pobres’, mas justamente de espetáculos que rompam com as classes sociais ou discuta problemas da classe que os assiste, pois podemos acabar reforçando idéias que não nos pertence.

A Cia de Teatro Nu Escuro, de Goiânia, Goiás, levou uma adaptação da farsa medieval do Advogado Pathelin, misturando com o cordel e nominando-o de O cabra que matou as cabras. O grupo bebeu na teoria do realismo grotesco do russo Mikhail Baktin, criando personagens com corpos deformados, em que prevalece o baixo corporal e o duplo sentido. Logo no começo do espetáculo o ator/narrador pede para que acreditem no que irão narrar, senão uma caganeira os acometerá; este recurso de praguejar o público é utilizado por Rabelais em Gargântua e Pantagruel, obra estudada pelo teórico russo, é também uma forma de demonstrar para o público que atores e platéia são iguais, são do mesmo estrato social, são cúmplices, assim a confiança fica estabelecida. Este é ainda um recurso carnavalizante, que põe por terra as boas maneiras, as normas tão presentes na arte burguesa. Ainda dentro do universo carnavalizante, um outro recurso usado pelo grupo ao longo do espetáculo foi a paródia, que apareceram em orações e nas músicas conhecidas que foram reelaboradas. Todos são recursos cômicos largamente usados no seio popular. Aliás, este foi o grupo com as piadas mais picantes, demonstrando que estudaram muito bem o universo em que se embrenharam.

O grupo formado em São Paulo pelo peruano Lino Rojas em 1989, Pombas Urbanas, apresentou Histórias para serem contadas, um texto do argentino Oswaldo Dragún, escrito em 1957, mas extremamente atual. Mostra como o trabalhador comum é explorado. Destaque para o homem que virou cachorro, uma crítica ao subemprego que estão submetidos boa parte dos brasileiros. O grupo utiliza bem a narrativa falada e musicada; poderiam se valer desse recurso para deixar a primeira história um pouco mais direta, resolvendo repetições na dramaturgia. Poderiam ainda, utilizar mais a música ao vivo, fortaleceria o trabalho, afinal no grupo há músicos e todos os atores são experientes no espaço aberto, sabem, portanto, que este é um recurso muito forte para quem se dispõe a dialogar com o público da rua. Faltou ritmo ao espetáculo e as situações abordadas, por serem cotidianas, deveriam ser repensadas cenicamente, tornando-as mais imaginativas.

O Grupo Arte da Comédia do Paraná, levou ao Encontro Aconteceu no Brasil enquanto o ônibus não vem, um excelente pretexto para passear pela história do nosso país. Trata-se de um trabalho de máscaras, aliás, é importante dizer que são muito bem trabalhadas, tanto sua confecção bem como sua técnica, com triangulação impecável e gestos precisos. As máscaras da Commedia Dell`Arte foram adaptadas para a realidade brasileira, alguns tipos representam no espetáculo, estados brasileiros. Muitos dos problemas de nossa história vêm a baila nesse trabalho. Faltou um pouco mais de espaço para os atores se locomoverem e um pouco mais de volume de voz, mas a platéia permaneceu com eles até o fim, sinal de que foram conquistados pelo apuro técnico dos atores, bem como pela história que contaram. Um belíssimo trabalho com um ritmo contagiante!

Finalizando o Encontro o Grupo Teatro Andante de Belo Horizonte, Minas Gerais, apresentou A história de Édipo. Confesso que foi a primeira vez que vi uma tragédia na rua e foi realizada com poucas pessoas, quatro atores e um técnico apenas. Utilizando o recurso épico e a música ao vivo os atores deram conta do recado, realizando um bom espetáculo. Aliás, não necessitavam de microfones, pois o trabalho vocal dos atores é muito bom, tanto que um dos microfones falhou e o ator realizou sua função sem problemas. É um espetáculo muito bem feito, com excelentes atores, música bem executada, dentro de um tempo correto para o espaço aberto. O grupo mineiro está de parabéns!

A escuta na rua Para finalizar é importante falarmos da escuta para todos aqueles que se dispõe a fazer teatro de rua. Tendo o Encontro de Angra do Reis como referência, pode-se perceber que muitos grupos dispõem de uma escuta refinada, outros nem tanto.

Mas o que vem a ser escuta na rua? Trata-se da possibilidade real de troca entre atores e plateia. Os primeiros, ao travarem um jogo com os espectadores através dos fatos narrados no espetáculo, podem despertar a reflexão nos mesmos. Estes, por sua vez, querem interferir na realidade da obra, já que a rua não pede passividade por parte da platéia. Quando o ator escuta, seja a interferência dos espectadores, seja a interferência do ambiente, abre a possibilidade de diálogo, podendo agregar a interferência ao espetáculo. O diálogo não precisa necessariamente ser travado apenas com a fala, mas também com olhares, com o corpo etc. A escuta, seguida da troca, torna o espetáculo mais dinâmico e verdadeiro. Assim, a rua é um local que exige a adaptabilidade dos atores as realidades impostas pelo ambiente e pela platéia. Quando se troca verdadeiramente, o ator sai transformado, sente que ficou algo do que foi jogado para ele pela platéia, ao mesmo tempo ele deixou sua arte àquelas pessoas que o viram. Esse é o valor da escuta na rua: põe o ator em jogo direto com seu público. Dessa forma, ao mesmo tempo em que a obra, re-significa o espaço, pois possibilitou a troca simbólica durante o espetáculo, naquele espaço de tempo, os atores re-significaram também suas vidas, pois travaram um diálogo humano. Assim, não basta ir para a rua, é preciso escutar, dialogar e trocar experiências com os espectadores. Sabemos da dificuldade, mas os mestres populares estão aí para nos ensinar.

Que venha o XV Encontro, com mais diversidade, com mais escuta e mais troca entre os fazedores e, principalmente, entre os fazedores e os espectadores.

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